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O Liberalismo Fracassou Porque Ele Colapsou sob Seu Próprio Peso por David Koyzis e Bruce Ashford

Um liberal acredita na liberdade, certo? Bem, é claro. Está bem ali no nome. Mas e se a busca liberal de expandir a nossa liberdade está na verdade erodindo as nossas liberdades? Esse é o argumento de Patrick J. Deneen, professor associado de ciência política na University of Notre Dame, em Why Liberalism Failed [Por que o liberalismo falhou], uma contribuição persuasiva ao debate político atual na América do Norte.

Como e por que o liberalismo está falhando? Primariamente porque o liberalismo, uma filosofia política com séculos de idade, se baseia num entendimento defeituoso da pessoa humana. O liberalismo ignora o enraizamento da pessoa em comunidades locais e em sua miríade de costumes e influências, substituindo esse enraizamento por uma lealdade desordenada ao estado e ao mercado, os instrumentos de nossa suposta libertação.

Na visão de Deneen, os Estados Unidos como um todo foi estabelecido em princípios liberais e eles se desenvolveram nos últimos dois séculos e meio de forma consistente com os pressupostos subjacentes do liberalismo, mas inconsistentemente com uma constituição social saudável. Todavia, a dominação predominante do liberalismo foi disfarçada pela polarização superficial recente do terreno político nacional em duas facções.

De fato, nossos conflitos mais veementes colocam liberais clássicos, com sua afeição por um mercado livre e um governo reduzido, contra liberais progressistas, que veem o governo como um instrumento para a expansão da autonomia individual. A nossa imersão nessa debate interno disfarça a realidade de que nós já decidimos a questão do regime. A despeito de nossas supostas diferenças, concordamos que o liberalismo é o arranjo político ótimo para a humanidade. As nossas principais discordâncias são assim sobre meios e não fins.

No que, então, o liberalismo falhou? Se todos nós aparentemente apoiamos os seus objetivos, por que Deneen julga que ele falhou em cumprir as suas promessas? Por causa de suas falhas estarem diretamente relacionadas a seus sucessos, por causa da ênfase do liberalismo no indivíduo autônomo que se vê entre o estado e o mercado, ele minimiza e até subverte as instituições e associações que são irredutíveis às vontades do estado e do indivíduo.

As falhas do liberalismo estão diretamente relacionadas a seus sucessos.

O liberalismo proclama as liberdades individuais, mas, ironicamente, efetivamente facilita o desempoderamento, fragmentação e ressentimento. Como o estado expande, a fim de proteger e promover a liberdade individual, sua burocracia despersonalizada e o mercado globalizado se tornam forças crescentemente poderosas a que os indivíduos isolados precisam se submeter.

Os movimentos populistas e nacionalistas de hoje sugerem que o liberalismo está falhando em alguns aspectos relevantes, não porque ele traiu seus próprios princípios, mas porque ele está sendo coerente consigo mesmo e está, agora, experimentando as contradições e os absurdos inerentes a sua lógica interna.

O fracasso do liberalismo

Deneen divide o seu argumento em sete capítulos e uma conclusão. Em “Liberalismo insustentável”, ele admite que “nenhuma outra filosofia política provou na prática que poderia abastecer a prosperidade, prover relativa estabilidade política e fomentar a liberdade individual com tanta regularidade e previsibilidade” (p. 21). Isso tem sido uma parte relevante do apelo do liberalismo num mundo contaminado pela pobreza e tirania. É verdade também que o liberalismo se baseou num legado pré-liberal que o manteve, mas que ele é incapaz de renovar. Porque o individualismo do liberalismo foi nutrido por recursos enraizados em tradições comunitárias e porque o individualismo faz pouco ou nada para fomentar a comunidade, ele depender de um depósito cada vez menor de capital social e cultural.

Em “Unindo Individualismo e Estatismo”, Deneen argumenta que, embora liberais clássicos e progressistas estejam ocupados se digladiando sobre autonomia individual e um governo mais extenso, falhamos em reconhecer que essas duas realidades existem num relacionamento de fortalecimento mútuo. Por causa da ênfase do liberalismo no indivíduo suspenso sob o Estado, ele minimiza e até subverte as outras associações e instituições da sociedade. Uma vez que os indivíduos são liberados de normas culturais e laços sociais, eles não têm mais redes e associações confiáveis para apoiá-los. Assim, o Estado é a instituição a que eles recorrem.

