O cristão que deseja compreender corretamente o propósito e a missão da igreja no mundo deve entender a centralidade do Reino. O evangelho (ou “boas-novas”) não pode ser plenamente entendido e aplicado à parte do conceito de “Reino de Deus”. Uma vez devidamente conectados ao Reino, podemos então entender e recuperar toda a amplitude e o significado do evangelho. O fato é que aqui na América pensamos que entendemos o evangelho — mas as evidências demonstram de forma esmagadora que a maioria de nós simplesmente não entende este aspecto mais fundamental da fé cristã.
Num trágico desdobramento do movimento iniciado no século XIX com o surgimento do avivalismo, o “evangelho do Reino” sofreu uma redução gradual a meramente “o evangelho”, um termo destinado a enfatizar apenas o plano individual de salvação. Essa redução retirou do evangelho suas dimensões cósmicas, que transcendem a salvação pessoal para incluir toda a missão redentiva de Deus no mundo (isto é, a missio Dei), na qual Ele está fazendo novas todas as coisas por meio de Cristo.
George Hunsberger observa: “Essa separação tornou a salvação um evento privado, ao dividir ‘minha salvação pessoal’ da vinda do reinado restaurador de Deus sobre todo o mundo”. Na esteira dessa redução, a proclamação da igreja passou de “Arrependam-se, recebam a Cristo e entrem no Reino de Deus” para “Convide Jesus para entrar no seu coração”. A grande falácia é que nós não convidamos Jesus para a nossa vida — Ele é quem nos convida para a d’Ele: Seu propósito, Sua obra e Seu Reino!
Na América altamente individualista e narcisista, o evangelho passou a significar “resolver o problema do pecado” em termos quase inteiramente individuais. Isso também explica por que tão poucos cristãos têm uma cosmovisão cristã consciente de algo além da igreja e da religião. O resultado tem sido a privatização do evangelho, que possui pouco ou nenhum efeito público e cuja única implicação prática é escatológica.
Em outras palavras, quando você morre, vai para o céu. Isso não é o evangelho segundo as Escrituras. À luz desse evangelho, não sei o que o cristão pensa que deve fazer entre o “agora” e o “depois”, exceto comportar-se melhor e recrutar outros. O fato é que a Bíblia fala de maneira muito mais abrangente, indo muito além da versão privada do evangelho que passamos a conhecer no Ocidente.
Mateus registra o início do ministério e da mensagem de Jesus com estas palavras: “Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus” (Mateus 4.17). Em Mateus 24.14, o próprio Jesus descreve o evangelho em relação ao Reino quando diz: “E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo…” Mateus novamente descreve o ministério de Jesus dizendo: “Percorria Jesus toda a Galileia… pregando o evangelho do reino…” (4.23). Mateus reitera esse tema ainda no capítulo 9, verso 35: “E percorria Jesus todas as cidades e povoados… pregando o evangelho do reino…”
Jesus disse aos seus discípulos: “E, à medida que seguirdes, pregai que está próximo o reino dos céus” (Mateus 10.7). Marcos escreve: “Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galileia, pregando o evangelho de Deus, dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo…” (Marcos 1.14-15). Filipe “anunciava a respeito do reino de Deus e do nome de Jesus Cristo” (Atos 8.12). Paulo e Barnabé exortavam os novos convertidos a “perseverar na fé, dizendo que, por muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus” (Atos 14.22). Paulo compareceu à sinagoga em Éfeso “argumentando e persuadindo a respeito do reino de Deus” (Atos 19.8). Falando sobre seu próprio ministério, Paulo disse: “não tive nada que fosse proveitoso… pregando o reino de Deus” (Atos 20.20,25). Estando preso em Roma, Paulo recebia muitos visitantes, aos quais “exponha, testificando o reino de Deus e procurando persuadi-los a respeito de Jesus…” (Atos 28.23).
