Pular para o conteúdo

Posfácio de Rejeição à HUMANIDADE por Daniel B. Wallace

Rejeição à HUMANIDADE de Rushdoony

POSFÁCIO

Rushdoony, neoplatonismo e uma visão bíblica do sexo
Daniel B. Wallace, Ph.D.

Sou um cristão, desavergonhadamente. Mas para que vocês não pensem que vim aqui hoje simplesmente para dizer “A fidelidade num relacionamento monogâmico é o único caminho correto — tudo mais é pecado!”, gostaria de deixá-los tranquilos. Eu de fato acredito nisso, mas há razões para minha fé. Se você não é cristão, você pode se interessar em ouvir a razão para a visão cristã do sexo e casamento.

Por mais alheia que a filosofia aparentemente esteja em relação a uma conversa sobre sexo, é necessário, no entanto, recorrer a alguns fundamentos filosóficos a fim de refletir apropriadamente sobre sexo. Consequentemente, tratarei de dois tópicos nesta palestra: (1) concepções equivocadas sobre a visão bíblica do sexo e (2) o ensino bíblico sobre sexo
e casamento.

I. Concepções equivocadas sobre a visão bíblica do sexo: Rushdoony vem ao resgate!
Contrariamente à opinião popular, Deus não é um estraga- prazeres cósmico. Ele não está nos céus para arruinar nossa diversão! Infelizmente muitos conceberam Deus dessa forma ao longo dos séculos. Alguns chegaram até mesmo a castrar-se supostamente em obediência à vontade divina. Em certa medida, isso se deu porque os cristãos promoveram uma falsa visão de Deus…

Dentre as várias influências sobre o cristianismo quase desde seus primórdios, uma das mais perniciosas — e indiscutivelmente a mais destrutiva de uma perspectiva filosófica — é o neoplatonismo. Ora, o neoplatonismo é simplesmente o “novo” (neo) “Platão-(n)ismo”. É um dualismo dialético que opõe o espírito contra carne, o corpo contra a alma, mente contra a matéria, etc. Infiltrou-se na igreja no século II d.C. através do gnosticismo. Os gnósticos eram um grupo herético do cristianismo primitivo, bastante popular no Egito, que viam o espírito como bom e a matéria como má. Julgavam difícil aceitar o ensino bíblico da criação: “Deus criou os céus e a terra… e viu que era bom”. Assim eles colocavam uma série de semi-criadores entre Deus e a terra. Isto equivale a dizer: Deus criou um outro ser que não era, como Deus, somente espírito, mas, pelo contrário, um amálgama de espírito e matéria (embora sobretudo espírito). Ele em seguida criou um ser contíguo que possuía um pouco mais de matéria em sua composição. E assim ao longo de toda a escala: o último criador criou por fim a terra, que é pura matéria. Considerava-se que Jesus Cristo estava bem no topo dessa escala — e por isso os gnósticos não o viam como um homem real.

O resultado de tudo isso foi que, ao mesclar a Bíblia com a filosofia grega antiga, os cristãos começaram a ver uma dicotomia, um conflito dialético no interior do homem, entre corpo e alma, entre emoção e razão. Na verdade, essa visão da vida era simplesmente o neoplatonismo em roupagem cristã. Infelizmente isso contaminou os cristãos — bem como a totalidade da civilização ocidental — por quase vinte séculos. Podemos, com certa razão, chamá-la de “síndrome de Spock”. (Spock, como vocês bem sabem, era o oficial de ciência de Star Trek: sendo fi lho de um pai Vulcano e de uma mãe humana, ele constantemente se debatia entre a razão e emoção. Sempre que ele cedia à sua natureza humana, o Dr. McCoy prontamente lhe mencionava! [Incidentalmente, não é por acidente que o demasiado humano — e emocional — McCoy era o oficial médico, isto é, ele lidava com corpos, enquanto Spock era o oficial de ciência que lidava com as coisas relacionadas à razão pura]. Embora Gene Roddenbery tenha dado certo glamour a Spock [ele era o personagem favorito de quase todo mundo], a verdade é que a pessoa que adota uma visão de mundo que vê o corpo e o espírito num combate mortal é um monstro moral.)