Então chegamos em “Liberalismo como anti-cultura”, em que Deneen observa que liberais, clássicos ou progressistas, desejam minar o papel normativo e formativo da cultura na sociedade. Eles querem minar culturas locais e suas respectivas normas sociais, substituindo-as com uma anti-cultura abrangente. Culturas locais ficam em pedaços e frangalhos, mantidas juntas por consumismo ideológico. A subversão dessas associações localizadas tornam, ironicamente, o indivíduo submisso a um aparato pesado de um direito federal abstrato e despersonalizado.

Aqueles que tratam do relacionamento entre o liberalismo e o nosso predicamento atual dificilmente podem ignorar a influência da tecnologia, e Deneen não é uma exceção. Embora muitos observadores lutem contra a tecnologia, assumindo que somos de alguma forma escravos a seus imperativos, em “Tecnologia e a perda da liberdade”, Deneen entende que moldamos a tecnologia de acordo com nossas convicções centrais. Ademais, e é aqui que Deneen provavelmente causará polêmica, ele crê que até mesmo a república americana que os pais fundadores moldaram na década de 1780 é uma tecnologia poderosa feita para nos libertar da necessidade de sermos virtuosos e que nos encoraja a nos tornamos indivíduos egoístas à mercê de nossos próprios desejos. A Constituição se juntou a tecnologias modernas para minar a comunidade e subverter a nossa capacidade para o autogoverno.

Por mais que filósofos políticos passados, começando com Platão e Aristóteles, concentrem-se na educação como um elemento crucial na vida da pólis, Deneen aborda a difícil situação das universidades em “Liberalismo contra as artes liberais”. Em sua cruzada contra normas culturais, o liberalismo subverteu exatamente a tradição educacional, as artes liberais, que fomentaram a sua ascensão. Ele subverte as artes liberais minimizando as normas e tradições civilizacionais que as artes liberais outrora estudaram e no seu lugar fomenta um pseudo-multiculturalismo que efetivamente homogeneíza a educação. O liberalismo transforma as Humanidades, causando os estudantes a se concentrarem na identidade, opressão e ressentimento. Mas, acima de tudo, minimiza a relevância das Humanidades, sinalizando aos estudantes que as únicas áreas verdadeiramente legítimas de estudo são economia, negócios e as disciplinas de Exatas: ciência, tecnologia, engenharia e matemática.

Em “A nova aristocracia”, Deneen aponta que, enquanto que o liberalismo se opôs à velha nobreza ligada à terra e seus privilégios, ele substituiu o arranjo anterior por uma ordem embasada no mérito cuja elite teria os talentos corretos para negociar um novo mundo sem as antigas normas culturais, obrigações comunitárias e restrições naturais. A ordem mundial liberal se define em vencedores e perdedores. Os perdedores tendem ser pessoas com educação precária vivendo em áreas rurais, enquanto que os vencedores tendem ter uma educação elevada e são pessoas comparativamente ricas vivendo nas cidades e nos subúrbios. A nova aristocracia facilmente se perpetua, porque a elite tem uma vantagem significativa ao dar a seus filhos os recursos necessários para continuar nos escalões superiores da sociedade. É um mundo solitário em que os indivíduos se tornaram desassociados das redes sociais e comunidades que anteriormente os moldariam e apoiariam.

Em seguida, chegamos a “A Degradação da cidadania”, em que Deneen argumenta que, ao tentar cortar os poderes das facções locais, a Constituição efetivamente distraiu as atenções dos cidadãos da “proximidade e imediaticidade da municipalidade” (p. 176), onde eles teriam um impacto mais efetivo, para uma arena nacional em que suas energias seriam dissipadas, habilitando o governo pelas elites. Em outras palavras, o liberalismo tornou a democracia numa anti-democracia.

O liberalismo tornou a democracia numa anti-democracia.

Finalmente, no capítulo de conclusão de Deneen, “Liberalismo depois do liberalismo”, ele sugere que a maneira de recuperar das deformações do liberalismo é reivindicar o que é menor, mais limitado e paroquial — “práticas fomentadas num contexto local, focados na criação de culturas novas e viáveis, uma economia fundamentada na virtuosidade dentro dos lares e na criação de uma vida cívica da pólis” (p. 197). Deneen sugere surpreendentemente que o espetáculo da política eleitoral presidencial tem assumido os contornos de um evento esportivo nacionalmente televisionado, distraindo uma população amplamente passiva do envolvimento ativo na vida cívica a nível local. Se Deneen está certo, então talvez não devêssemos nos surpreender se as campanhas eleitorais colocam personalidades narcisistas uma contra a outra com os melhores em entretenimento emergindo vitoriosos.

