Pular para o conteúdo

O Mito do Legalismo

Proposição: Paulo, ao advertir contra o legalismo, não combate o guardar os mandamentos de Deus em fé, mas sim o considerá-los equivocadamente como um caminho para salvação, forçando os crentes gentios a guardar a lei cerimonial, ou tentar guardar a Lei independentemente de Cristo.

“Legalismo” está se tornando rapidamente um slogan usado para reprovar alguém que apela à Lei Bíblica. O termo é bíblico? A Escritura expressa tal crítica? Visto que a palavra em si – isto é, uma palavra grega ou hebraica correspondente – não ocorre na Bíblia, aqueles que usam-na como um termo de reprovação deveriam definir sua substância bíblica.

Embora preferisse eliminar completamente a expressão do nosso vocabulário, eu poderia concordar em limitá-la ao significado dado pelos Pais da Igreja: “o esforço para alcançar a justificação pelas obras da lei”. Isso, no entanto, não é o que normalmente se quer dizer, nem é adequado.

Gordon H. Clark assume que “Legalismo” na história da igreja sempre significou a expectação de que o homem poderia ganhar a salvação guardando a Lei. [1] O oposto seria a justificação pela fé, que leva à correta obediência da Lei. Clark continua:

No presente século, a expressão “legalismo” tomou um novo significado. A ética situacional despreza regras e regulamentos. Qualquer pessoa que obedeça conscientemente às leis de Deus é chamada de legalista. Por essa razão, Joseph Fletcher aprova a quebra de qualquer um dos Dez Mandamentos, e dessa forma transfere o significado negativo do “Legalismo” para o ética histórica do Protestantismo. [1]

É triste que isso não seja verdade apenas sobre a ética situacional, mas também dos fundamentalistas que creem que a Lei foi abolida e que então declaram qualquer sistema ético construído sobre a Lei como sendo legalista. Contudo, o legalismo não pode ser substituído pela ilegalidade. Greg L. Bahnsen escreve:

A resposta ao legalismo não é a crença fácil, o evangelismo sem a necessidade de arrependimento, a busca de uma segunda bênção mística do Espírito, ou uma vida cristã destituída de instrução e orientação corretas. O legalismo deve ser combatido com um entendimento bíblico da verdadeira ‘vida no Espírito’. Em tal viver, o Espírito de Deus é o autor gracioso da nova vida, que nos convence do nosso pecado e da miséria contra a lei violada de Deus, que nos une a Cristo na salvação para que possamos participar de Sua vida santa, que nos capacita a entender a orientação dada pela palavra de Deus, e que nos faz crescer pela graça de Deus, tornando-nos pessoas que obedecem aos mandamentos de Deus. [2]

O que é Legalismo?

O Novo Testamento descreve cinco maneiras de usar incorretamente a Lei:

1. Guardando a Lei para ser justificado e salvo. (Veja Rm 3.21-4:25, Ef 2.9-10)

2. Impondo a lei cerimonial sobre os outros. (Gl 4.9-11, Cl 2.16-17, o Livro de Hebreus)

3. Adicionando regras e tradições humanas à Lei divina. (Mc 7.1-15, Mt 15.1-9)

4. Esquecendo-se de coisas essenciais em favor de questões menores. (Mt 23.23)

5. Estando preocupado somente com a obediência externa à Lei de Deus. (Mc 7.18-23, Mt 15.15-20, Mt 23.27-28)

O que não é Legalismo

O Novo Testamento não condena o seguinte:

1. Assumir que a lei moral de Deus é incomparavelmente boa, justa santa e espiritual. (Rm 7.12, 14, 1Tm 1.8. Compare Salmos 19, 8-12 e Salmos 119)

2. Desejar guardar os mandamentos morais de Deus num espírito de filiação (não de escravidão) e no poder do Espírito Santo. (Rm 8.2-4, 3.31)

3. Admoestar os outros sobre a base da Lei divina, quando isso é feito com a atitude correta. (Ef 6.1-4)

4. Apelando à Lei moral de Deus. (Tiago 2.6-12, Rm 13.8-10)

5. Exercendo disciplina eclesiástica. (Gl 5.18-23; 1Tm 1.5-11)

Alfred de Quervain escreve de maneira similar:

Tem sido dito que restringir nossas ações à Escritura cria legalismo, que o homem está livre do legalismo somente quando ele mesmo mesmo determina a lei. Na verdade, aquele que em seu orgulho usa a Lei de acordo com sua própria opinião, age legalisticamente. Esse é o caso, quer ele pretenda guardar a letra da lei ou abandonar a lei escrita e inventar a sua própria lei. [3]

