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Hagiografias indevidas, a face notável do polímata neerlandês e o caso brasileiro

Este breve texto, acreditamos, trará algumas reflexões sobre a recepção de Kuyper no campo religioso brasileiro e percepções nossas sobre eventuais fragmentações e incorreções na caracterização de sua teologia, em especial no debate teológico brasileiro. Seguimos com a demonstração de um dos exemplos mais claros de como esfacelamentos e adulterações teológicas podem, ao invés de contribuir para o desenvolvimento sociopolítico, promover atrocidades inigualáveis cujos resultados marcam a humanidade de forma indelével.

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Por óbvio, não esgotaremos nenhum desses temas, para tanto há uma plêiade de obras de referências produzidas por autores reconhecidamente sérios no campo acadêmico que podem ser consultados (algumas referências constaram ao final deste pequeno e despretensioso texto). Algumas das reflexões, mais especialmente a que concerne à questão de Kuyper e sua eventual relação com o Apartheid, surgiram de ideias e excertos de tese doutoral por nós produzida em uma universidade pública[1].

Para os que se debruçam nos estudos das possibilidades da(s) teologia(s) pública(s) no Brasil e internacionalmente, a simples menção de nomes de escol como Abraham Kuyper (1837-1920) traz certo alento, na medida que reconhecemos nele um paradigma possível para construção de aportes teóricos sólidos capazes de dar-nos ferramentas práticas para ação no espaço público. Contudo, a apreensão da teologia kuyperiana sofre, em terras brasileiras, de uma fragmentação que em nada contribui; pelo contrário, só nos leva a enxergar seu desgaste como uma moeda que transita pelo mercado sem sabermos seu real valor, até perder seu brilho. Um pequeno parêntese é necessário: não é nosso intento, em breves reflexões, dar cabo de todos os questionamentos que envolvem o tema, trata-se apenas de apontamentos que nos levam a pensamentos mais detalhados que foram realizados em tese doutoral, e que não poderiam ser resumidos, a contento, nestas páginas.

Voltando à questão da fragmentação da teologia kuyperiana e das circunstâncias de sua recepção no Brasil (dada, aproximadamente, no início dos anos 2000), é natural que todos queiram invocar para si intelectuais de reconhecida grandeza como Kuyper, muito embora sua obra seja mais restrita a um grupo que, demograficamente comparado à totalidade do povo brasileiro, chega a ser ínfima. Sem levarmos em conta os que o citam como mentor intelectual sem terem lido ou “terem lido através dos olhos de outros”. O que não retira a necessidade de expandirmos alguns dos pontos do pensamento de Kuyper em nosso país, como a preocupação com os mais necessitados e seu pluralismo de cosmovisão, dentre outros. O que não deve ser natural é que haja fragmentação[2] teórica e deturpação hermenêutica para que se criem diversos “Kuyperes”, que por sua vez sirvam para diversas necessidades ao sabor das circunstâncias, como o “Kuyper liberal”, o “Kuyper socialista”, ou a alcunha que ele próprio mais detestava, o “Kuyper conservador”[3]; nem é natural que se negligenciem fatos históricos que ocorreram e que não podem ser esquecidos e rechaçados do debate, sob pena de construção de uma teologia frágil e sempre passível das contestações mais pueris e banais. É o caso de sua relação relativamente conflituosa com os ateus (como o caso da prática do juramento perante atos públicos)[4], não obstante muito mais tolerante que os demais reformados de sua época, ou ainda sua visão colonialista, que lhe era clara, embora menos impassível e mais empático com as colônias.

A apropriação desarrazoada da tradição kuyperiana pode produzir um desgaste de um arcabouço teológico-metodológico da tradição reformada antes mesmo que se solidifique nos locais, como o Brasil, no qual o interesse pelo neocalvinismo-kuyperiano neerlandês tem se tornado mais intenso nos círculos reformados nacionais.

Kuyper, no contexto brasileiro, ainda é uma referência sem seus referentes, ou seja, tornou-se um “ícone” dos quais se desconhece as bases de sua teologia da cultura (ou, por que não dizer, as bases que fundamentam sua cosmovisão cristã-calvinista) e como elas se aplicam ao nosso contexto amplo. Nos Estados Unidos, por exemplo, Irving Hexham (1983) observou, desde a década de 1980, que setores fundamentalistas da “Nova Direita Cristã” se apropriaram da teologia kuyperiana para seus levantes ideológicos. Essa constatação não pode nos levar à conclusão de que adeptos do espectro à esquerda ou socialdemocratas norte-americanos não aderiram, por sua vez, à teologia kuyperiana. No Brasil, percebe-se, em movimentos tanto à direita quanto à esquerda, uma partidarização do cristianismo e uma utilização de teólogos como armas teóricas nas trincheiras de guerras que eles mesmos fomentam ou imaginam em seus delírios.

Assim, surge uma aversão ao Kuyper caricaturizado, uma aversão infundada e calcada em (quase) pleno desconhecimento do Kuyper desfragmentado. Máscaras e fantasias que engessam um diálogo minimamente sadio e inibem a possibilidade de acesso a um conhecimento mais adequado aos pontos centrais de sua elaboração teológica de forma mais profunda e escorreita. Fabricam-se diversas caricaturas de Kuyper, talvez ídolos de acordo com a imagem e semelhança dos seus idealistas; uma relação egóica que desintegra para construir algo que se adeque aos desejos mais entranhados de suas ideologias e utopias políticas.

É a fútil tentativa de construir para si um ídolo tal como o aventureiro Barão de Münchhauusen, que se vangloriava de ter saído de um pântano no qual estava atolado junto a seu cavalo apenas puxando-se pelos próprios cabelos (ou peruca). Fantasias e exageros são próprios dos que fragmentam pessoas ou eventos históricos, ao custo, muitas vezes, de seus referentes, seu contexto, seus erros, suas singularidades, para que possam, assim, canonizá-los.