Embora o argumento de Deneen tenha uma série de facetas dignas de desenvolvimento, nos concentraremos em três áreas: (1) governo das elites, (2) educação e (3) o relacionamento entre teoria e prática.

(1) Governo das elites

Não há nada de intrinsicamente errado com o governo das elites, se com isso queremos dizer simplesmente que, no curso normal da vida, os líderes tendem a emergir de suas comunidades. Há uma miríade de livros, cursos e oficinas dedicadas a desenvolver líderes e nutrir qualidades de liderança em jovens. Mas o liberalismo encoraja os indivíduos a buscarem a liderança baseados na sua própria superioridade sobre aqueles que serão liderados.

Essa autopromoção se baseia na crença em seu maior esclarecimento, suas credenciais progressistas e sua disposição de romper com as restrições do passado, a despeito da lealdade contínua de suas comunidades as suas tradições mais paroquiais. Aqueles que continuam fiéis a seus laços comunais imediatos precisam aparentemente se separar deles de forma a aumentarem sua consciência de sua humanidade comum e, mais diretamente ao ponto, da universalidade do desejo. Porque as normas comunais limitam esses desejos, os liberais, quer orientados pelo mercado, quer pelo estado, creem que é sua responsabilidade emancipar as pessoas ordinárias de tais normas para seu próprio bem.

É claro, sempre que alguém monta uma defesa da tradição local, os mais céticos provavelmente desenvolvem o espectro da segregação racial ou antissemitismo, tradições que podem ser consideradas como crescendo organicamente a partir das dinâmicas de uma sociedade plural em que uma maioria manteve uma hegemonia, às vezes por meio de violência aberta, contra as minorias. Isso é algo que Deneen poderia ter reconhecido e lidado com neste livro. Embora o antissemitismo eventualmente tenha se esvaído da vida americana por meio do trabalho de organizações como B’nai B’rith International, o fim da segregação racial exigiu a intervenção ativa de Washington, incluindo a decisão da Suprema Corte Brown vs. the Board of Education (1954) e as três grandes leis federais de direitos civis de meados da década de 1960.

Se a tradição da discriminação racial e religiosa exigia uma ação da elite para acabar com esses males óbvios, então será que isso não torna todas as tradições potencialmente suspeitas? Não deveriam os mais esclarecidos dentre nós tentar redirecionar as nossas lealdades próximas para outro lugar? Esse argumento faz sentido para muitos, especialmente minorias visíveis se sentindo vulneráveis diante de maiorias locais. Em outras palavras, os liberais estão tocando em temores e preocupações genuínos.

Contudo, como Deneen reconhece corretamente, esforços liberais para retirar as pessoas de seus costumes e morais particulares estão, na verdade, abastecendo uma expansão do aparato estatal. Enquanto que regras informais estabelecidas socialmente outrora regulavam relações interpessoais, o liberalismo buscou uma padronização das práticas por meio da imposição de leis formais promulgadas pelo estado. O saldo líquido é fragmentar exatamente as comunidades que nutriram o projeto liberal. Novamente, os sucessos liberais levam ao fracasso liberal.

(2) Educação

Quanto à educação, Deneen não está sozinho em sua defesa da nutrição e manutenção das artes liberais diante de avanços contemporâneos para refazer a universidade como uma fornecedora de treinamento técnico. Mesmo em universidades cristãs, frequentemente é difícil persuadir os administradores dos méritos de fazer os estudantes lidarem com a República de Platão ou a Cidade de Deus de Agostinho, cujo valor econômico não é imediatamente óbvio. Essa resposta sugere que os cristas que creem na importância de uma educação sólida nas Artes e Humanidades precisam justificar seus compromissos sem ceder a uma nostalgia acadêmica mal-direcionada. De fato, não deveríamos buscar tornar os nossos estudantes platônicos ou aristotélicos ou assumir que o chamado cânone dos Grandes Livros fala com uma voz que irá remediar o nosso mal-estar educacional e cultural. O próprio Deneen reconhece que muitos desses textos disseminam ideias que na verdade minaram a empreitada educacional.

