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Contra o Seqüestro do Esporte Moderno

Nota do autor: Este texto foi encomendado pela recém-criada revista “Preço do Sistema” (Nov. 2009) e traz uma reflexão breve sobre as cosmovisões que direcionaram o desenvolvimento histórico do esporte olímpico e uma crítica à “estatização” do esporte associado como uma invasão da soberania de esfera.

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Todo mundo sabe que existe uma grande diferença entre as Olimpíadas modernas e a sua instituição “xará” da antigüidade clássica. O abismo entre uma coisa e outra não é somente quantitativo (por exemplo, há hoje um maior número de competidores e de esportes do que na Grécia antiga). Pelo contrário, as diferenças mais interessantes são de natureza qualitativa.

Considere, como ilustração, o status relativamente independente do esporte nos nossos dias: será que as coisas sempre foram assim? A resposta deve ser negativa. É claro que houve um tempo em que certas áreas da vida, como o lazer, por exemplo, eram pouco diferenciadas daquilo que se considerava o “motor” cultural. No caso das Olimpíadas originais, é curioso notar como a prática da competição refletia um dos princípios-chave da civilização grega: os jogos eram parte de um festival religioso e público dedicado a Zeus. Ou seja, dependiam necessariamente do contexto à sua volta, e realizá-los sem essa referência era simplesmente impensável.

Existem mais indicações dessa relação entre os jogos antigos e esse ponto central da cultura grega. É bem certo que as Olimpíadas veiculavam o discurso controverso da visão de mundo pagã centrada na ideia de Forma. O corpo do atleta serviria como uma ilustração de uma quase-perfeição, uma espécie de “reflexo” terreno dos princípios eternos das formas perfeitas.

Segundo a religiosidade clássica tardia, a Forma deveria contar como a Origem da unidade, diversidade e coerência do cosmos. Porém, a religião da Forma não era tão popular como parece. Privadamente, as pessoas continuavam a manter uma crença no princípio rival da Matéria – uma força inevitável controladora de todo o ciclo universal de criação, desenvolvimento e destruição. Algo parecido com a noção de “destino”. O teatro grego antigo é representativo do choque entre os dois princípios rivais de Forma e Matéria. Os filósofos jamais conseguiram conciliar essas duas Origens auto-excludentes. No máximo, afirmaram que uma era absoluta, e a outra, relativa. Uma coisa é certa: os gregos viviam sob a influência de ambas as ideias, mas por algum motivo, as autoridades públicas resolveram adotar o princípio da Forma como a religião “oficial”. Daí a função do festival oficial das Olimpíadas como uma espécie de “força uniformizadora” das cidades-estado gregas em torno de um ponto comum.

Duas das conseqüências desse foco da vida pública no princípio da Forma são interessantíssimas para comparar as Olimpíadas de ontem com as de hoje. A primeira é ilustrada no que Aristóteles tem a dizer sobre a cidade-estado e as suas partes. Segundo ele, cada ser humano busca o bem na realização da sua finalidade. Esse propósito benigno, claro, deriva da ideia de Forma perfeita, tal como a maioria das grandes noções positivas. No final das contas, o método para atingir essa ideia perfeita é o uso da razão. Porém, visto que não vivemos em isolamento uns dos outros, precisamos, então, organizar a comunidade política segundo o que melhor habilita o uso da razão. Sem surpresa, Aristóteles conclui que a comunidade mais apta ao uso da razão é a cidade-estado, pois, nela, é possível trocar ideias em público. O que ele quer dizer é que somos todos partes de um todo que nos “orienta” para a busca do bem. No pensamento aristotélico, a família, os indivíduos, a associação religiosa e assim por diante, são meras partes de um todo: a cidade-estado. A finalidade e o propósito da cidade-estado orientam a finalidade e o propósito das demais “partes”: sem a cidade-estado, qualquer associação é menos que racional, portanto, menos que humana.