O político, jornalista, professor, teólogo, estadista neerlandês, por certo, é objeto de admiração. Um homem cuja história se amalgama com a história de seu país deve ser objeto de estudos significativos. Com efeito, levou até o término de sua vida o que explicitou naquela que se tornou a frase mais conhecida dentre sua obra, atuando nas áreas da existência humana em honra a Deus e seu Reino: “Não há nenhum centímetro quadrado em todo o domínio da existência humana sobre o qual Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: ‘Meu’”. Em nossa apreensão da teologia kuyperiana em solo brasileiro devemos repelir quaisquer apreensões acríticas, esfaceladas ou, até mesmo, hagiográficas para servir aos nossos desejos, ideologias e utopias egocêntricas e gananciosas.

 

BREVE DIATRIBE AO CENÁRIO INTELECTUAL E POLÍTICO BRASILEIRO

É nesse sentido que determinados teóricos devem ser mais atentos e leais em suas construções, seus textos e análises. A maioria foge de artifícios como esses, mas existem aqueles que desonram o trabalho acadêmico, que pertence também à ordem criacional. Devemos parar de forjar bezerros de ouro e incentivar a construção de ferramentas teóricas para que a população em geral possa ter acesso a conhecimento e cultura de qualidade ímpar. Traduzir livros de referência com fidelidade e zelo (não preguiçosamente, por aplicativos), não por ganância e premiações, por exemplo; ou ainda não deturpar autores consagrados outrora desconhecidos (ao povo local) apenas e tão somente para que se dobrem aos seus anseios, assim como fizeram e fazem com Jesus Cristo (“Cristos” de diversas teologias, as mais variadas; sempre servindo e nunca sendo mestre e sendo servido), para que se sintam existencialmente bem, embora pessoalmente não resistam à menor crise de sentido e significado.

Em última instância, não sabemos se essa deturpação da obra e pensamento de Kuyper são simples correlato ou efeito de um problema epistemológico e moral mais profundo. Pois, numa perspectiva iluminada pelas percepções do teólogo, vemos o abuso de seu nome por líderes que levam pessoas simples, ingênuas (ou também seguidores com a mesma visão obnubilada) a idolatrar pessoas, símbolos, objetos, instituições, esquecendo-se ou ignorando a diferença entre amar, respeitar, servir e idolatrar. E quando admoestados, passam a grasnar em alto som o ódio mais arraigado a essas mesmas instituições em uma relação histérica e esquizofrênica que só fere os mais necessitados e desprovidos.

Uma análise detida (e necessária) disso transcende nosso escopo neste artigo; no entanto, é preciso uma afirmação enfática de que a teologia de Kuyper não guarda relação alguma com a fúria cega e incentivo da violência em nome da pátria (que é, sim, se corretamente compreendida, objeto de respeito e zelo protetor). Nessa confusão, vemos a germinação de uma patridiotia, a crença de que os símbolos nacionais não pertencem a todos e que as cores pátrias não vestem e honram a todos. Na crise que aflige a todos nós, esses líderes eclesiásticos infelizmente se aproveitam da dor humana, das angústia existenciais, e em vez de apresentarem Cristo, levam sede de sague, de sedição e morte; nada de cura da alma, mas simples xamanismo.

Dentre os teólogos públicos, os que seriamente enveredam no estudo e disseminação das disciplinas teológicas, existe um grupo (perigoso, por seus pronunciamentos) de autointitulados teólogos públicos. Sempre saem de suas neocavernas, após sua hibernação, e quase sempre em circunstâncias de grandes crises econômicas, sanitárias, políticas e existenciais para vangloriarem-se e distribuírem, mesmo aos que não solicitaram, sua sabedoria ou que acreditam ser sabedoria. Alguns se aproveitam de vivermos em uma país com sérios problemas de saneamento básico, educação, acesso aos meios de comunicação, internet e que tais, para falarem asneiras “coerentemente” forjadas por suas vísceras, uma vez que raramente apresentam suas fontes e, quando as apresentam, sabem da dificuldade de muitos em acessá-las.

 

AS HAGIOGRAFIAS (FALSEADAS) DE KUYPER

É compreensível e louvável que muitos queiram conhecer mais de um teólogo e de uma obra, mas não possuem tempo, subsídios, ou conhecimento de uma língua estrangeira, caso seja necessário; isto faz com que muitos passem a conhecer não mais que uma frase ou um pequeno conjunto de frases de tal autor. Ora, estamos em um país de extrema desigualdade. No caso de Abraham Kuyper, alguns (nem todos, digo por justiça) apresentam o pensamento do neerlandês de forma superficial, indigna do teólogo que foi, demonstrando que não leram ou estão privando seus leitores de conhecimento.

Outros, ainda, transformaram-no em um santo, de modo que suas falas sobre Kuyper são verdadeiras (e nauseantes) hagiografias que, de forma ultrajante, não apresentam a vida ou obra de Kuyper em tons fidedignos. Certamente, ninguém é obrigado a conhecer Kuyper, embora particularmente aconselhe tal empreitada, por ter sido um cristão reformado com obra vastíssima consistente e rica. (A propósito: se quiserem conhecer alguém, conheçam cada dia mais a Cristo e enxerguem sua vida através dele. Os notáveis teólogos só o foram por lerem a realidade através do Senhor da vida). Não nos julgamos alguém dentre os maiores especialistas em Kuyper; o que sabemos do autor, entretanto, tentamos levar para um público maior, sempre que possível, e apenas isso (por diversas questões, nem sempre isto pode ser uma constante). Não acreditamos que Kuyper tenha sido um homem perfeito, pois já lemos o suficiente para vermos que ele estava longe disso, mas também já lemos o suficiente para sabermos que foi um instrumento de valor nas Mãos de Cristo.

Em nota de rodapé e no corpo do texto já apresentei alguns fatos sobre Kuyper que mostram que, como todos nós, ele é fruto também de suas circunstâncias. Kuyper viveu boa parte de sua vida no século XIX e faleceu no limiar do século XX (1837-1920). Também ventilei, sumariamente, sua visão sobre liberalismo, socialismo e conservadorismo e os motivos pelos quais não os adotava. Este ano dar-se-á o centenário de sua morte. Ora, Kuyper foi de fato um ser humano extraordinário; certamente me agradaria passar dias falando sobre sua teologia… Se entendermos, porém, que toda idealização é tão perigosa quanto o despedaçamento de uma personalidade, é necessário apresentar Kuyper in totum, com suas idiossincrasias e ambiguidades. Uma delas, a que mais causa discussões é a que trata do nefasto evento do Apartheid e a participação de teólogos reformados em solo sul-africano, com uma apropriação plenamente deturpada da teologia kuyperiana.

