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Cuspir em Cristo, a Despeito dos Gregos

Se você transmitir essas instruções aos irmãos, será um bom ministro de Cristo Jesus, nutrido com as verdades da fé e da boa doutrina que tem seguido. Rejeite, porém, as fábulas profanas e tolas, e exercite-se na piedade. O exercício físico é de pouco proveito; a piedade, porém, para tudo é proveitosa, porque tem promessa da vida presente e da futura. (1 Timóteo 4.6-8)

Há certos princípios fundamentais no sistema cristão sobre os quais toda a Escritura descansa. Existe um único Deus. Esse Deus é uma unidade de Pai, Filho e o Espírito Santo. O homem foi criado bom, à imagem de Deus, mas caiu do seu estado inicial por causa do pecado, que é uma transgressão da lei de Deus. Para redimir o seu povo, isto é, aqueles indivíduos que ele escolheu salvar de entre a humanidade pecaminosa, Deus o Filho tomou sobre si uma natureza humana, para que pudesse ser o único mediador entre Deus e os homens. Ele é o único caminho para Deus e a salvação. Aqueles que são salvos por ele não somente estão ligados a ele, mas são também libertos nele, de forma que nenhuma outra pessoa, nenhuma outra religião ou filosofia, e nenhum sistema de rituais e regulamentos inventado por homens pode exercer qualquer autoridade sobre suas almas. Ele é o verdadeiro pastor, e as ovelhas ouvem sua voz. Elas não seguirão a voz de outro, nem estão obrigadas a prestar qualquer atenção a ela.

Um bom ministro de Jesus Cristo lembrará continuamente as pessoas desses princípios fundamentais do evangelho e adverti-los-á contra as falsas doutrinas. Visto que as falsas doutrinas tendem a contradizer verdades básicas, a forma mais eficaz de proteger os crentes do engano é reforçar os temas proeminentes da fé cristã continuamente, em várias ocasiões e a partir de vários ângulos. Então, quando surge uma ameaça, os crentes ou a detectarão por conta própria, ou reconhecerão rapidamente o perigo quando um ministro fiel chamar a atenção para isso. As doutrinas de demônios que Paulo tinha em mente em sua carta inclui a proibição contra o casamento e a abstinência de certos alimentos, provavelmente sobre uma base religiosa. Mas isso é contra as próprias verdades básicas da criação de Deus, a bondade dessa criação, a suficiência de Cristo, e a dependência inteira do crente de Cristo para o seu perdão, justificação e livre acesso diante de Deus.

O ministro não tem nenhuma esperança de edificar crentes na fé e protegê-los de doutrinas sedutoras se ele mesmo tiver uma fraca compreensão do evangelho. Assim, ele deve ser uma pessoa que seja “treinada nas palavras da fé e na boa doutrina” (ESV). Então, Paulo diz a Timóteo: “Exercite-se na piedade”. Isso também sugere um estudo vigoroso e persistente da sã doutrina, visto que o apóstolo declara isso como um contraste contra os “mitos” e “fábulas”. Evite o absurdo. Busque a verdade. Esse é um princípio essencial para o ministro do evangelho. Essa é a forma como ele deve viver sua vida. É o seu moto.

Ao se referir à busca da piedade como treinamento, Paulo emprega a imagem de um atleta, e embora não esteja falando sobre treinamento físico, aplica o conceito ao treinamento espiritual. Comentaristas gostam de afirmar que o apóstolo não menospreza o exercício físico, mas apenas está afirmando a importância maior do exercício espiritual. Isso parece ser a tática de ler no texto algo que eles gostariam que Paulo reconhecesse, em vez do que ele realmente diz. Sua declaração pode não menosprezar o treinamento físico em si, mas o treinamento físico não é mencionado por si só. Antes, é mencionado como um contraste contra o treinamento espiritual, de forma que o apóstolo de fato menospreza o treinamento físico, pelo menos em relação ao treinamento espiritual. Um copo de papel tem certo valor, mas uma mansão é de grande valor. Um copo de papel não possui valor zero, ou mesmo negativo, mas quando comparado a uma mansão, a declaração não elogia o copo de papel.

A Bíblia faz uma clara distinção, e frequentemente um claro contraste, entre o físico e o espiritual. Ela também martela sobre a ideia, novamente e novamente, que o espiritual é mais importante que o físico. Certamente, você pode realizar treinamento físico para a honra de Deus. A Bíblia ensina que o seu corpo é o templo do Espírito Santo, e segue-se que você deveria cuidar dele, de forma que possa servir a Deus com seu corpo e tornar a fé de Jesus Cristo respeitável. Isto é, você pode honrar a Deus com treinamento físico até que sua cara fique azul, mas Paulo ainda diz que o treinamento espiritual é mais valioso. Ele é diferente. É superior. Em forte contraste contra o mero treinamento físico, o treinamento espiritual para “tudo é proveitoso”.