Podemos ilustrar, grosso modo, a visão neoplatônica da
vida neste diagrama:


Eu gostaria de exemplificar, por meio de várias citações retiradas de um livro muito importante — Rejeição à humanidade —, quão extensa e difusamente essa visão neoplatônica infectou o cristianismo. Embora isto há de parecer um pouco pedante, é crucial que vocês que são cristãos — bem como vocês que não o são — entendem a diferença entre o que muitos acreditam em relação ao cristianismo e o que a Bíblia ensina.

Em primeiro lugar, Rushdoony dá alguns exemplos de como os cristãos antigos mesclaram cristianismo bíblico e neoplatonismo:

Para um cristão, as vidas dos “santos” são por vezes uma
pungente leitura. A inteligência e a fé são ocasionalmente
jungidas às práticas mais grotescas e a ideias estranhas à
religião bíblica… Quando, após uma jornada abrasante,
Jovino lavou seus pés (e mãos) cansados numa água bem
fria e então se esticou para descansar, a “santa” Melânia
repreendeu-o:

Melânia aproximou-se dele como uma mãe sábia se aproxima
de seu filho, e então zombou de sua fraqueza dizendo:
“Como pode um homem de sangue quente como tu ousar
regalar tua carne desse modo? Não sabes que ela é a fonte
de tantas ofensas? Olhe, tenho sessenta anos e nem meus
pés, nem meu rosto, nem qualquer um de meus membros,
exceto pelas pontas de meus dedos, jamais tocou a água,
embora seja afligida com muitas enfermidades e meus
médicos instem comigo. Não fiz ainda concessões a meus
desejos corporais, nem usei de um divã para repousar-me,
nem jamais fiz uma jornada numa liteira.
De Melânia, não aprendemos nada sobre a santidade
bíblica, embora passamos a perceber o que poderia ter
sido a “fragrância de santidade”. (p. 26-7)

… o pecado de Adão [era] ser como Deus, transcender
a criaturalidade com todas suas limitações e tornar-se
mais que um homem. Macário de Alexandria dá-nos
um exemplo disso:

Eis outro exemplo de seu ascetismo: ele decidiu estar acima
da necessidade de sono e declarou que não estaria sob um
teto por vinte dias, a fim de vencer o sono. Ele foi queimado
pelo calor do sol e dobrado pelo frio à noite. E assim disse:
“Se eu não tivesse me recolhido à casa e obtido a vantagem
de um leve sono, meu cérebro teria encolhido para sempre.
Conquistei o sono na medida em que fui capaz, mas desisti

também na medida em que minha natureza o exigia”.

Cedo, em certa manhã, quando estava assentado em sua
cela, um mosquito picou-o no pé. Sentindo a dor, ele
matou-o com suas mãos, que ficaram manchadas com
seu próprio sangue. Ele acusou a si próprio de ter agido
por vingança e condenou-se a sentar-se num pântano de
Scete no grande deserto por um período de seis meses. Ali
os mosquitos laceravam mesmo o couro dos suínos, tal
como as vespas fazem. Em pouco tempo, estava picado em
todo seu corpo e ficou tão inchado que alguns pensavam
que tinha elefantíase. Quando retornou à sua cela após
seis meses, foi reconhecido como sendo Macário apenas
por conta de sua voz.

Alcançar a perfeição significava renunciar a todo sinal de
criaturalidade, a todo elemento dos desejos e necessidades
corporais, e tornar-se somente espírito numa carne
praticamente morta. (p. 28-9)

Mas para que não pensemos que essa visão do cristianismo afetou somente os antigos, vamos ouvir um exemplo mais próximo de nós. Michael Wigglesworth foi um pastor
puritano (1638-1705) que trouxe má reputação aos seus pares. Puritanos, era vitoriana, etc., tudo isto parece ter uma péssima reputação hoje em dia — como se fossem todos tensos, pudicos, antiquados e estraga-prazeres. Isto certamente se aplicava a Wigglesworth, mas dificilmente ao puritano comum. Eis alguns exemplos do estilo de vida dele:

