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Salmos 104.15

15. E vinho que alegra o coração do homem. Nestas palavras somos ensinados que Deus não só provê para as necessidades dos homens e lhes concede o quanto é suficiente para os propósitos ordinários da vida, mas que em sua bondade ele os trata ainda com mais liberalidade ao alegrar seus corações com vinho e azeite. Certamente que a natureza se satisfaria com água como bebida; e portanto a adição de vinho se deve à superabundante liberalidade divina. A expressão, e azeite para fazer luzir seu rosto, tem sido explicada em diferentes formas. Como a tristeza espalha uma sombra melancólica por todo o semblante, alguns fazem esta exposição: Quando os homens desfrutam as comodidades do vinho e do azeite, seus rostos brilham de contentamento. Alguns com uma interpretação mais refinada, porém sem fundamento, conectam isto com as lâmpadas. Outros, considerando a letra mem como sinal de grau comparativo, formam este significado: o vinho faz o rosto dos homens brilhar mais do que quando ungido com azeite. O profeta, porém, não tenho dúvida, fala de unguentos, insinuando que Deus não só dá aos homens o que é suficiente a seu uso moderado, mas que vai além dessas coisas, dando-lhes inclusive seus manjares finos.

Quanto às palavras na última frase, e pão que sustenta o coração do homem, eu as interpreto assim: O pão deve ser suficiente para o sustento da vida humana, mas Deus, além do mais, para usar uma expressão comum, lhes concede vinho e azeite. A repetição, pois, do propósito ao qual serve o pão não é supérflua; é empregada para nos encomendar a bondade de Deus em nutrir ele, terna e ricamente, os homens como um pai afetuoso faz a seus filhos. Por essa razão, afirma-se aqui novamente que, como Deus se revela um pai de criação suficientemente liberal em prover o pão, liberalidade essa que se mostra ainda mais conspícua em nos dar os petiscos mais deliciosos.

Mas, como não há nada a que mais nos inclinamos do que usar mal os benefícios divinos, dando vazão aos excessos, quanto mais liberal ele se revela para com os homens, mais devem eles tomar cuidado para não poluírem, com sua intemperança, a abundância que é posta diante deles. Paulo, pois, tinha boas razões para ministrar aquela proibição [Rm 13.14]: “Não façais provisões para a carne em suas concupiscências”, pois se darmos toda rédea aos desejos da carne, não haverá limites. Como Deus liberalmente nos sustenta, assim ele designou uma lei de temperança, para que cada um voluntariamente se restrinja em sua abundância. Ele envia bois e asnos às pastagens, e eles se contentam com a suficiência; mas ao suprir-nos com mais do que necessitamos, ele nos incita à observância das normas de moderação, para que não devoremos vorazmente seus benefícios; e ao prodigamente nos dar mais abundante provisão de coisas boas além dos requerimentos de nossas necessidades, ele põe nossa moderação à prova. A regra própria com respeito ao uso da subsistência corporal é participando dela para que ela nos sustente, porém não nos prejudique. A comunicação mútua das coisas necessárias para o sustento do corpo, o qual Deus nos ordenou, é um freio muito bom contra a intemperança; pois a condição sob a qual os ricos são favorecidos com sua abundância é que, por sua vez, mitiguem as necessidades de seus irmãos. Visto que o profeta, neste relato da bondade divina na providência, não faz referência aos excessos dos homens, deduzimos de suas obras ser lícito usar vinho não só em casos de necessidade, mas também por meio dele nos tornar mais joviais. Tal jovialidade, entretanto, deve ser temperada com sobriedade; primeiro, para que os homens não esqueçam, conspurcando seus sentidos e destruindo seu vigor, mas se regozijem diante de seu Deus, segundo a prescrição de Moisés [Lv 23.40]; e, segundo, para que estimulem suas mentes com o senso de gratidão, de modo que se tornem mais ativos no serviço de Deus. Aquele que se regozija dessa forma também estará sempre preparado para suportar as tristezas, sempre que a Deus aprouver lhas enviar. É preciso ter sempre em mente aquela regra paulina [Fp 4.12]: “Aprendi a passar necessidade e aprendi a viver em fartura”. Caso se manifeste algum emblema da ira divina, inclusive para aquele que desfruta de superabundância de todos os gêneros de guloseimas, esse mesmo deve restringir-se em sua dieta, tendo consciência de ser convocado a vestir-se de cilício e a sentar-se sobre cinzas. Muito mais deve aquele, a quem a pobreza compele à temperança e sobriedade, abster-se de tais delícias. Em suma, se uma pessoa se vê constrangida a abster-se de vinho em decorrência de enfermidade, se outra tem apenas vinho insosso, e se uma terceira nada tem senão água, que cada uma se contente com sua própria sorte e voluntária e submissamente se desabitue daquelas gratificações que Deus lhes nega.

As mesmas observações se aplicam ao azeite. Desta passagem vemos que os unguentos estavam muito em voga entre os judeus, tanto quanto entre as demais nações orientais. Na atualidade, o inverso se dá conosco, que ao contrário guardamos os unguentos para propósitos medicinais, em vez de usá-los como artigos de luxo. O profeta, contudo, diz que o azeite é também dado aos homens para que o usem como unguento. Mas, como os homens são tão propensos ao prazer, deve-se observar que a lei da temperança não deve ser separada da beneficência de Deus, para que não abusem de sua liberdade entregando-se a excessos concupiscentes. É preciso acrescentar-se sempre esta exceção: que nenhuma pessoa tem o direito de estimular-se à licenciosidade, lançando mão desta doutrina.

Além do mais, quando os homens prudentemente tiverem aprendido a refrear sua luxúria, é importante que saibam que Deus lhes permite desfrutar de prazeres com moderação, onde houver habilidade para administrá-los, ou jamais participarão mesmo do pão e do vinho com uma consciência tranquila; sim, começarão a ter escrúpulo de provar água, pelo menos jamais de chegarão à mesa a não ser com temor. Entrementes, a maior parte do mundo se engolfará nos prazeres sem discriminação, porque não consideram o que Deus lhes permite; pois sua paternal bondade nos deve ser a melhor mestra a ensinar-nos a moderação.

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Fonte: João Calvino, Salmos v. 3 (Editora Parakletos), págs. 617-620.