 

TEOLOGIA KUYPERIANA E O APARTHEID

Tratar da relação entre a temática da verzuiling (pilarização, forma de organização social que foi implementada nos Países Baixos) e a ocorrência do injustificável Apartheid (separação) na África do Sul, bem como a possível conexão entre as lições extraídas da obra kuyperiana[5], em especial sua doutrina da soberania das esferas, deve ser precedido de um esforço de contextualização e descrição da concepção de Kuyper em referência à África do Sul, aos descendentes de neerlandeses na região (bôeres) e à guerra contra o imperialismo britânico à época, a Guerra Bôer (1899-1902), ou às guerras, se levarmos em conta a primeira investida travada entre 1880-1881[6] [7].

Outro ponto de importantíssima relevância é a estrutura social que compunha e em certa medida ainda compõe a África do Sul, cercada por relações, disputas e conflitos étnicos, coloniais, classistas e tribais, o que torna a questão sul-africana assaz complexa e digna de uma análise aprofundada e meticulosa, que, por óbvio, não temos condições de fazer neste texto.

Abraham Kuyper, com base na sua visão criacional, tinha na pluralidade da manifestação humana ou no pluralismo uma riqueza intrínseca da existência. Sua defesa de participação cristã nas diversas esferas (soberanas) da vida encontra eco na visão (já apresentada) de que o senhorio de Cristo se estende sobre tudo e todos. Partindo da premissa do pluralismo social, Kuyper entendia que a cosmovisão cristã não poderia e não deveria ser afastada na arena pública, e que as demais cosmovisões também poderiam manifestar-se a fim de enriquecer o seio social e o debate público. Entretanto, tais possibilidades metodológicas da teoria política de Kuyper não nos afastam do debate de alguns reflexos que leituras perfidamente interessadas e equivocadas de sua teoria da soberania das esferas e do pluralismo sociocultural causaram a milhares de vidas humanas perdidas e violentadas por ódio, capricho, incompreensão e falta de empatia com seu semelhante.

Não podemos deixar de apontar, igualmente, a despeito das contribuições de Kuyper para a (re)leitura de sua fé calvinista, sua convivência quase inerte com um racismo já estabelecido, arraigado no pensamento eurocêntrico da época (exportado para outros rincões), que se tornou parte do cenário sociopolítico e cultural, portando ares de “normalidade” e “inevitabilidade” a algo constatável inclusive no darwinismo social eclodido à época, e que levou às separações entre culturas “selvagens” e “desenvolvidas”, “superiores” e “inferiores”.

Quando dizemos ter tido Kuyper uma convivência quase inerte com um racismo já estabelecido à época, queremos dizer que ele não o transcendeu totalmente; em alguns momentos Kuyper apresenta em suas palestras Stone (proferidas em na Universidade de Princeton em 1898) e brevemente em seus posicionamentos acerca da guerra Anglo-Bôer algumas reminiscências desse racismo vitoriano, com base em uma visão cultural eurocêntrica (também norte-americana em certas ocasiões), ao tratar os nativos africanos como inferiores em termos de desenvolvimento e contribuição cultural para o conjunto da humanidade; em outros momentos, em sua explanação mais abrangente, Kuyper apresenta-se muito sensível e até mesmo à frente da consciência da época (se levarmos em conta a perpetuação do racismo institucionalizado em casos como o próprio apartheid e a segregação racial norte-americana com as infames leis Jim Crow) ao aduzir a unidade da raça humana e a grande riqueza cultural advinda da mistura de sangue, baseando-se na inerente dignidade da pessoa humana por sua criação à imagem e semelhança divina.

Muito embora Kuyper não tenha ido pessoalmente à África do Sul, não deixou de tratar de algumas questões candentes da época, enquanto líder político do partido Antirrevolucionário (a partir de 1879) e depois Primeiro-Ministro neerlandês (1901-1905), período que sucedeu em parte ao principal conflito entre os Bôeres e os ingleses (BOSSENBROEK, 2018, p. 3-7). Sua principal preocupação com a crise que se instalou em solo sul-africano tinha tonalidades fortemente nacionalistas. Em especial em seu texto que versa sobre a crise sul-africana (um texto reativo, diga-se de passagem, específico para a crise que já estava instalada), Kuyper busca antes confrontar o que denomina de imperialismo britânico e (re)animar a população Bôer local em face da ingerência inglesa[8] do que se posicionar sobre a relação entre os bôeres e os nativos, em sua maioria representados, de há muito, pela tribo Khoi-khoi, chamados pelos colonos como Hotentotes. Contudo, não deixa de reservar alguns parágrafos de seu texto à questão racial. Kuyper apresenta os bôeres com um povo de natureza mais pragmática que sentimental, sendo esta a tônica que rege a dinâmica com o povo nativo. Segundo narra, “eles entendiam que os hotentotes e os bantos eram uma raça inferior e que os colocar em pé de igualdade com os brancos, em suas famílias, na sociedade e na política, seria simplesmente tolice” (KUYPER, 1998g, p. 339). Em seu discurso, nota-se que Kuyper não somente reproduz o pensamento bôer, mas torna-se em certa medida silente em face dele, dando livre condução ao racismo de matriz europeia vitoriana que permeava a época, muito embora diga que, na relação cotidiana com os nativos, nunca se encontraria na África do Sul ninguém mais habilidoso que o patriarca bôer (KUYPER, 1998, p. 339).