Ele então via-se como culpado porque não tinha a atitude
bíblica em relação a seus pais [i.e., tinha pouquíssima
afeição por eles] e, contudo, também culpado por levar
em consideração as criaturas. Seu misto de neoplatonismo
e cristianismo assegurava sua culpa a cada momento de
sua vida. (p. 81)

Em outras palavras, visto que a Bíblia ensina que os filhos devem honrar e respeitar seus pais — e cuidar deles em sua velhice —, Wigglesworth condenava-se por não viver à
altura desse padrão. Por outro lado, sendo um neoplatônico, ele sentia que qualquer consideração por seus iguais era um sinal de fraqueza, de capitulação às suas emoções, etc.: consequentemente, ele sentia-se culpado até mesmo pela mínima centelha de sentimento para com seus pais.

Como todo neoplatônico, seu mundo é egocêntrico; ir
além do egocentrismo, levar as pessoas em consideração
e amá-las é perder Deus de vista, segundo a perspectiva
de Wigglesworth. (p. 84)

Num sentido bastante concreto, o neoplatonismo gerou o narcisismo e a “geração eu”.

Ele apreciava a saúde precária; era seu modo de negar o
corpo; ele desfrutava a culpa, pois era um modo de provar
seu desprazer pelas coisas deste mundo e sua “sensibilidade”
às falsas demandas que elas poderiam fazer. Sua
sensibilidade “espiritual” assentava-se, contudo, numa
falsa premissa que fazia dele um monstro moral.

Wigglesworth era um bom poeta em sua época, embora seus poemas fossem sombrios, refletindo sua versão do “cristianismo”. Rushdoony nos diz que:

Ele também escreveu, em “Vaidade de Vaidades”: “o que é
o prazer senão a isca do Diabo?”. Beleza, amigos, riquezas,
tudo isto “arrasta as almas dos homens para a perdição”.
À vista disso, como um bom neoplatônico, ele pôde
também escrever um poema sobre “A Morte Ansiada
e Acolhida”. Não havia nada na vida que Wigglesworth
pudesse desfrutar ou fazer, sem que não se sentisse
culpado. Ele incluiu também “Um Adeus ao Mundo”,
mundo do qual dissera que “não é meu tesouro”. Embora
ele ansiasse pela ressurreição do corpo, ele não tinha uma
boa opinião sobre seu corpo presente, ao qual lançava
todo tipo de insulto:
Adeus, corpo vil, hás de ser corroído,
Já és por constantes doenças puído.
Por ti suportei muita dor e desdita,
Trouxeste tristeza a esta mente aflita,
Mente aflita por conta da fraqueza.
Cristo apara-me com essa turquesa.
Tu não serás, pois, um retardo,
Nem, para ti, minha alma, um fardo.

Trata-se do bom dualismo neoplatônico. É algo estranho à fé bíblica. Esse misto sincrético de neoplatonismo e cristianismo aflige-nos até os dias atuais. Dois exemplos serão suficientes. (1) A aversão de James Michener pelos cristãos é evidente em seu
livro Havaí. O missionário (interpretado por Max von Sidow na adaptação cinematográfica) promove, em nome de Deus, o neoplatonismo. É bastante lamentável que, por mais que essa representação seja uma caricatura, há, contudo, um elemento
de verdade nela: o neoplatonismo infecta o cristianismo até hoje. (2) Os cristãos amiúde consideram o sexo como impuro. Muitos anos atrás, trabalhei numa oficina mecânica ao lado de um homem cujo filho estava prestes a casar-se. O jovem e sua noiva eram bons presbiterianos e estavam para casar-se na igreja. No dia anterior ao casamento, esse operador de torno disse-me que o casamento fora cancelado. Eu lhe perguntei o motivo, e ele me disse que a moça, exatamente na noite anterior, anunciou que não haveria sexo durante a lua de mel. Ela pretendia ter relações sexuais apenas três vezes com seu marido, porque queria apenas três filhos! Ela não somente tinha muito a aprender sobre sexo, mas também muito a aprender sobre a visão bíblica do sexo!

