A Doutrina da Justificação (4)
Sua Concessão

por

Cornelis P. Venema

 

Em meus artigos anteriores sobre a doutrina da justificação, lidei com dois assuntos: primeiro, a natureza da justificação, o que é; e segundo, a base ou fundamento de nossa justificação. Justificação é a declaração ou pronunciamento de Deus de que somos justos e aceitáveis a Ele. Quando Deus nos declara justos e não mais debaixo de condenação, Ele o faz com base na justiça de Cristo. Por cumprir plenamente as exigências da Lei e sofrer o castigo da Lei em nosso lugar, Cristo tornou-se nossa justiça diante de Deus (cf. 1 Coríntios 1.30; 2 Coríntios 5.21). Nós somos justificados, portanto, pela graça apenas, com base na obra de Cristo somente. Nada que possamos fazer na forma de obediência à Lei contribui para nossa justificação.

Tendo considerado a natureza e a base da justificação, temos ainda que entender a importante questão de como nós podemos receber ou nos beneficiar da graça da justificação gratuita.

 

61. Por que você diz que é justo somente pela fé?

R. Eu o digo não porque sou agradável a Deus graças ao valor da minha fé, mas porque somente a satisfação por Cristo e a justiça e santidade dEle me justificam perante Deus. Somente pela fé posso aceitar e possuir esta justificação.

 

Por meio da Fé Somente

A questão do recebimento da graça da justificação gratuita pode ser expressa de formas diferentes. Um meio de expressar isto é perguntar: como a justiça de Cristo se torna minha? Como venho a me beneficiar da obra de Cristo em meu favor? Se a justificação é um dom gratuito de Deus, como posso receber ou me apropriar deste dom como se fosse meu?

A resposta da Reforma a esta questão é comumente expressa na frase sola fide , “por meio da fé somente”. A justificação, como dom gratuito da graça de Deus, é recebida por meio da instrumentalidade exclusiva da fé. Isto não significa que a fé que abraça a Cristo, como veremos em artigos subseqüentes, é simplesmente uma fé solitária ou improdutiva. É uma fé que trabalha por meio do amor, como Paulo diz em Gálatas 5.16. Uma “fé morta” – isto é, aquela que não frutifica em uma vida de boas obras – não traz salvação (Tiago 2.14). Não podemos desligar a conexão entre justificação e santificação; estes dois aspectos da graça de Deus para conosco em Cristo não podem se separar da mesma forma que não podemos desligar as duas naturezas de Cristo (Calvino). Mas, quando se trata do meio pelo qual obtemos a graça da justificação, uma posição reta perante Deus, devemos insistir que isto acontece pela fé somente, não por obras.

Este é o testemunho consistente da Palavra de Deus. Por exemplo, em Romanos 3.28, o apóstolo Paulo declara “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei”. Ou novamente em Romanos 5.1: “Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo”. Como você deve saber, Lutero, ao traduzir este verso, inseriu a palavra alemã, allein , “somente”, objetivando deixar o ponto claro. Nós chamaríamos isto de uma tradução “dinamicamente equivalente”, porém mesmo que tenha sido uma imprudência inserir isto, ele captou o âmago do texto, apesar de tudo [1]. Este é o sentido da passagem. Nós somos justificados pela fé somente. Somente desta forma podemos ter paz com Deus, por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo. Da mesma forma, nós lemos em Gálatas 2.16: “Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo ”.

O argumento inteiro do capítulo quatro da carta aos Romanos enfatiza o contraste entre “pela fé” e “pelas obras”. O apóstolo Paulo abre o capítulo citando o exemplo de Abraão, o pai de todos os crentes. Foi pela fé, uma fé que foi “lhe imputada como justiça”, que Abraão foi justificado. Antes de ser circuncidado, antes que ele fizesse qualquer coisa em obediência à Lei – quando ele era, aos olhos de Deus, simplesmente um pecador – ele foi considerado, sem obras, justo.