Kuyper, por certo, repudiaria as barbaridades perpetradas pelo apartheid. Repudiaria, como de fato o fez, o ato de violência ocorrido à época da prelação de suas palestras Stone, a “cena violenta em Wilmington”, ainda que visse dificuldades em ver paz duradoura entre brancos e negros (KUYPER, 1998, p. 340)[9]. Seu temor por uma guerra racial era real; e chegou mesmo a antecipar pontos do conflito do apartheid, atribuindo sua causa a Joseph Chamberlain[10] e ao jingoísmo[11] que promoviam de forma frenética o imperialismo britânico[12]:

 

E se, mais cedo ou mais tarde, a luta pelo extermínio entre brancos e negros irromper-se de novo na África do Sul, toda a responsabilidade por isso recairá sobre Chamberlain e os jornalistas Jingo que, de maneira bastante impertinente e com uma pressuposição mais que imprudente, incitaram entre as raças um ódio cuja ardente chama tentarão tardia e inutilmente apagar (KUYPER, 1998, p. 340).

 

Embora diante da situação sul-africana Kuyper não tenha se posicionado de forma explícita contra o racismo existente, sendo em certo ponto até mesmo conivente, durante as palestras Stone, no entanto, apenas dois anos antes, mostra-se em alguns aspectos mais consciente da inerente dignidade humana e da igualdade entre os homens. É o que o faz afirmar ser toda a raça humana “de um mesmo sangue”. O que inviabilizaria o tratamento desigual e cruel com o semelhante, seja em razão de quaisquer critérios distintivos que se possa elencar. Segundo Kuyper, o ser humano por nascer de outro ser humano, está organicamente unido a toda a raça. “Formamos juntos uma humanidade, não somente com aqueles que estão vivos atualmente, mas também com todas as gerações antes de nós e com todas aquelas que virão depois de nós, embora possamos estar dispersos em milhões” (KUYPER, 2014, p. 87). Em tal consideração, brancos, negros, índios, todos, estariam debaixo do mesmo critério unificador, a saber, sua humanidade.

Porém, o ponto de fato complexo é entender o conteúdo de algumas falas de Kuyper durante suas palestras Stone a fim de abstrair seu sentido fundamental. É o caso, por exemplo, quando Kuyper descreve algumas contribuições nacionais à humanidade em geral e para o contínuo desenvolvimento da raça, por óbvio, uma leitura histórica eivada com certa visão eurocêntrica vitoriana[13] que vê nas contribuições europeias[14] o auge do desenvolvimento humano[15]. Kuyper, na ocasião, fala das civilizações que se fecharam em um círculo próprio sem interação com outras civilizações para produção de ganhos civilizacionais superiores. É a crítica ácida que Kuyper faz ao México e ao Peru nos dias de Montezuma e dos Incas, mas, principalmente, à parcela do continente africano: “Isto aplica-se, mais fortemente ainda, à vida das raças na costa e no interior da África – a forma menos desenvolvida de existência, não lembrando-nos nem mesmo um lago, mas um poça d’água e um brejo” (KUYPER, 2014, p. 41).

A influência da obra kuyperiana sobre os nacionalistas sul-africanos deve-se a uma leitura deturpada da doutrina da soberania das esferas, notadamente em seu segundo aspecto da pilarização (verzuiling). Após o término da guerra Anglo-Bôer (1902) com a derrota dos bôeres e a anexação das terras do Transvaal e do Free State of Orange ao território da África do Sul submetido ao controle inglês, houve receio, por parte dos bôeres, de perda de sua identidade histórica, cultural e religiosa, iniciando-se assim um processo de pilarização cujo critério era racial, especialmente com a criação de pilares entre brancos bôeres (Africâneres) e negros (nativos), um critério racial que nunca esteve em nenhuma das explanações de Kuyper sobre a soberania das esferas; um critério que somente servia para os interesses próprios e anticristãos perpetrados no regime de apartheid. Por sua vez, a pilarização, nos termos em que ocorreu com maior ênfase nos Países Baixos (início e meados do século XX, em especial), partia de disposições ideológicas e religiosas (não raciais, mesmo diante do fato de haver certa homogeneidade racial local[16]); eram, pois, critérios da ordem do pensamento e da expressão, nunca de seu fenótipo – em suma, uma tentativa de vida pluralista e de consolidação e participação democrática, não um abjeto regime autoritário segregacionista.

A celeuma que envolve a pilarização (verzuiling) racial na África do Sul levanta questionamentos sobre a adequabilidade dos princípios e conceitos calvinistas na leitura kuyperiana; soma-se a isto a eventual leniência e ambiguidade em alguns textos de Kuyper quanto à questão racial como tivemos a oportunidade de explorar. Essa horrenda e distorcida manifestação de pilarização ocorre como uma resposta dos defensores do apartheid na utilização da ideia de soberania das esferas para apoiar sua ideologia de desenvolvimento segregacionado entre raças.

Com um forte ideal nacionalista e considerando-se “os verdadeiros calvinistas” (MCGOLDRICK, 2000, p. 228), alguns africânderes (antigamente considerados os bôeres) tomaram para si um desarrazoado ideário romântico de uma cultura superior a ser preservada e separada dentre as demais (leia-se dos nativos, bem como de ingleses à época da eclosão segregacionista), distorcendo “o ensinamento de Kuyper para promover uma religião civil do nacionalismo africânder” (MCGOLDRICK, 2000, p. 228).

É clara a existência de uma ideia de hierarquia civilizacional na leitura de Kuyper sobre o desenvolvimento histórico e cultural dos povos, inclusive aos coexistentes no tempo, em virtude de sua fala em relação à África em detrimento da Europa. Contudo, para Kuyper, esse desenvolvimento, pelo que se infere da leitura de sua obra, não se suporta em uma chave de leitura racial; dito de outra forma, não é uma questão de brancos, negros e superioridade ou inferioridade[17]; trata-se de outro critério, um de fundo civilizacional, mas que se refere à presença do levedo cristão no seio social. Dessa feita, a visão de Kuyper comporta certa visão vitoriana na medida em que a Europa está no centro do desenvolvimento civilizacional, mas não por méritos próprios, ou inerentemente intrínsecos, mas tão somente pela presença da seiva calvinista que nutre certas civilizações.

Por certo, Kuyper não coadunaria, pela leitura de sua obra e de sua prática, com tais aberrações e desprezo tão vil, mas é claro que não transcendeu de forma a romper com este lamentável período cujas marcas ainda se perpetuam, ao redor do mundo, veladamente e de formas variadas (nós que somos brasileiros, e que temos na miscigenação e diversidade nossa constituição, podemos ter sofrido com algumas destas formas). Entretanto, isto não retira a grandeza e vigor de sua teologia e a densidade de seu pensamento e ação.