Todos nós conhecemos cristãos inclinados a uma visão de mundo neoplatônica. O que eu peço é que, se você é cristão, reflita sobre como o neoplatonismo infectou sua perspectiva da vida. Se você não é cristão, escute mais acerca do que direi do cristianismo bíblico.

Contudo, vamos observar as coisas do ponto de vista contrário. O neoplatonismo atormentou a civilização ocidental in toto. Encontra-se, de fato, nas origens de grande parte do abuso de drogas, do movimento hippie e do feminismo radical — assim como do chauvinismo. Ouçamos novamente a Rushdoony. Sobre os hippies (o livro foi publicado em 1973) ele diz:

Essa atitude é muito semelhante à do hippie, que despreza a
carne e demonstra desprezo pelo corpo e suas vestimentas.
Em sua sexualidade, o hippie expressa um desdém pelo
corpo, seja tratando os atos sexuais como irrelevantes na
promiscuidade sexual, seja por uma negação enfadada do
sexo. Há muito mais abstenção do sexo entre os hippies
do que geralmente se reconhece. Quer na abstenção, quer
na promiscuidade causal e desprovida de emoção, é um
desprezo à carne que nos é evidenciado. Corpos sujos
e roupas encardidas são outros meios de manifestação
dessa mesma fé. (p. 87)

Sobre o chauvinismo radical:

O evangelho de Sir Thomas More foi sua Utopia, na qual
a mente do homem impunha sua ideia em todo o mundo
da matéria. Para More, as esposas deviam ser selecionadas
após serem inspecionadas nuas; suas mentes não eram
suficientemente importantes para serem levadas em conta.
A matéria ou particularidade era tão desimportante, tão
insignificante era para o mundo do espírito, que as esposas
deveriam ser escolhidas sem se considerar a unidade da
mente e matéria, sendo expostas nuas à inspeção como
se fossem gado. (p. 40)

Ao menos, More era coerente — ele praticava aquilo que pregava. Quando suas filhas tinham idade suficiente para casarem- se, ele as ajuntou numa plataforma, despiu-as perante seus pretendentes e deu-as em casamento!

No tocante ao neoplatonismo invertido, Rushdoony diz:

O neoplatonismo invertido glorificava a natureza e portanto
as mulheres. Os trovadores da Europa medieval e
renascentista denegriam o amor no casamento, porque o
amor pertencia ao mundo da graça, que eles identificavam
com o mundo platônico do espírito. O adultério, por
outro lado, pertencia ao mundo da natureza. A esposa
era, pois, uma criatura inferior, e a amante ilícita, uma
rainha do amor. Como Valency, escrevendo sobre esse
amor adúltero, assinalou: “Por mais ilícito que possa ser
do ponto de vista da religião e da sociedade, ele tinha a
sanção da natureza; nesse estado de coisas, estava fundamentado
num solo mais firme que o laço matrimonial”. “A
sanção da natureza” — eis a chave. Para o neoplatonismo,
bem como para toda forma de dialeticismo, havia dois
mundos; ambos são essencialmente diferentes entre si,
de maneira que, por mais que existam como se fossem
um só (os mundos da matéria e espírito, natureza e graça
ou natureza e liberdade), estão em conflito entre si. Se se
favorece a um, o outro necessariamente sofre. Se a sanção
da natureza, o amor ilícito, é exaltado, segue-se que a
sanção da graça, o casamento legítimo, deve ser rebaixado,
pois, em princípio, é antinatural que amor e casamento,
natureza e graça, sejam compatíveis.

Esse neoplatonismo invertido deu as caras (sua horrenda cara) novamente na década de 1960. Uma das razões para esse ressurgimento, creio eu, é que a antítese — a moralidade
neoplatônica — negou a bondade e alegria do sexo.

Esse neoplatonismo invertido “refletia o discurso de Demóstenes contra Neera, quando assinalou que, ‘com efeito, nós temos as heteras [prostitutas] para o prazer, as concubinas
para cuidado diário do corpo, e as esposas para gerar filhos legitimamente e ter uma fiel guardiã da nossa casa’”.