Assim, nossa justificação vem pela fé ( per fidem ). É importante notar que a linguagem bíblica não diz que somos justificados por causa da fé (propter fidem ), como se a fé em si fosse a virtude ou a base de nossa justificação. Não, nossa justificação é baseada em Cristo ( propter Christum ), que não podemos receber de outra forma além da fé somente. Por esta razão, John Murray afirma que não devemos falar da fé como a “causa instrumental” da justificação; isto tende a sugerir incorretamente que a fé de alguma forma é a base parcial de nossa justificação. Pelo contrário, devemos falar da “instrumentalidade” da fé, reconhecendo que a fé somente serve como um instrumento para receber a graça de Deus em Cristo. No entanto, talvez você esteja tentado a dizer “isto é uma distinção sem uma diferença”. Porém, o objetivo de Murray era deixar claro que a fé não nos dá algo que obrigue Deus a conceder o Seu favor. A fé é meramente a mão com que recebemos o que Deus garantiu para nós em Cristo. Fé é, como Calvino descreveu, um tipo “passivo” de ação; é se contentar em descansar no trabalho de Outro. A fé é um “cano vazio” por onde é transmitida toda a vida e sustento que vêm da graça de Deus em Cristo. A linguagem da fé sempre canta “nada em minhas mãos eu trago, simplesmente Tua cruz abraço” (Augustus Toplady).

Mas uma questão que surge neste ponto é: porque o ofício da fé é peculiar, e não das obras ou alguma outra virtude, para conceder a graça de Deus na justificação? O que há na fé que a faz um instrumento adequado? Precisamos ser cuidadosos ao responder esta questão, porque a resposta não pode ser simplesmente e somente porque a fé é trabalhada em nós pelo Espírito, através do Evangelho. Fé não é o instrumento único da justificação simplesmente porque é dom da graça de Deus. Porque sabemos que nossas boas obras também são dons da graça de Deus (Efésios 2.10). Toda virtude em nós é um dom concedido da graça de Deus. Portanto, esta não pode ser a razão pela qual a fé é o instrumento exclusivo e apropriado da justificação. Não, a fé é este instrumento porque é esta atitude ou disposição do coração que encontra sua suficiência em outro. A fé nos humilha perante Deus, e manifesta uma prontidão para simplesmente aceitar a justiça que é nossa em Cristo. Esta fé é inalteravelmente oposta a toda vanglória diante de Deus, à idéia de que existe algo em mim que me aprovaria diante dEle. A antítese entre fé e obras é expressa de forma concisa em Romanos 4.16: “Portanto, é pela fé, para que seja segundo a graça”.

Os Reformadores se sentiam incertos quanto às palavras corretas para expressar isto. Calvino, como vimos acima, fala da fé como algo “passivo”, como um “cano” que é pleno em Cristo. Fé é o conhecimento do pecador diante de Deus de que somente Cristo é nossa justiça. Não temos nada em nós mesmos para nos apresentar a Deus. Horatius Bonar expôs isso bem quando escreveu: “Fé não é obra; fé não é mérito; fé não é esforço. É a cessação de tudo isso. E a aceitação, no lugar disto, do que outro fez, e o fez completa e eternamente”. Fé é entendida pelo que o grande teólogo Warfield enfatizou quando afirma: “Somos justificados, não tanto pela fé, mas por Cristo, e a fé é nosso conhecimento disto”.

Este é o testemunho uniforme da Palavra de Deus. Os crentes desfrutam a graça da justificação gratuita quando eles abraçam, por meio da fé somente, a justiça de Cristo. Justificação é pela fé somente (sola fide) pela mesma razão que tem sua base em Cristo somente (solo Christus). Porque a fé se satisfaz em descobrir em Cristo apenas a justiça que nos faz aceitáveis a Deus e dignos de Seu favor divino.

 

Três Observações Finais

Agora, gostaria de levar nossas considerações sobre a doutrina da justificação ao fim. Eu farei na forma de três observações conclusivas. Estas observações estão na forma de afirmações sugestivas. Elas não prentedem ser exaustivas. Elas são oferecidas para levar você a pensar sobre estas coisas.

