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Esposo Santificado e Filhos Santos

Comentário sobre 1 Coríntios 7.14

14. Porque o esposo descrente é santificado pela esposa.

Paulo resolve uma dificuldade que poderia deixar os crentes preocupados. A intimidade conjugal é singular, porque a esposa é a metade do homem e ambos se tornam uma só carne; e o esposo é a cabeça da esposa e ela é a companheira do esposo em todas as formas. Assim, aparentemente é impossível a um homem crente viver com uma esposa descrente, ou vice-versa, sem que haja contaminação numa relação tão íntima. Paulo, pois, aqui declara que esse matrimônio não é em nada menos santo e legítimo, e que não deve pairar qualquer temor de haver contaminação, como se a esposa fosse poluir o esposo. Além disso, lembremo-nos de que ele aqui não está falando de novos contraentes conjugais, e, sim, da manutenção daqueles que já consumaram o contrato. Porque onde se indaga se um homem crente se casaria com um homem descrente, então este conselho se faz relevante: “Não vos ponhais em jugo desigual entre os incrédulos, porque não há harmonia entre Cristo e Belial!” [2Co 6.14, 15]. Mas o homem que já está casado não mais tem a liberdade de escolha; por essa razão se torna distinto o conselho que ele apresenta.

Embora haja quem interprete a santificação referida aqui em termos diferentes, eu a considero como aplicável simplesmente ao matrimônio. Meu ponto de vista é como segue: em todos os aspectos, uma esposa crente parece tornar-se impura no contato com o esposo descrente, de modo que a parceria se torna ilícita. Todavia, isso é diferente, porque a piedade de um faz o matrimônio mais santo do que a impiedade do outro em torná-lo impuro. Consequentemente, um crente pode viver com um descrente com sua consciência limpa, porque, no que diz respeito aos atos sexuais e às relações ordinárias do dia a dia, o descrente é santificado, de modo que ele ou ela não contamina o parceiro crente com sua impureza [pessoal]. Entretanto, esta santificação não é para o benefício pessoal do parceiro descrente. Seu valor se limita ao fato de que o parceiro crente não é contaminado pelo contato sexual com o parceiro descrente, e o próprio matrimônio não é profanado.

No entanto, daqui surge uma dúvida. Se a fé de um esposo cristão, ou de uma esposa cristã, santifica o matrimônio, segue-se que todos os matrimônios entre os descrentes são impuros e se põem na mesma categoria da fornicação. A isso respondo: para os descrentes nada é puro, visto que conspurcam, através de sua impureza, até mesmo as mais excelentes e as mais amáveis criações de Deus. Assim, é por esse mesmo prisma que eles também conspurcam o matrimônio, visto que não reconhecem Deus como a fonte do matrimônio, e por essa razão não possuem a mínima capacidade de genuína santificação, e, com suas consciências culpadas, abusam do matrimônio. Seria ingênuo concluir disso que o matrimônio, no caso deles, está no mesmo nível da fornicação, visto que, não importa quão impuro seja para eles, não obstante permanece puro em sua própria natureza, visto que o mesmo foi ordenado por Deus. Ele cumpre as funções de preservar a respeitabilidade na sociedade, e controla os desejos promíscuos. E assim, à luz desses propósitos, ele é aprovado por Deus, como o são as demais partes da ordem social [ordinis politici]. Portanto, deve-se fazer sempre uma distinção entre a natureza de uma coisa e o uso abusivo dela.

Senão seus filhos seriam impuros.

Este é um argumento com base no efeito: “Se vosso matrimônio fosse impuro, então vossos filhos também nasceriam impuros; no entanto, eles são santos, visto que vosso matrimônio é também santo. Portanto, assim como a impiedade de um dos pais não impede o filho de nascer santo, assim ela não impede o matrimônio de ser inerentemente imaculado.” Alguns gramáticos explicam esta passagem como uma referência à santidade civil [de sanctitate civili], ou seja, os filhos são considerados legítimos. Não obstante, precisamente a mesma coisa pode-se dizer sobre os filhos dos descrentes. Daí esta explicação cai por terra. Além do mais, é verdade que Paulo desejava aqui mitigar as consciências atribuladas, de modo que ninguém concluísse que ele estivesse restringindo a impureza, como já ficou expresso. Portanto, esta passagem é mui notável e se acha fundamentada na mais profunda teologia. Pois ela revela que os filhos dos crentes são separados dos demais por um privilégio especial, de modo que são considerados santos na Igreja.

Entretanto, de que forma esta declaração se harmoniza com o que Paulo ensina em Efésios 2.3 – que somos todos “por natureza filhos da ira” –, bem como o clamor de Davi: “Eu nasci em iniquidade” etc. [Sl 51.5]? A isso respondo que há na semente de Adão uma propagação universal tanto do pecado quanto da condenação. Daí, todos estão incluídos nessa maldição, sejam eles nascidos dos crentes ou dos ímpios, pois não é na qualidade de regenerados pelo Espírito que os crentes geram filhos segundo a carne. Consequentemente, todos se acham na mesma condição natural, de modo que são vassalos não só do pecado, mas também da morte eterna. Quanto ao fato de o apóstolo aqui atribuir privilégio especial aos filhos dos crentes, isso emana da bênção do concerto, por cuja intervenção a maldição da natureza é destruída, e por isso os que por natureza eram impuros, agora são consagrados a Deus em decorrência de sua graça. Assim Paulo argui em Romanos 11.16, dizendo que todos os descendentes de Abraão são santos, visto que Deus consumou um concerto de vida com ele. “Se a raiz é santa, então os ramos também o são”, diz ele. E Deus chama meus filhos a todos os que descenderam de Israel. Agora que o muro divisório foi derrubado, o mesmo concerto de salvação, o qual teve seu início na semente de Abraão, nos é comunicado. À luz do fato de que os filhos dos crentes são feitos exemplos da comum condição da humanidade, para que sejam separados para o Senhor, por que deveríamos subtrair deles o sinal [do concerto]? Se o Senhor os admite em sua Igreja, através de sua Palavra, por que deveríamos negar-lhes o sinal? Não obstante, precisamente como os filhos dos crentes são santos, e como muitos deles, a despeito de tudo, se tornam degenerados, o leitor encontrará o tema explicado nos capítulos 10 e 11 de Romanos, onde trato deste assunto ao comentar estes capítulos.

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Fonte: João Calvino, 1 Coríntios (Edições Parakletos), p. 217-219.