Isso produzia certa psicologia esquizoide, já que o homem percebia ininterruptamente uma batalha em seu interior entre corpo e mente. E o autor continua:

Por outro lado, alguns filósofos resolveram a psicologia
esquizoide a favor do corpo e portanto da concupiscência.
Aristóxenes assim refletia:
A natureza exige que façamos da luxúria o zênite da vida.
A quantidade máxima possível dos sentidos sexuais deveria
ser o objetivo de todo ser humano. Suprimir os ímpetos da
carne não é algo racional nem feliz; fazê-lo é provar-se
ignorante da natureza humana.
Os cínicos, em particular, foram os campeões intelectuais
dessa posição. Ora, em todos os casos, admitia-se o conflito
entre corpo e mente; este conflito era essencialmente
metafísico, não um ético ou moral. (p. 63-4)

E também:

O homem moderno não escapou do dilema da psicologia
grega. Alguns optaram por “resolver” o problema negando
o corpo, conforme é o caso da Ciência Cristã, e outros
negaram a alma, como os behavioristas. Essas “soluções”
são metafísicas, não morais. Eles deixam sobrar apenas
um homem fragmentando, como foi nos dias finais do
mundo greco-romano. O mesmo se aplica àqueles que
buscam na experiência com drogas uma fuga em relação
ao mundo dos sentidos para a suposta atemporalidade e
unidade do mundo da alma. (p. 69)

E, por fim, o neoplatonismo infectou o feminismo radical:

Muito daquilo que foi condenado como um produto
do ensinamento católico ou protestante foi, na verdade,
a contínua influência do neoplatonismo, tendo seus
melhores exemplos em sua forma original em meio aos
gregos e romanos.
O neoplatonismo foi bastante influente no movimento
feminista dos séculos XIX e XX. Atualmente, porém,
os papéis se inverteram. A mulher era vista como pura
e espiritual, e os homens, como grosseiros e materiais.
As mulheres, afi rmava-se então, eram mais “espirituais”
e portanto seres superiores… Virginia Leblick, em Th e
New Era: Woman’s Era; or Transformation from Barbaric
to Humane Civilization [A nova era: a era da mulher; ou
a transformação da civilização bárbara para a humana]
(1910) disse que a prostituta mais baixa era superior ao
melhor dentre os homens. (p. 122)

Podemos agora ilustrar a “linhagem do neoplatonismo” desta forma:

RESUMO
1. O neoplatonismo estabelece uma falsa antítese entre corpo e alma. Força o indivíduo a escolher (à qual deles você dirá “acabem com ele!”?), quando a representação bíblica do
relacionamento entre a parte material e imaterial do homem é bastante diferente. O apóstolo Paulo diz, por exemplo: “Assim também os maridos devem amar a sua mulher como ao próprio corpo. Quem ama a esposa a si mesmo se ama. Porque ninguém jamais odiou a própria carne; antes, a alimenta e dela cuida, como também Cristo o faz com a igreja” (Efésios 5.28-29). Se Paulo tivesse escrito isso após a era de Michael Wigglesworth, ele teria escrito: “Porque ninguém são jamais odiou a própria carne”!

2. Como Rushdoony assinala, essa falsa antítese se dá porque as pessoas rejeitaram a verdadeira antítese, aquela entre Deus e homem:

Para as Escrituras, porém, não há semelhante tensão dialética.
A guerra não é contra a matéria e espírito, natureza
e graça, ou natureza e liberdade, mas entre o homem
pecador e Deus. O homem, por seu pecado, declarou
guerra a Deus e consequentemente se encontra em um
estado de tensão e conflito por conta do pecado, não em
razão de uma natureza dualista. O problema do homem
é moral ou ético, não metafísico. O neoplatonismo não
apenas deturpa o problema que o homem enfrenta, mas,
ao torná-lo metafísico, faz com que seja necessário mutilar
ou castrar o homem de um aspecto essencial de seu ser,
antes que possa ser liberto. (p. 42)

Em outras palavras, cada homem está sim numa batalha. Porém esta batalha não está dentro de si; antes, dá-se entre ele próprio e Deus. A Bíblia diz que “Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Romanos 5.8). Isto é, estamos num estado de antagonismo em relação a Deus; no entanto, ele estendeu seu amor a nós. Uma das coisas curiosas sobre o neoplatonismo é sua universalidade. Ele não se faz presente somente no Ocidente. Com efeito, os gregos tinham certa medida de satisfação em constatar que, na Índia, eles poderiam encontrar paralelos ascéticos à sua própria filosofia.