Há alguns cristãos que desprezam essa distinção, esse contraste, e essa priorização entre o espiritual e o físico, porque consideram essa forma de pensamento como um produto do pensamento grego. Ora, eu não me importo com o que pensavam os gregos, ou o que as pessoas pensam que os gregos pensavam (visto que frequentemente elas deturpam os gregos) – grego ou não, a Bíblia diz o que diz aqui. Se você disser que os gregos concordam com isso, então bom para os gregos, e pior para você se discordar, mas isso não muda o que a Bíblia diz.

Os teólogos frequentemente falam sobre como a filosofia grega tem distorcido a teologia cristã. Contudo, eles se tornaram tão obcecados com isso que, desde há muito tempo, a suposição que a contaminação grega permeia o nosso pensamento se tornou uma força que molda o pensamento teológico de muitas pessoas. A suposição que a filosofia grega distorceu a teologia cristã – essa própria suposição, e a obsessão de identificar e corrigir essa distorção – tem por sua vez distorcido a teologia cristã. Em sua campanha de afastar qualquer coisa que percebem como grego, eles têm atropelado também ensinos bíblicos verdadeiros. Às vezes eles terminam ensinando o próprio oposto do que a Bíblia afirma. Eles têm em mente as coisas que pensam caracterizar a filosofia grega, e então simplesmente assumem que a Bíblia ensina o oposto, mesmo quando declarações explícitas da Bíblia afirmam o que eles pensam ser contaminação grega. Longe de ser bíblica, a teologia deles é um produto de filosofia anti-grega. Eles criaram sua própria tradição antibíblica, talvez uma que os capacite a soar um gongo justo enquanto convenientemente escuse-os de rejeitar claros ensinamentos bíblicos.

Por exemplo, há a suposição que a filosofia grega ensina que existe uma forte distinção entre a alma e o corpo, e que o corpo é inerentemente mau. E a partir da ideia que o corpo é mau, ou pelo menos insignificante, certos princípios são inferidos os quais não podem ser reconciliados com a visão bíblica. Em contraste, eles alegam, o pensamento hebraico mantém que a pessoa humana é uma unidade, e não deveria haver nenhuma distinção rígida entre a alma e o corpo. Um teólogo zombou do pensamento supostamente grego chamando-o de teoria do “fantasma numa máquina”. Mas então ele mesmo levantou a pergunta de como alguém pode permanecer uma pessoa humana após a morte. Ele disse: “Isso é um mistério”.

Essa resposta patética, sem dúvida, pode ser usada para defender qualquer visão, seja qual for. Ela lida com todos os argumentos não respondendo o desafio, mas jogando todo o debate num buraco negro. Mas isso não é um mistério – ele estava simplesmente errado. A Bíblia diz que uma pessoa humana consiste de alma e corpo, e o elemento definidor é a alma. Jesus disse aos seus discípulos para não temer os homens, que poderiam matar apenas o corpo, mas para temer a Deus, que poderia atormentar tanto o corpo como a alma. Ele disse que o que entra num corpo por meio da boca percorre todo o corpo e sai como lixo. Assim, nenhum alimento é inerentemente impuro. Mas o que sai de uma pessoa, de seu coração ou alma, é aquilo que o torna impuro, pois daí pode vir assassinato, adultério, idolatria e assim por diante. Paulo escreve que, para o cristão, embora o corpo se deteriore, o homem interior é renovado todos os dias. Tanto Paulo como Pedro observam que as mulheres não deveriam se tornar belas adornando o corpo, mas adornando a alma – isto é, por um espírito manso e quieto, que admitidamente exibe suas qualidades por meio das boas obras. Pedro refere-se ao seu corpo como uma tenda ou casa que em breve ele deixaria para trás. Isso pode não ser o mesmo que “fantasma numa máquina”, mas talvez não possamos esperar algo mais próximo numa linguagem do primeiro século. E aqui Paulo diz que o físico é distinto do espiritual, e que o espiritual é mais valioso.

Teólogos da tradição Reformada, como aquele já mencionado, frequentemente se orgulham de trazer um corretivo para as distorções gregas na teologia cristã, mas eles infligem um dano bem maior por sua insistência em ensinar o oposto do que pensam constituir o pensamento grego. Ao descartar como mistério algo que não pode ser reconciliado com a Escritura, esse teólogo estava disposto a sacrificar a clareza e a certeza da revelação cristã para proteger seu preconceito e tradição. Isso não é melhor que a contaminação grega. (Eu diria que a rejeição da atemporalidade divina como uma influência grega é em si um resultado, não de exegese bíblica competente ou pensamento teológico sadio, mas de uma reação anti-grega que tem resultado numa negação da doutrina bíblica. A contaminação não é o pensamento grego, mas o pensamento anti-grego, ambos dos quais não tem nada a ver com o que a Bíblia diz).