A Escritura nunca é legalista. Ninguém que deriva os seus valores da Palavra de Deus pode ser considerado legalista. Emil Brunner expressou isso bem, sem, contudo, aplicar o princípio em seu próprio sistema ético. [4]

Assim como a Escritura sem o Espírito é Ortodoxia, o Espírito sem a Escritura é falso Antinomianismo e fanatismo.[5]

O legalismo nunca deveria ser usado como slogan contra aqueles que se referem aos mandamentos de Deus, mas deve ser definido de acordo com a Bíblia e então rejeitado com base nela. Se alguém interpretar legalismo como significando o mau uso da Lei, então tal pessoa deve esclarecer a partir da Escritura o que o mau uso implica e como a Lei deve ser corretamente usada. A lista mencionada acima fornece cinco formas de legalismo e cinco usos apropriados da Lei. [6]

Neste contexto, Eduard Böhl, o professor vienense de Dogmática, enfatiza a importância de Lei de Deus para os cristãos, pois somente a Lei de Deus dá uma orientação para identificar leis e tradições falsas:

Não podemos banir a Lei do relacionamento que existe em Cristo entre Deus e o crente: não podemos buscar novos regulamentos para a nossas ações ou, de fato, elevar o nosso capricho próprio ao status de lei. Não fomos redimidos para viver de acordo com regras éticas particulares ou doutrinas de perfeição, mas para cumprir a Lei de Deus (1Co 7.19, Gl 5.6, Rom. 8:4, 13:10). A Escritura ensina claramente que o crente deve ser mantido nos caminhos da santificação pelo Espírito Santo, mas Ele usa a Palavra de Deus, particularmente os Dez Mandamentos como a norma e o governo das nossas vidas. [7]

Böhl também critica o Pietismo por sua tendência a formular novas leis piedosas no lugar da lei bíblica que ele rejeita:

O Pietismo foi apanhado neste temor, quando fez da justificação o requerimento para a santificação; a santificação parecia portanto ser uma continuação da justificação, que deveria ser provada na santificação. Essa atestação da fé pelas boas obras levou a um conjunto de expressões e características da fé da pessoa bem diferente daquele conjunto da lei divina. A genuinidade da justificação era testada por outro patrão que não a Lei de Deus. O homem criou um tipo de nova lex (nova lei), uma para o crente verdadeiro. [8]

Notas:

[1] Gordon H. Clark, “Legalism”, Baker’s Dictionary of Christian Ethics. ed. Carl F. Henry (Grand Rapids, Mich.: Baker Book House,1973) p. 385; reimpresso em Gordon H. Clark, Essays on Ethics and Politics (Jefferson, MD: Trinity Foundation, 1992) p. 150.

[2] Ibid.

[3] Greg L. Bahnsen, By This Standard: The Authority of God’s Law Today (Tyler, Tex.: ICE, 1985) pp. 67-68.

[4] Alfred de Quervain, Die Heiligung, Ethik, Part 1 (Zollikon: Evangelischer Verlag, 1946) p. 259.

[4] Schirrmacher, Ethik, Vol. 1, pp. 297-304 sobre Brunner (pp. 292-306); Thomas Schirrmacher, Das Mißverständinis des Emil Brunner: Emil Brunner’s Bibliologie als Ursache für das Scheitern seiner Ekklesiologie, Theologische Untersuchungen zu Weltmission und Gemeindebau, ed. Hans-Georg Wünch und Thomas Schirrmacher (Lörrach, ermany: Arbeitsgemeinschaft für Weltmission und Gemeindebau, 1982); Thomas Schirrmacher, “Das Mißverständnis der Kirche und das Mißverständnis des Emil Brunner”, Bibel und Gemeinde 89 (1989), pp. 279-311.

[5] Emil Brunner, Das Gebot und die Ordnungen (Zürich: Zwingli Verlag, 1939) p. 79.

[6] Veja também Robertson McQuillkin, An Introduction to Biblical Ethics (Wheaton, Ill.: Tyndale House Publ., 1989); David Chilton, Productive Christiians in an Age of Guilt – Manipulators, op. cit., pp. 22-25, lista quatro formas de legalismo; 1. Justificação pelas obras; 2. Tornar a lei cerimonial obrigatória; 3. Tornar leis humanas obrigatórias; 4. A confusão de pecado com crimes processados pelo Estado.

[7] Eduard Böhl, Dogmatik: Darstellung der christlichen Glaubenslehre auf reformiert – kirchlicher Grundlage (Amsterdam: Scheffer, 1887), p. 515.

[8] Ibid., note 1, p. 515

[divider]

Fonte: Galatians between Legalism and Antinomianism, p. 65-69.

Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto – janeiro/2012