Ora, obviamente, existem diversas outras imbricações que podem ser ventiladas, como a própria questão da pilarização em si e a ideia de esferas que fora deturpada em solo sul-africano por teólogos bôeres para atender aos seus propósitos políticos e étnicos, o que deve ser repudiado veemente. Deve-se também evitar uma deturpação análoga nestas terras brasileiras, para que a teologia pública que potencialmente surja da leitura crítica e construtiva da obra kuyperiana venha a servir de instrumento legítimo de participação cristã no ambiente público com vigor e arcabouço teórico eficiente e sólido.

E é para tal fim que a apropriação da teologia kuyperiana deve ser feita da forma mais parcimoniosa, legítima e sem aleivosia possível. As pulverizações teóricas em nada contribuirão, apenas impedirão que um pensador cristão de tamanha versatilidade seja fadado ao esquecimento ou aos recantos de uma ideologia utópica que nada produz senão vitupério e ojeriza.

 

IMPLICAÇÕES INCONTORNÁVEIS PARA UMA TEOLOGIA PÚBLICA

 

Kuyper é fundamental para elaboração de uma teologia pública no Brasil. Que se a faça, pois, de forma criteriosa. Que seja feita por cristãos que usem suas vidas como profecias vivas e digam as verdades divinas contra a ganância e pecaminosidade humanas, não se aliando a elas para alcançar um fim, ou um Admirável Mundo Novo; aliar-se aos poderes do mundo em corrupção para alcançar o bem da Nova Atlântida é crucificar novamente o Salvador que já rejeitou tais “bens” por obediência a Deus e por amor a ele e a nossas vidas.

Nossa linguagem no espaço público pode ser religiosa, mas deve ser desafiadora, o que não implica em deslealdade, desrespeito e afronta a instituições políticas e democráticas e autoridades em uma conflagração encarniçada. Por certo, importa antes obedecer a Deus que a homens, mas até nessa desobediência há a iluminadora direção do Espírito Santo na guerra contra principados e potestades, não contra a carne ou sangue. Açuladores que induzem ovelhas já tão angustiadas e moribundas a querelas e guerras ideológicas, utópicas e partidárias, enquanto acovardam-se em suas neocavernas, são uma pérfida demonstração de um falso cristianismo de conveniência e ocasião, que busca somente a manutenção de carisma e poder social dentro das instituições; e estas, quando permitem, sem qualquer repreensão ou disciplina, a disseminação de falas de lideranças nesse sentido acima, demonstram-se tão moribundas e cadavéricas quanto alguns de seus líderes e suas mensagens; nossas vozes devem questionar e despertar a sociedade. Como disse um dos filósofos mais importantes do século XX, Abraham Joshua Heschel:

 

A menos que a história seja um capricho de absurdos, deve haver uma contrapartida ao imenso poder do homem em destruir, deve haver uma voz que diga NÃO ao homem, uma voz que não seja vaga, fraca e interior, como vertigens da consciência, mas igual em força espiritual ao poder do homem para destruir. A voz fala ao espírito dos profetas em momentos singulares de suas vidas e clama às massas através do horror da história. Os profetas respondem, as massas se desesperam. A Bíblia, falando em nome de um Ser que combina justiça com onipotência, é o clamor incessante do “Não” à humanidade. Em meio aos aplausos aos feitos da civilização, a Bíblia se lança como uma faca cortando nossa complacência, lembrando-nos que Deus também tem voz na história (HESCHEL, 1997, p. 74-75).

 

Devemos voltar nossa vida e teologia também às mazelas e concretudes da vida. Pessoas estão morrendo e outras estão angustiadas em seus lares aguardando uma palavra de vida e refrigério, mas encontram alguns espantalhos moribundos, sem vida, sem alento, sem Cristo. A igreja de Cristo[18], ao contrário, recebeu a palavra de que tais pessoas necessitam. A igreja de Cristo recebeu, ademais, uma palavra contra a sanha gananciosa da humanidade. A igreja enquanto organismo é a voz que profere desafiadoramente o “Não!” de Deus à humanidade, quando esta caminha perfidamente. Quando vidas se perdem em meio à pandemia sem auxílio e não há investimentos ou programas de governo para a economia, saúde ou educação e o valor da vida é minimizado, a igreja, enquanto corpo de Cristo, a união dos discípulos e testemunhas do Senhor da vida, devem dizer: “Não!”. Quando liberdades são ameaçadas e a democracia é vítima de oportunistas, a igreja deve posicionar-se para em plenos pulmões exclamar: “Não!”. Quando um negro sofre algum revés apenas por ser negro, uma mulher é estuprada ou diminuída em sua dignidade, a igreja deve ser sua voz e dizer “Não!”. A igreja é a voz de Cristo que clama: “Não!” Quando se permite que os mais necessitados padeçam sem auxílio, a igreja deve dizer “Não!”. A igreja deve denunciar o derramamento do sangue inocente, a necropolítica, o racismo, o desprezo pelos pobres, a ausência de caridade e empatia e anunciar o juízo divino.

Quando alguns de nossos pastores estão silentes e acovardados; ou quando aguerridos. como que sedentos por sangue e revolução malfazeja, inculcando na mente dos seus a afronta ao próximo que pensa diferente ou deseja crises institucionais, a igreja deve exclamar “Não!”. Aos pastores que levam suas ovelhas às feras e aos espinhos, “Não!”. Aos falsos líderes, mestres e profetas que em nada se assemelham ao Bom Pastor que dá a vida por suas ovelhas, que não consolam e não tratam, mas oprimem e ferem; a eles a igreja de Cristo diz: “Não!”.

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ROY, Kevin. The Story of the Church in South Africa. Cumbria: Langham, 2017.