Em vez, porém, de confirmar a verdade do neoplatonismo, isso confirma a direção na qual todos os homens seguem quando rejeitam a dimensão vertical da batalha. Se Deus é excluído desse quadro, e uma vez que todos percebem a existência de um conflito, a única escolha lógica é o conflito dialético no interior de cada pessoa (afinal de contas, todos lutamos contra o pecado quando não há ninguém ao nosso redor, de modo que não podemos lançar a culpa em outros a todo tempo).

Agora a ilustração está completa:


Tão logo o indivíduo rejeita uma visão de mundo que concebe o homem em conflito com Deus — um conflito que só pode deixar de existir por meio do pagamento dos pecados individuais mediante a morte de Cristo, o Deus-homem —, ele de fato e necessariamente adota uma visão unidimensional do mundo. Ele não vê mais o homem como um ser que possui, em união, o material e o imaterial (a representação bíblica), mas, pelo contrário, entende que ambos estão em conflito. Ao rejeitar a fé em Deus, ele deve agora escolher entre mente e corpo, entre a síndrome de Spock e a filosofia da Playboy.

A maioria de nós não faz uma escolha decisiva, mas, ao contrário, oscilamos como um pêndulo, criando solo fértil para a esquizofrenia.

II. A visão bíblica do sexo
A despeito da longa extensão da primeira metade desta palestra, ela fornece, no entanto, um pano de fundo necessário para a parte que se segue, a qual, na realidade, pode ser bastante breve. Tudo que pretendo fazer é tocar nos quatro propósitos
do sexo conforme mencionados na Bíblia.

A. Procriação

A Bíblia é bem explícita na afirmação de que a procriação, a reprodução das espécies, é um aspecto muito importante das relações sexuais humanas. É o aspecto mais importante, de fato (Gênesis 1.27-28). Essa é uma razão pela qual os cristãos
acreditavam que o aborto é errado: mesmo quando uma mulher engravida sem intenção, e uma vez que a procriação é um aspecto tão importante de nossas vidas sexuais, eliminar o feto sobrepõe-se a outras considerações (sem mencionar o fato de que a maioria dos cristãos também acreditam que o zigoto, na concepção, é um ser humano vivo). Essa é também uma das razões por que a Bíblia fala contra a homossexualidade: por sua própria natureza, a homossexualidade não pode realizar a “diretiva principal” da vida sexual do indivíduo.

Infelizmente, alguns julgavam que a procriação tem direitos exclusivos sobre o uso do sexo (tal como é a moça que queria ter sexo com seu marido apenas três vezes porque desejava ter somente três filhos).

B. Prazer (ou recreação)

Isto pode surpreender você, mas a Bíblia fala muito sobre o sexo matrimonial como sendo um grande prazer. De fato, Paulo chega mesmo a ordenar que os cônjuges não se privem da atividade sexual, porque seus corpos pertencem a seu parceiro (1 Coríntios 7.3-5). Conheci casais — casais cristãos — que, por vezes, não se relacionavam sexualmente por meses a fio. Dificilmente essa é a visão bíblica.