Primeiro, mesmo com o assunto de “evangélicos e católicos unidos” em jogo, pode ser bem possível, nestes terríveis tempos em que vivemos – com suas “guerras de culturas”, a política de aborto sancionada pelo governo, e o abandono da moralidade bíblica – que venhamos a ser “aliados de guerra” dos católicos romanos. E pode acontecer que caiamos rapidamente no exemplo dado a nós pelos Reformadores, em nossa prontidão para falar, encontrar e conversar com aqueles que representam a Igreja Católica Romana. Parafraseando uma afirmação de João Calvino, devemos estar preparados para cruzar os sete mares, se necessário, para conversar com representantes da Igreja Católica, se isto servir à causa de Cristo e testificar a verdade do Evangelho.

Porém, não devemos forçar afirmações de união que deixam confusas, ou incorretamente definidas, a disputa crucial entre Protestantes e Católicos. Não podemos concordar com uma afirmação que não leva o testemunho evangélico das boas-novas da justificação gratuita, pela graça somente, por Cristo somente, e por meio da fé somente. A menos que a afirmação represente um consenso verdadeiro da doutrina, devemos nos preocupar com definições que comprometem a verdade de que apenas Cristo é nossa justiça diante de Deus. Nosso testemunho sobre o Evangelho de Jesus Cristo, como aqueles que professam ser membros de igrejas verdadeiros, deve incluir um inflexível testemunho contra a falsa igreja que deixa Cristo de fora, que O acoberta debaixo de todos os tipos de invenções humanas, que compromete isto no ponto mais crucial, ao afirmar que mérito e justiça que são nossos, seja em parte, mesmo que não exclusivamente, são a base da nossa posição perante Deus.

O que estou defendendo é isto: apesar de devermos conversar e trabalhar com Católicos Romanos de várias formas como aliados, não podemos assinar declarações de união que gerem confusão, que dividam desnecessariamente a igreja evangélica e comprometa seu testemunho. O preço pago por compromissos do tipo é muito alto. Segundo, precisamos examinar como nossa própria pregação transmite clara e eloqüentemente o testemunho da doutrina da justificação gratuita. Quer ser claro, não falo por ter algum conhecimento profundo de sua pregação. Mas algumas vezes me pergunto por que a doutrina da justificação é tão mal-entendida, tão freqüentemente negligenciada, tão pouco pregada em nossos dias? Talvez vocês lembrem-se do chiste de Martinho Lutero que, ao lhe perguntarem “por que você prega sobre a justificação pela vigésima vez?”, respondeu “bem, as pessoas a esqueceram depois da décima-nona!”. Algo como este mesmo espírito parece afetar-nos como pregadores do Evangelho. Esta é nossa obrigação solene: pregar a Cristo e Este crucificado, e então pregar a Cristo novamente! Lembre-se, você é amigo do noivo. Você tem uma obrigação diante de Deus de levar ao povo de Deus a acusação que é feita em Sua Palavra , lembrá-los de que por eles mesmos são culpados e pecadores perdidos, apontar para Cristo somente como nossa justiça de Deus, levar aqueles que ouvem o Evangelho a crer e confiar em Cristo apenas para salvação.