Contudo, ler os Grandes Livros ajuda os estudantes de pelo menos quatro formas. Primeiro, capacita-os a lidar com as grandes questões que os filósofos e teólogos têm debatido por séculos. Por exemplo: O que é a autoridade e o que a torna legítima? O que é justiça? O que torna uma vida feliz? Quem é Deus? O que ele espera de nós?

Segundo, capacita os estudantes a se conhecerem e a conhecerem as suas comunidades ao torná-los familiarizados com os escritos básicos que moldaram a cultura e predispuseram as pessoas a buscarem certos tipos de respostas a questões perenes. Por exemplo: uma leitura da Declaração de Independência de Jefferson é imensuravelmente melhorada por uma leitura do Segundo Tratado sobre o Governo Civil e mesmo do Leviatã de Thomas Hobbes.

Terceiro, capacita os estudantes, especialmente os cristãos, a reconhecerem os pressupostos religiosos fundacionais subjacentes a esses escritos. Por exemplo: onde o platonismo localiza o “mal” e onde ele procura salvação? Como a narrativa do platonismo difere da narrativa da Bíblia e como isso afeta a forma que Pltaão responde a certas questões perenes?

Finalmente, ensina um estudante a pensar, se comunicar, imaginar e se adaptar a novos ambientes e ideias.

Aqueles imersos nas Humanidades terão uma amplitude de visão ausente naqueles com um mero conhecimento técnico de um único campo.

As artes liberais liberam, como os classicistas poderiam nos dizer? Somente no sentido de que eles nos libertam dos confinamentos da nossa era, expandido os nossos horizontes para além do que vemos na televisão e no Facebook e nos permitem tomar certa distância dos padrões efêmeros da cultura popular. Uma educação apropriada, como Deneen corretamente enfatiza, nos ajudará a recuperar um melhor entendimento da liberdade como “autogoverno e autocomando disciplinado” ao invés da noção corrente da liberdade como a “ausência de restrições sobre o desejo de alguém” (p. 116).

De fato, aqueles imersos nas Humanidades terão uma amplitude de visão ausente naqueles com um mero conhecimento técnico de um único campo. Essa amplitude os capacitará a aspirarem por algo próximo à sabedoria genuína ao invés do que o mero domínio de muitos fatos e técnicas.

(3) Teoria e prática

Por todo o seu livro, Deneen expressa uma preferência pela experiência vivida na comunidade acima da articulação de teorias. Diante de grandes abstrações teóricas, ele evita articular uma teoria contrária para aniquilar os esforços liberais de fazer a realidade se conformar à teoria. Deneen argumenta que “a busca de uma teoria abrangente é o que originou o liberalismo e as ideologias sucessoras em primeiro lugar” (p. 196). Mas e se o problema não for com as teorias enquanto tais, mas com as teorias que são impermeáveis à realidade?

Há uma grande diferença entre esforços ideológicos de impor uma fantasia utópica a pessoas de carne e osso e suas comunidades e uma filosofia pública que reconhece tanto o potencial humano quanto a fragilidade humana, conjuntamente com a necessidade de comunidades locais vibrantes. De fato, realizar a justiça no campo político exige pensamento teórico profundo sobre o relacionamento entre Deus e o seu mundo, entre os indivíduos e as suas comunidades, e entre a teoria e a prática. Há elementos do projeto liberal dignos de celebração? Deneen pode ter enfatizado a forma com que certas ênfases liberais —por exemplo, liberdade de religião, de associação, de reunião e de expressão — ainda podem desempenhar papeis positivos para renovar e redirecionar a nossa sociedade, cultura e arranjos políticos. Isso sugere que mesmo as distorções das ideologias políticas são construídas sobre um bem genuíno digno de se buscar como um bem próximo, ao invés de último.

O liberalismo não está errado em defender as liberdades dos indivíduos, que nós adequadamente estimamos. O que o liberalismo erra é elevar o indivíduo ao status de uma divindade tomando precedência sobre outras considerações legítimas, incluindo a saúde e o bem-estar de nossas instituições e comunidades.

Quaisquer reservas menores que possamos ter sobre a tese de Deneen, ainda assim será um livro excelente, digno de ser lido e discutido.

Fonte: Liberalism Failed Because It Collapsed Under Its Own Weight

Traduzido por Guilherme Cordeiro.