Novamente, Rushdoony faz um corretivo sobre a visão puritana normal de sexo ao escrever:

Com relação ao sexo e casamento, a visão puritana comum
era robusta e sadia. O Rev. William Gouge, em Of
domesticall duties [Dos deveres domésticos] (Londres,
1634), usava Provérbios 5.18-19 para expressar a alegria
e beleza do sexo no matrimônio: “Seja bendito o teu
manancial, e alegra-te com a mulher da tua mocidade,
corça de amores e gazela graciosa. Saciem-te os seus seios
em todo o tempo; e embriaga-te sempre com as suas
carícias”. Os puritanos frequentemente tratavam do sexo
no matrimônio como um dos grandes deleites e alegrias
dentre as bênçãos terrenas. Frye diz-nos que “uma passagem
bíblica favorita citada pelos ministros puritanos é
Gênesis XXVI, 8, em que está escrito que ‘Isaque estava
brincando com Rebeca, sua mulher’”.

A palavra hebraica para “brincando” não significa, eu garanto a vocês, “jogando damas”! Há um texto em Deuteronômio que diz que um jovem deveria manter-se afastado da guerra por um ano, para “fazer feliz a mulher com quem se casou” (Deuteronômio 24.5, NVI). Embora o texto não diga que o primeiro ano de casamento deveria ser uma longa
lua de mel, ele de fato indica a tremenda importância do casamento, em geral, e da esposa, em particular. E a palavra hebraica para “fazer feliz” realmente envolve um profundo senso de intimidade: descobrir tudo que agrada à esposa de toda maneira possível.

Há muitas outras passagens que tratam do prazer no casamento. A maioria delas é para “maiores de 18 anos”, porém! O Cântico dos Cânticos exalta a alegria do prazer sexual dentro dos laços do matrimônio. Com efeito, é tão explícito, que os antigos judeus proibiam os moços de lerem o livro até terem 30 anos!

Há uma suposição subjacente de que o intercurso sexual, em si, é “projetado para o prazer” (conforme designação do Dr. Ed Wheat2): se Deus criou o sexo, e se a Bíblia nos diz que ele o criou para nosso prazer, então ele sabe como podemos obter o máximo benefício dele. A visão de Deus como um estraga-prazeres cósmico é completamente equivocada; para cada “NÃO” há um “SIM”! É de fato verdade que o sexo fora do casamento é considerado inteiramente pecaminoso na Bíblia. Mas essa é somente metade da história: dentro do casamento, ele é profundamente belo e inteiramente bom.

Como exemplo disso, lembro de ter lido, há um tempo, um livro chamado Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo (mas tinha medo de perguntar). Neste livro, o autor detalhava o como do sexo, mas não o por quê. Em certa página ele faz a afirmação de que, ao longo de toda sua vida sexual, um indivíduo pode esperar talvez três ou quatro experiências sexuais realmente boas (A+, no idioma da universidade). (É claro, isso é relativo: como disse meu irmão: “quando é má, ainda assim é muito boa; e quando é boa, é excelente!”.) Entretanto, eu fiquei um pouco deprimido por conta dessa afirmação. Quando se foca somente na mecânica do sexo — vendo pessoas de uma maneira unidimensional —, suspeito que três ou quatro experiências soberbas é tudo que se possa esperar. Posso testificar, contudo, que em meus treze anos de casamento, nos quais um compromisso vitalício um para com outro permanece na base desse relacionamento, minha esposa e eu estamos nos deleitando sexualmente um com o outro muito mais agora do que quando recém-casados. O que pensávamos ser maravilhoso em nossa noite de núpcias não chega sequer perto do que experienciamos agora. (Incidentalmente, alguém me perguntou por que não nos entediamos um com o outro após tanto tempo juntos. A resposta é simplesmente que o sexo, para nós, não é somente a conjunção de dois corpos, mas a união de duas pessoas. E constantemente estamos mudando e crescendo como pessoas. Há uma grande porção de diversidade, de variedade, dentro da unidade do casamento, quando duas pessoas estão comprometidas uma
com a outra enquanto pessoas integrais.)

C. Intimidade e unificação

Monogamia e compromisso para com uma pessoa “até que a morte nos separe” são as únicas coisas que podem produzir a mais profunda intimidade. E intimidade, creio eu, é aquilo que as pessoas buscam quando vão atrás de experiências sexuais.

Gênesis 2 diz: “estavam nus e não se envergonhavam”. A vulnerabilidade emocional e física entre um homem e uma mulher pode dar-se, no nível do mais profundo comprometimento, apenas se o medo é excluído.