RYRIE, Alec. Protestants – The Faith that made the Modern World. New York: Penguin Books, 2017

[1] Querendo Deus, prosseguirei com um curso gratuito que estou disponibilizando sobre a vida e obra de Kuyper em linguagem clara e acessível para que todos possam ter uma boa base sobre esse grande teólogo neerlandês, cujos insights são, a meu ver, significativos para o desenvolvimento de uma teologia pública brasileira sólida que nos permita atuar de forma cristocêntrica no espaço público. A primeira parte já foi divulgada (aqui); as demais, a seu tempo, serão realizadas e divulgadas.

[2] Bratt salienta que embora Kuyper tenha visto certa contribuição conservadora para a vida nacional, isto não os tornava aliados padrão do partido antirrevolucionário. Por certo, muitas alianças eram viáveis na agenda política de Kuyper; como ele mesmo afirmava, se aliaria aos católicos romanos contra todas as variedades ou vertentes liberais; com liberais de esquerda contra os liberais de direita; com todos os liberais contra os socialistas; e, por fim, com todos os liberais e socialistas para opor-se aos conservadores (BRATT, 2013, p. 230). Kuyper entendia que o cristianismo era visão de mundo suficiente e necessária para que o cristão pudesse engajar-se no mundo. As lentes hermenêuticas da existência encontravam-se em Cristo. Interessante fazer estudo posterior sobre a ideia de soberania das esferas, graça comum e antítese.

[3] Alguns advogam o conservadorismo de Kuyper por ser leitor de Edmund Burke e por citá-lo em circunstâncias com as Stone Lectures, 1898 e que o conservadorismo que repudiava era o neerlandês. Tenho mais linhas para tratar do tema com mais rigor e método em minha tese doutoral. Aqui, me permito dizer que não se pode chegar tão facilmente a tal silogismo se lermos boa parte da obra kuyperiana. Precisamos ter mais cuidado em nossas afirmações. Kuyper trata o conservadorismo – ou como prefere em certas ocasiões, a conservação – como ferramenta a ser utilizada com cautela e em circunstâncias específicas (ele usa a significativa expressão “repristinação imitativa”. Quisera eu poder trazer tudo isso de uma só vez. Em tempo oportuno, divulgarei mais sobre isto), e não como método ou visão de mundo; visão de mundo para Kuyper era o cristianismo bíblico e cristocêntrico. Isto vale para liberalismo e socialismo, ambos fruto da Revolução Francesa e da sanha individualista do homem e do ato idólatra de destronar Deus e colocar o ser humano em substituição. Para isso leiam: KUYPER, Abraham. The problem of poverty. Iowa, Dordt Press, 2011. Este ano (2020) tal livro saiu traduzido no Brasil como “O problema da Pobreza”, trata-se de um bom livro para entender a visão cristã e social de Kuyper.

[4] Kuyper em seu programa partidário Ons Program, Partido Antirrevolucionário (Anti-Revolutionaire Partij – ARP), de 1879, mostra a importância do juramento em determinados atos públicos e solenes. Contudo, traz uma ressalva que toca aos ateus. Segundo Kuyper, por não acreditarem em Deus, como os ateus jurariam pela divindade? E, nesse contexto, como confiaríamos em sua palavra? A solução dada pelo teólogo e político neerlandês seria a intermediação do aval de um cristão, um garante. Nesse sentido, quando instado a jurar, o ateu deveria levar consigo alguém que atestaria sua idoneidade. Ora, trata-se de uma solução que Kuyper entendia resolver teológica e racionalmente o problema, mas traz sérias questões sobre a igualdade, em contrapartida. Conforme reza o programa: (4) Ateus, isto é, exceções dentre as pessoas que não declaram incondicionalmente acreditar no Deus vivo, não devem prestar juramento, nem fazer uma promessa, conforme descrito em (3) [tópico anterior que descreve formas de escusa de juramento], mas devem ser tratadas da seguinte maneira: um ateu deve declarar que está preparado, para a satisfação do Estado, caso isso o exija, ser representado por uma pessoa respeitada – a quem o Estado possa igualmente contestar e de quem está estabelecido que conhece a parte envolvida bem e por tempo suficiente –, e que esse indivíduo declare sob juramento que, no caso em questão, ele não tem motivos para duvidar do amor à verdade desse ateu.  (KUYPER, 2016, 82-83). Obviamente, Kuyper faz suas assertivas em face de um quadro referencial teológico que entende justificar seus pontos argumentativos; inclusive usa de dados demográficos e estatísticos sobre o número inexpressivo de ateus à época para fortalecer sua fala. Não é nosso propósito fazer julgamentos históricos ou anacronismos, apenas mostrar que Kuyper era, em alguns aspectos fruto de sua época, de suas circunstâncias e não as transcendia como um todo; e em outros aspectos mostrava-se muito além de sua época e até de nossos referenciais hodiernos com maior empatia ao pluralismo que muitos que hoje se postam no espaço público. Estas ambiguidades são facilmente aferíveis em diversas biografias de homens e mulheres notáveis para além de visões maniqueístas de santos e pecadores em hagiografias e cartas inquisitoriais.

Outro ponto é o colonialismo defendido por Kuyper. Em seu já citado programa partidário (não nos esqueçamos de contextualizar sociopolítica, cultural e economicamente a narrativa no período ao qual pertence, o século XIX. O programa partidário foi escrito em 1879). Lá aponta três tipos de colonialismo, a saber, o colonialismo de exploração, de colonização e de confiança (trusteeship). Os dois primeiros, conhecemos de há muito. Nossas Américas já saborearam (ou ainda saboreiam novas versões?) de tais colonialismos. A proposta defendida por Kuyper é a que se baseia na confiança. Segundo afirma, em tal modelo os colonizadores possuem a terra mas não são seus donos; sua tarefa é instruir o povo, levá-los a patamares civilizacionais superiores, dar educação moral até que possam avançar passo a passo à independência (KUYPER, 2016, 294; 300-301). Lembremo-nos, que a visão eurocêntrica, vitoriana, de superioridade chega a seu ápice no século XIX e a muitos toca e deixa suas marcas, dificultando a permanência inalterada.

 

[5] Em complementação ao exposto recomendamos: BASKWELL, Patrick. “Kuyper and Apartheid: a revisiting”. HTS Teologiese Studies/Theological Studies, vol. 62, nº 4, 2006, p. 1269-1290.