Entristeço-me pelo fato, por exemplo, de que em muitas igrejas reformadas o ato litúrgico de “ler a Lei” tenha caído em desuso nestes tempos difíceis. Admitidamente, este ato poderia ser mais efetivo e significante que freqüentemente acontece. Esta não é tanto uma observação litúrgica quanto é teológica. Mas temo pela e igreja e pelo ministro que não lêem a Lei de Deus. Por quê? Porque uma igreja ou um ministro do tipo correm o risco de perder a doutrina da justificação. Porque esta é uma doutrina relacionada a tudo aquilo que Cristo fez por nós, por cumprir plenamente as obrigações da Lei e sofrer sua maldição em nosso favor. Como você se considera amigo do Noivo, se você negligencia contar à noiva como a Lei serviu como um “tutor” dela para levá-la a Cristo? É claro, você não deve pregar a Lei simplesmente como um martelo que esmaga (Lutero). Mas você pode (e deve) pregá-la como uma abertura da misericórdia de Deus em Cristo, como um prelúdio para o Evangelho que restaura a alma. Esta é a questão que devemos fazer a nós mesmos como pregadores: se eu analisar a substância de minha pregação, tenho sido um verdadeiro amigo do Noivo, que não somente prega a Lei, mas dá glórias a Cristo em toda a Sua suficiência, como Aquele que responde todas as nossas necessidades como pecadores? Tenho pregado de forma a levar os crentes a gloriarem-se somente no Senhor e em Sua justiça?

Terceiro, precisamos nos lembrar daquilo que Calvino, em suas Institutas, declara de forma maravilhosa como o benefício duplo desta doutrina. De acordo com Calvino, a doutrina da justificação tem dois grandes benefícios. Um deles é a paz e conforto que apenas ela pode dar a pecadores outrora temerosos. Se você uma vez teve medo ao pensar que um dia estará diante de Deus para ser julgado, você desejará ter certeza de que cada centavo do débito de seus pecados já foi pago. Você desejará ter a confiança de que Cristo não deixou nada passar quanto às obrigações da Lei em seu favor. Você desejará ter absoluta certeza disso. Veja, não estou negando que, em alguns momentos, os cristãos experimentam instantes de dúvida e épocas de desespero. Mas a única paz sólida que podemos obter a respeito de nossa posição diante de Deus deve ser baseada nesta doutrina. Negue a doutrina da justificação gratuita, argumenta Calvino, e você será como uma folha levada e carregada pelo vento perante Deus. Porque a maravilhosa consolação desta doutrina é que ela nos dá aquilo que o apóstolo Paulo fala em Romanos 5.1 – paz com Deus.

Mas o outro benefício desta doutrina é que ela dá crédito a quem é devido. A honra de Deus não é dividida entre Ele e nós. Cristo não é apresentado como meio-Salvador, cuja obra precisamos completar por nossa satisfação, por nossa estadia no purgatório, por nosso crescimento, corrida e obras. Um verdadeiro amigo do Noivo entende esta verdade se entender o seguinte: o que é ser zeloso pela glória e louvor do Noivo na igreja. Isto é o que leva você a pregar: declarar o louvor a Cristo, o louvor a Sua justiça, na assembléia de Seu povo.

Incidentalmente, esta observação nos traz de volta a minha primeira observação final. Por que deveríamos nos preocupar em prevenir “meias” formulações da verdade, ao fazer uma paz pré-matura com a Igreja Católica Romana? Porque somos pessoas rebeldes procurando uma briga? Não mesmo. Pelo contrário, é porque queremos seguir no caminho de Lutero e Calvino, e todos aqueles outros que vieram antes de nós, ao cuidar zelosamente da glória de Cristo. É porque nós não podemos pensar em nada mais repugnante ao nosso chamado e testemunho cristão que nos comprometer com um “evangelho” que diminui a obra de Cristo. Não desejamos, em outras palavras, tomar parte em qualquer declaração do Evangelho que nos prive de dar o louvor exclusivo a Cristo. A doutrina da justificação é justamente sobre isso: aquele que se gloria, glorie-se no Senhor!

 

 


Notas

[1] Entretanto, conforme R.C. Sproul, o qual, em Sola Fide, nos mostra que Charles Hodge encontra exemplos da inserção de “somente” na tradução deste verso em traduções anteriores à Reforma do séc.XVI.

 

 

Dr. Cornelis Venema, colaborar da The Outlook Magazine, ensina Estudos Doutrinários no Mid-America Reformed Seminary in Dyer, Indiana.


Tradução: Josaías Cardoso Ribeiro Jr.



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