Claramente, pelas próprias palavras de Jesus e pelo testemunho dos apóstolos, Jesus pregava as “boas-novas” de que, por meio d’Ele, o reino de Deus foi inaugurado. O evangelho é o fato de que, em Cristo, o reinado de Deus está próximo e agora irrompe no mundo. Seu Reino, que veio, continua a vir e será plenamente consumado no dia da volta de Cristo. Estas são as boas-novas que oferecem esperança presente e futura que alcança toda a criação de Deus! Além disso, esse evangelho do Reino expande a missão e o propósito da igreja.
Então, o que é o Reino (ou reinado) de Deus?
Uma resposta definitiva a essa pergunta simplesmente não é dada nas Escrituras, mas recebemos vislumbres através dos ensinos de Jesus. Primeiro, Jesus deixa claro que o Reino já chegou — falando aos fariseus, Ele disse: “…é chegado a vós o reino de Deus” (Mateus 12.28). Outra vez, a comissão dada aos apóstolos foi pregar que “está próximo o reino dos céus” (Mateus 10.7). Essa declaração é entendida como a instalação do Reino do Messias, o Senhor, conforme as Escrituras. Para ficar claro: essa “instalação” é inteiramente obra de Deus, e a igreja é Seu instrumento. O avanço do Reino de Cristo jamais deve ser entendido como uma sharia cristã imposta pela força ou coerção.
Ao longo das parábolas, Jesus usa o prefácio: “O reino dos céus é semelhante a…” Por meio desse ensino de parábolas, Jesus descreve o caráter e a natureza do reinado de Deus, que contrasta fortemente com o mundo caído. Em seu primeiro sermão registrado por Lucas, Ele entra na sinagoga de Nazaré, onde fora criado; tomando o livro de Isaías, Ele lê o seguinte trecho:
“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor” (Lucas 4.18-19).
Quando terminou de falar, fechou o livro, sentou-se, e todos os olhos estavam fixos nele; então Ele disse: “Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir” (Lucas 4.21). Imagine a reação deles. Jesus está descrevendo o Reino de Deus no qual tudo o que resultou do pecado e da Queda está sendo restaurado por Ele! O chamado à humanidade, após essa declaração, é arrepender-se dos pecados e abandoná-los, para que possam entrar no Reino e serem salvos. É o reinado de Deus — este evangelho pleno — que a igreja é enviada ao mundo para manifestar como instrumento de Deus e do qual dá testemunho. É somente à luz do Reino que podemos recuperar a compreensão correta do propósito e da missão da igreja.
Para que a igreja seja um instrumento relevante e uma testemunha fiel do evangelho, precisamos recuperar essa compreensão centrada no Reino da missão da igreja. A igreja não é o Reino; ela representa o Reino. A missão da igreja não se reduz a simplesmente manter a instituição; ser “missional” não é um programa da igreja, nem uma atividade que ocorre apenas em campos transculturais. A igreja é um corpo de pessoas chamadas e enviadas (por Deus) ao mundo para representar Seu governo e reinado — embaixadores de Cristo. A igreja existe para a missão de Deus e não para si mesma!
Um pastor amigo meu descreve bem o irromper do reinado de Deus quando diz:
“Há uma grande conversa em O Senhor dos Anéis, de Tolkien, em que Samwise pergunta a Gandalf: ‘Será que tudo o que é triste vai se desfazer?’ A mensagem do Reino é Cristo (por causa de Sua morte e ressurreição) colocando as coisas de volta ao lugar — fazendo com que tudo o que é triste se desfaça.”
Em essência, a igreja testemunha o reinado de Deus que irrompe no mundo e serve como instrumento pelo qual Deus está fazendo “com que tudo o que é triste se desfaça”.
Há um otimismo que deveria naturalmente fluir da constatação de que “o nosso Deus reina” (Isaías 52.7). Infelizmente, esse otimismo está, em minha avaliação, amplamente ausente da igreja evangélica na América. Muitos cristãos parecem viver e pensar como se Cristo tivesse sido vencido pelo mundo, e não o contrário (João 16.33), ou como se as portas do inferno realmente prevalecessem contra a igreja. Talvez, ao recuperarmos a missão bíblica da igreja como participação nesse reinado implacável de Deus, possamos novamente ser um povo que de fato vive, mais do que os que parecem apenas sobreviver!
S. Michael Craven