Apenas uns poucos versículos antes, Paulo escreve: “Pois tudo o que Deus criou é bom, e nada deve ser rejeitado”. Esse é supostamente um dos versículos bíblicos que refutam a distinção “sagrado vs. secular”. E a partir dessa rejeição da distinção, uma série de outras ideias têm sido articulada – incluindo a justificação para o capitalismo, democracia, esportes, filmes e quase qualquer outra coisa na qual alguém deseja se engajar supostamente “para a glória de Deus” no processo de cumprir o mandato cultural. Essa linha de pensamento é comum na teologia Reformada, e é apresentada como um corretivo contra muito abuso na doutrina e prática, incluindo como os crentes consideram suas ocupações e atividades diárias. Embora seja de fato um corretivo em alguns casos, ela tem também criado vários problemas e aplicações estranhas. Aqui não argumentarei se a doutrina bíblica deveria ou não ser expressa como uma negação da distinção “sagrado vs. secular”, visto que isso envolve uma nuvem de confusão que não pode ser resolvida aqui. Mas quer a doutrina como declarada aqui seja sã ou não, consideremos algumas das inferências que têm sido extraídas dessa ideia.

A doutrina é comumente associada com o sacerdócio de todos os crentes, uma doutrina que eu afirmo e recomendo com entusiasmo. Mas nem todas as aplicações são legítimas. Um estudioso escreve: “Visto que todos os crentes são sacerdotes, isso significa que todos os trabalhos são santos”. Isso é falso e perigoso. Se todos os trabalhos são santos, então seria santo os crentes serem prostitutas, assassinos e traficantes de drogas. Se é dito que os crentes verdadeiros jamais participariam dessas ocupações, então a doutrina não existe mais, mas tornou-se: “Visto que todos os crentes são sacerdotes, então isso significa que eles não aceitarão ocupações profanas”. Isso destrói a alegação inicial que procede do sacerdócio de todos os crentes. Ela é uma falsa inferência a partir da doutrina.

Uma alegação mais leve, também comum, é que devido ao sacerdócio de todos os crentes, podemos honrar a Deus em qualquer situação na qual nos encontremos, e nenhuma ocupação é mais santa ou honrosa que outra. Até mesmo a pregação não é superior a outras ocupações. A pregação não é mais importante que, digamos, a contabilidade ou a construção. Contudo, os mesmos teólogos insistiriam que quer uma pessoa faça contabilidade ou construção é uma questão indiferente, ou pelo menos de preferência individual, mas em outro contexto também insistiria que todos os crentes devem pregar o evangelho, e que a pregação não é uma questão indiferente ou de preferência. Você pode ou não fazer contabilidade, mas deve pregar o evangelho. Mas se a contabilidade é tão santa, tão importante, tão honrosa a Deus quanto a pregação, então por que não fazer simplesmente mais contabilidade? Se a resposta é que a Escritura ordena a pregação e não a contabilidade, então essa não é uma admissão que a Escritura faz uma distinção entre as duas? Quer chamemos a distinção de “sagrado vs. secular” é um aspecto do debate, mas que existe uma distinção enorme não está sujeito a discórdia, a menos que alguém queira denunciar sua fidelidade à tradição humana e não à revelação divina. Ora, há centenas de milhares de outros exemplos. Se isso não destrói a teoria daqueles que se opõem à distinção “sagrado vs. secular”, pelo menos parece destruir quase todas as suas aplicações da teoria. Parece que mesmo que a Escritura endosse uma doutrina semelhante ao que afirmam, eles têm exagerado sua aplicação.

Sua forma de pensamento tem produzido muita distorção da Escritura, e tem infligido muito dano à doutrina e prática cristã. Por exemplo, Paulo escreve aos Colossenses: “Portanto, já que vocês ressuscitaram com Cristo, procurem as coisas que são do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus. Mantenham o pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas” (Cl 3.1, 2). Isso é inaceitável para aqueles que pensam que tais distinções não deveriam ser feitas se toda a criação de Deus é boa, se todos os crentes são sacerdotes, e se tudo da vida deve ser considerado como “sagrado”. Assim, um escritor afirma que a distinção entre “coisas do alto” e “coisas terrenas” não é espacial, mas ética. Isso é o que ele diz para manter a tradição, mas a passagem não permite essa interpretação. Paulo define “do alto” como o lugar “onde Cristo está assentado à direita de Deus” – é uma referência espacial. Mesmo que alguém considere a mão “direita” como simbólica, a ascensão não é simbólica. Ao afirmar que a referência é meramente ética e não espacial, o escritor em efeito ataca uma doutrina central da fé cristã, isto é, a ascensão física do Senhor Jesus Cristo, e dessa forma comete blasfêmia por implicação. Aqui vemos quão perigosa é uma insistência teimosa sobre essa falsa doutrina, ou pelo menos quão perigosa pode ser uma aplicação falsa de uma doutrina verdadeira.

Paulo está na verdade dizendo que deveríamos nos focar nas coisas “do alto”. Tal como acontece com o versículo sobre treinamento físico, alguns poderiam dizer que ele todavia não menospreza as coisas terrenas. Mas o apóstolo desaponta-os, visto que ele adiciona “não nas coisas terrenas”. Ora, quer Paulo esteja fazendo ou não uma distinção “sagrado vs. secular” é algo que não importa discutir nesse lugar, mas ele está fazendo algum tipo de distinção, e uma que é inaceitável entre alguns círculos hoje. Eu insto que essas pessoas reconsiderem e restaurem esse ensino bíblico em sua teologia, estilo de vida e pregação.

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Fonte: Reflections on First Timothy

Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto

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