É exatamente o oposto nos encontros sexuais por uma noite ou no sexo casual. Ora, repetidas violações do ideal monogâmico podem produzir apenas esterilidade emocional. Um bom exemplo disso é a prostituta: embora lhe agrade pensar que o sexo é simplesmente a conjunção carnal — algo que ela pode isolar de suas emoções —, nos seus esforços em manter suas emoções de fora, ela acaba se tornando dura, cínica. Em última instância, torna-se incapaz de amar.

Os gregos tinham três ou quatro termos distintos para amor. Agape, que é o amor enquanto compromisso (e que pode estender-se inclusive àqueles que o retribuem com ódio), é o tipo mais amplo de amor. O verbo cognato agapao é usado em João 3.16: “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. Também Romanos 5.8: “Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores”. Em suas raízes, é volitivo.

O segundo tipo de amor é chamado phileo. Esse é o amor que é recíproco. É o amor entre amigos. Daí, é mais restrito em seu escopo. Envolve as emoções.

O terceiro tipo de amor é eros (do qual tiramos a expressão “amor erótico”). É designado por Deus a fi m de que seja demonstrado para outra pessoa. Portanto, é o amor mais restrito de todos. Em suas raízes, é físico.

Todos eles podem ser ilustrados como se segue:

Em qualquer relacionamento, agape deveria sempre assumir a liderança. Num casamento, é expresso no voto: “até que a morte nos separe”. Muitos votos de casamento expressam somente certo sentimento philo-eros: “enquanto durar o amor”. Quando o eros lidera, não há controle, não há um caminho firme através dos tempos difíceis. O relacionamento depende, então, do capricho.

Outro modo de olhar para o sexo dentro de um casamento cristão é este:


A Bíblia reconhece que o homem é composto pelo material e pelo imaterial — mas aqui acaba a semelhança com o neoplatonismo. Quando ambos são colocados em comunhão sob a vontade — e esta vontade sob a autoridade de Deus —, o resultado é a harmonia. Somente quando fazemos uma escolha entre corpo e mente, é que temos caos.

D. Demonstração

Por fim, na visão bíblica do sexo, o relacionamento matrimonial foi designado para ser uma demonstração do amor de Deus por seu povo. Em João 13.34-35, Jesus disse a seus discípulos que o amor de cada um ao outro seria uma demonstração do amor de Deus. Paulo faz uma aplicação específica desse princípio: “Sabei, pois, isto: nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento, que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus”. O ponto é que os laços entre um homem e uma mulher foram criados para espelhar o vínculo entre Cristo e a igreja.

Há um benefício colateral a tudo isso: um casamento genuinamente cristão é inerentemente mais forte que um casamento não cristão. O motivo é que um casamento cristão sempre tem um ponto de referência maior do que ele mesmo. Num casamento que exclui Deus de seu quadro, se uma parte decide dar o pé do relacionamento, a outra parte
somente tem a si mesma para servir como possível freio a essa decisão. Mas num casamento cristão, ambos os cônjuges fizeram um compromisso com Jesus Cristo. A Bíblia fala deste compromisso como sendo eterno, ao passo que o vínculo matrimonial se restringe a esta vida. Consequentemente, há um duplo compromisso em questão — e muito mais está em jogo. Se um cônjuge deseja abandonar o matrimônio, ele ou ela estará desobedecendo a seu Senhor. Por outro lado, conforme tanto o marido quanto a esposa crescem em seu relacionamento com Jesus Cristo, eles também crescem no seu relacionamento mútuo.

Esse relacionamento pode ser representado neste diagrama:

Você pode ver por que não posso falar clara e plenamente sobre o compromisso no casamento sem dizer algo sobre o compromisso com Jesus Cristo: uma visão bíblica do sexo não aceita nada menos que isso.

 

Daniel Wallace é Professor de Novo Testamento do Dallas Theological Seminary. Este ensaio foi originalmente uma palestra proferida na Universidade do Arkansas em 1987.