[6] Quanto à Guerra Bôer ver, por todos: BOSSENBROECK, Martin. The Boer War. New York: Seven Stories Press, 2018.

[7] Não ousamos fazer aqui uma história da África do Sul, tampouco de suas complexidades em face do apartheid. Outro ponto a ser destacado é a inevitável brevidade com que trataremos de tal tema, muito embora não deixemos de considerar sua complexidade, uma vez que o tema tangencia nossa pesquisa, mas nele não se resume; até mesmo porque as implicações teóricas podem nutrir pesquisas que o abordem com maior riqueza de dados e análise. Nesse sentido, para uma completa elucidação da temática, é imprescindível a leitura de alguns textos escritos por Kuyper e que tangenciam o tema racial: KUYPER, Abraham. “The South Africa Crisis”. In: BRATT, James D. Abraham Kuyper: A Centennial Reader. Grand Rapids, Michigan/Carlisle: W.B. Eerdmans/Paternoster Press, 1998, p. 323-360; KUYPER, Abraham. Calvinismo: São Paulo: Cultura Cristã, 2014. Para uma visão mais bem direcionada sobre a igreja local na África do Sul, ver: ROY, Kevin. The Story of the Church in South Africa. Cumbria: Langham, 2017. Para uma leitura sobre o protestantismo na África do Sul (além dos que forem sendo indicados ao longo do texto) ver: RYRIE, Alec. Protestants – The Faith that made the Modern World. New York: Penguin Books, 2017, em especial as páginas 327 a 361.

[8] Havia grande pressão política e militar por parte da Grã-Bretanha sob as áreas do Transvaal e do Free Orange State que sofriam pressão política e militar. Como aponta Bossenbroek (2017, p. xvi) “O impacto catastrófico da segunda fase da guerra sobre as populações civis das duas repúblicas bôeres […] Cerca de 230.000 brancos e não brancos foram encarcerados; sabe-se que 46.000 morreram. Além disso, as tropas britânicas deixaram um rastro de destruição sistemática enquanto varriam o Transvaal e o Free State of Orange. Portanto, a fase guerrilheira da Guerra Bôer prenunciou a devastação causada pela guerra total como na Segunda Guerra Mundial”.

 

[9] Apenas para aclaramos alguns pontos. Wilmington, Carolina do Norte, foi cenário de um massacre, em 1898, um confronto racial que dizimou incontáveis vidas humanas, mesmo ano em que Kuyper estava nos Estados Unidos e teve a oportunidade de conversar com diversos homens brancos e negros em suas visitas a lugares como Maryland e New Jersey. Os Estados Unidos ainda estavam colhendo os frutos de sua guerra civil e a segregação racial tornava-se mais ferrenha; veja-se o caso das denominadas leis Jim Crow. Todo esse ambiente conturbado, inquietante e até imprevisível, pode ter levado Kuyper a ser pessimista em concluir na impossibilidade de uma reconciliação entre brancos e negros como afirmou.

[10] Joseph Chamberlain (1836-1914) foi um estadista britânico que teve papel proeminente não só na formação do que se denominou jingoísmo, mas também na guerra Bôer, quando exercia a função de secretário do Departamento Colonial Britânico. “Um dos maiores defensores do New Imperialism foi Joseph Chamberlain, empresário de sucesso, mayor de Birmingham e político hábil, cujas funções de Estado incluíram a de ministro de um governo liberal e posteriormente a de Secretário Colonial de um governo conservador. Chamberlain acreditava profundamente na unidade do Império, na figura da Rainha Vitória como símbolo máximo dessa unidade e também na missão civilizadora da raça anglo-saxónica, cujos valores como patriotismo, fair play, autodisciplina, altruísmo, coragem e ousadia (JAMES, 1998: 205-6) que Chamberlain considerava vitais para o desenvolvimento e felicidade dos povos mais atrasados, eram transmitidos nas escolas às futuras gerações de administradores do Império” (JESUS, 2013, p. 11).

[11] “O termo surgiu por volta de 1876 para designar o fervor imperialista que dominava o país, patente nas canções populares de music-hall, na imprensa e nas manifestações de apoio ao Império” (JESUS, 2013, p. 23).

[12] Sobre imperialismo britânico: JESUS, Ana Paula Lobato de. O (Anti)-Imperialismo de J. A. Hobson na Alvorada do Século XX. Tese (mestrado em Estudos Ingleses e Americanos). Universidade de Lisboa. Lisboa, 2013. Em tal dissertação a autora discorre inclusive sobre o papel do jingoísmo na construção da identidade nacional e sua função manipulativa de massas.

[13] O expoente da teologia reformada neerlandesa, Herman Bavinck (1854-1921), cuja prodigalidade pode ser vista na hipótese de ter sido para a consolidação da teologia neerlandesa o que Herman Dooyeweerd (1894-1977) foi para a filosofia reformada dos Países Baixos (e para além), também permaneceu em uma relação de irresistência com a visão de mundo eurocêntrica colonialista que então dominava o pensamento ocidental. James Bratt (2019), em comentário à obra A Filosofia da Revelação (oriundas das palestras Stone, proferidas e expostas por meio de inquestionável erudição e consistência metodológica e teológica para o ano acadêmico de 1908-1909 da Universidade norte-americana de Princeton), traz-nos certas reminiscências desta submissão dócil afeita ao imaginário social europeu ocidental do século XIX. No bojo de sua preleção, Bavinck não deixa de transparecer o que Bratt denomina de “confiança vitoriana”, que se mostra imperialista e proponente de uma visão hierárquica que pressupõe a superioridade “autoevidente da civilização europeia sobre as demais” (BRATT, James. “O contexto das Palestras Stone de Herman Bavinck: cultura e política em 1908” in BAVINCK, Herman. A Filosofia da Revelação. Trad. Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, DF: Monergismo, 2019, p. 329).

[14] Muito embora Kuyper veja nos Estados Unidos um representante desse desenvolvimento cultural superior que pode contribuir para a promoção do crescimento humano com um todo: “Aqui, em terras americanas, pela primeira vez [o viajante] compreende como tantas potências divinas, que estavam escondidas no seio da humanidade desde a nossa própria criação, mas que nosso velho mundo foi incapaz de desenvolver, estão agora começando a revelar seu esplendor interior, prometendo assim um depósito de surpresas ainda mais rico.