Isso leva ao segundo ponto: e quem não pertence a uma cidade-estado? O que dizer deles? A resposta de Aristóteles é clara: são bárbaros, inimigos daqueles que buscam verdadeiramente uma vida racional e, portanto, devem ser escravizados. (Essa noção aristotélica, aliás, não parece tão distante dos nossos tempos, se pensarmos nas “guerras para democratizar” este ou aquele país aleatório que aparentemente se encontra fora de sintonia com o que alguns países mais fortes pensam). As cidades-estado gregas entre si eram consideradas como partes do mesmo povo. Daí, o princípio da Forma, ao invés de criar uma semi-guerra entre os diferentes lados representados nas Olimpíadas, reforçava a sua unidade. Isso também explica por que estrangeiros (bárbaros) não podiam participar. Além disso, o fato de que todas as associações da cidade-estado eram meras “partes” do todo explica o caráter dependente do esporte em relação à comunidade política. Por fim, fica evidente agora a conveniência dos esportes na celebração da cidade-estado e da religião pública dos deuses do Olimpo, ambas concentradas na noção de Forma. As Olimpíadas, em outras palavras, eram uma forma rotineira de se exaltar a unidade de propósito e finalidade da vida pública na cidade-estado.

Comecei meu argumento indicando a diferença qualitativa entre as Olimpíadas antigas e modernas. Afirmei que, hoje, o esporte associado tem uma certa “independência” que o esporte antigo não tinha. Sugeri que a ligação entre a cidade-estado e as competições olímpicas não permitiu o desdobramento de uma “esfera” independente do esporte, por ser considerado uma parte subserviente à comunidade política. Agora, porém, devo perguntar novamente: será que existe mesmo tanta diferença assim entre as duas Olimpíadas? Nenhuma resposta curta liquidaria o assunto, mas uma coisa é clara: temos assistido a um retrocesso da independência da “esfera” esportiva por motivos semelhantes aos que ligaram o esporte antigo firmemente aos propósitos políticos.

O que eu quero dizer é que as Olimpíadas modernas têm, passo a passo, sido “sequestradas” pelo Estado. E isso com a parceria de empresas, sejam elas públicas ou não, todas beneficiadas por uma “atenção especial” que o governo lhes concede com os novos investimentos. O fenômeno, provavelmente a se repetir no Brasil nos próximos anos, foi semelhante em diversos lugares do passado. O esporte associado moderno vai aos poucos perder sua estrutura interna própria, sua independência externa, e sua lógica própria. Passa a ser um instrumento de governo sob o discurso ufanista do nacionalismo esportivo. Basta lembrar de como os governos gabam-se de sediar este ou aquele evento esportivo internacional, e de como isso serve de desculpa para alocar uma certa quantia de dinheiro público. Basta lembrar de como os EUA e a URSS usaram suas medalhas de ouro e boicotes como propaganda política (o que ecoa a inimizade dos gregos contra os de fora). Basta lembrar dos ânimos exaltados nem tanto por conta dos jogos em si, mas do que eles representam para a bandeira nacional. Países inteiros se unem, tal como nos tempos antigos, mas, agora, em torno do princípio (religioso?) coletivista da Nação.

Nem o esporte associado, nem o mercado, nem a igreja são “partes” do Estado. Cada uma dessas “esferas” é um todo em si mesma. Cada uma delas é bem-vinda por conta de sua capacidade de adicionar mais cor à vida. Tratar a pluralidade diferenciada das associações de outra forma sempre resultou em enormes distorções ao longo da história: do colorido de volta ao monocromático! Na antiguidade, o esporte, ainda jovem, teve que se submeter aos propósitos da associação política. Considero uma vitória histórica o desdobramento moderno de uma “esfera” independente do esporte. Entretanto, tudo indica que estamos em uma fase de retrocesso. Quem perde com isso? Todos nós que apreciamos o esporte pelo que ele é, ou veio a se tornar na vida moderna, e não pelo que querem fazer dele.

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Fonte: Preço do Sistema, 1 (Nov. 2009).

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