Mas vocês não me pediriam para esquecer a superioridade que, em muitos aspectos, o Velho Mundo pode ainda reivindicar, aos seus olhos tanto quanto aos meus. A velha Europa continua portadora de um passado histórico muito longo e, portanto, coloca-se diante de nós com uma árvore enraizada muito profundamente, escondendo entre suas folhas alguns dos mais maduros frutos da vida” (KUYPER, 2014, p. 17).

[15] A ideia de evolução e progresso (com as devidas distinções e ressalvas inerentes a cada objeto específico) estava permeando, inclusive, certos aspectos da seara científica da época. Como bem observa Celso Castro (2014, p. 7-8) a chamada escola antropológica do evolucionismo cultural encontra seus principais autores em Lewis Henry Morgan (1818-1881); Edward Burnett Tylor (1832-1917); e James George Frazer (1854-1941), assim como em Herbert Spencer (autor evolucionista que não se posicionava institucionalmente como antropólogo), muito embora o rótulo “evolucionista” seja reducionista, é certo que tais autores contribuíram com essa corrente de pensamento. Seus estudos foram primordiais para o crescimento e desenvolvimento da disciplina antropológica. A tradição evolucionista, apesar de suas contribuições, sofreu momento de significativa ruptura com as obras de Franz Boas (1858-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-1942, do qual se destaca a obra Argonautas do Pacífico Ocidental, fruto de suas pesquisas nas Ilhas Trobriand, na qual introduz o método denominado de “observação participante”, dando mais atenção ao ponto de vista do nativo). Celso Castro (2014, p. 24-25 e 28) intenciona desfazer o equívoco de alguns que entendem a ideia de evolução como explicação para a diversidade cultural humana como decorrência direta da evolução biológica. Com afirma Celso de Castro (2014, p. 24): “Darwin argumentou que as espécies existentes haviam se desenvolvido lentamente a partir de formas de vidas anteriores, e apontou como mecanismo principal desse processo a teoria da ‘seleção natural’ através de variações acidentais. Em meados dos anos 1870, talvez a maior parte das pessoas cultas na Europa e na América do Norte já tivesse aceitado as ideias de Darwin. Muitas vezes, no entanto, a compreensão de sua teoria era vaga e superficial, um dos fatores fundamentais para a aceitação da ideia de progresso, cuja imagem mais comum é a de uma ‘escada’ cujos degraus estão dispostos numa hierarquia linear. Geralmente, o evolucionismo era percebido com a expressão científica desse princípio mais antigo e geral […]

O postulado básico do evolucionismo em sua fase clássica era, portanto, que, e em todas as partes do mundo, a sociedade humana teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obrigatórios, numa trajetória basicamente unilinear e ascendente. A possibilidade lógica oposta, de que teria havido uma degeneração ou decadência a partir de um estado superior – ideia que tinha por base uma interpretação bíblica – precisava ser descartada, como se poderá ver nos textos aqui reunidos. Toda a humanidade deveria passar pelos mesmo estágios, seguindo uma direção que ia do mais simples ao mais complexo, do mais indiferenciado ao mais diferenciado.

O caminho da evolução seria, nas palavras de Morgan, natural e necessário: ‘Como a humanidade foi uma só na origem, sua trajetória tem sido  essencialmente uma, seguindo por canais diferentes, mas uniformes, em todos os continentes, e muito semelhantes em todas as tribos e nações da humanidade que se encontram no mesmo status de desenvolvimento’”.

[16] Como afirma Lijphart: “Por um lado, os Países Baixos são racialmente homogêneos e seria impróprio chegar a qualquer conclusão sobre questões raciais com base na experiência neerlandesa. Em segundo lugar, a segregação nos Países Baixos significa isolamento social autoimposto, ao passo que o apartheid implica a imposição de segregação pelo grupo dominante sobre um grupo menos favorecido. O caso neerlandês mostra, no entanto, que uma doutrina do tipo “separados mas iguais” pode funcionar. Os blocos religioso-ideológicos lutaram e alcançaram em grande parte status igual na sociedade neerlandesa, mantendo suas identidades separadas e seu isolamento mútuo. Em outras palavras, a segregação social não leva necessariamente à instabilidade, não sendo inerentemente desigual ou injusta” (LIJPHART, 1975, p. 186).

 

[17] Neste sentido, McGoldrick (2000, p. 228) “Ele [Kuyper] sabia que os bôeres consideravam os negros como povos inferiores e que eles achavam impossível elevá-los à igualdade com os brancos. Kuyper não acreditava que os negros fossem inerentemente inferiores, mas observou que a cultura da África era inferior à da Europa e da América, onde a influência do cristianismo é forte há séculos. Embora ele não gostasse da atitude dos bôeres em relação aos negros, Kuyper argumentou que a influência dos bôeres estava tendo um efeito civilizador sobre as tribos da África do Sul”.

 

[18] Para tanto, Kuyper faz a necessária distinção entre igreja como organismo e como instituição, ambas importantes na eclesiologia kuyperiana e funcionando em relação harmônica, orgânica e dialética. Ora, se a igreja como organismo, ou seja, o corpo administrativo deve ater-se aos atos sacramentais, discipulado e exposição das Escrituras, o meio para engajamento é justamente a igreja enquanto um organismo vivo formado pelos fiéis, crentes em Cristo que se inserem no seio social e participam da vida amparados por sua visão e linguagem religiosas. Papéis mais claros foram atribuídos à igreja como instituição, que não deveria imiscuir-se com engajamento social nos moldes explicitados; antes, tal papel era reservado para os cristãos que, organicamente ligados pela experiência da fé e para testemunho e serviço em prol de Cristo, deveriam atuar em todas as esferas da criação e promover seu pleno desenvolvimento em todo o mundo. No texto, especialmente neste excerto em que trato da participação da igreja no espaço público, estamos nos referindo à acepção de igreja enquanto organismo nos moldes elaborados por Kuyper.

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