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Carta aos loucos: Depoimento de leitura

Alguém dirá que não é um romance, mas um longo poema em prosa, a Carta aos loucos. Penso o contrário. É um romance restituído àquilo que era no início: um grande poema. Como em Homero, Virgílio, em Dante, em Camões e em Milton. (…) Fascinante, para mim, é que é um romance fleuve de pouco mais de 200 páginas. Uma Comédia humana, um À La Recherche du Temps Perdu em que se conta uma centena de histórias sem que suas personagens abram portas e janelas, bebam chá, conversem fiado. Cada história e cada figurante aparece na sua essencialidade. Bastam seis, dez ou vinte linhas para contar tudo. Há casos em que numa só frase vem todo o enredo. Como na história do homem que se foi no sonho. O que disse, bastou-nos. O resto é conosco. (…) Não é só um roman fleuve, é um romance em carrossel. Explico-me: as suas imitações da vida movem-se em esfera diante de nós, e esta personagem reaparece naquela, não na aparência, mas no núcleo da vida. (…) Não deixo Assombro sem dizer mais duas coisas. Primeira: o resgate do aforismo. É uma beleza acompanhar os aforismos que o autor vai criando e recriando — e, além das máximas, também falsos provérbios populares, com a verdade tal que parece que sempre existiram e que foram tirados da boca da vizinha. Segunda: seu livro devolve às perguntas sem resposta a condição (e a grandeza) de serem como respostas às suas próprias perguntas. Assim, por exemplo, na página 165, quando indaga: “As imagens dos sonhos, depois que depois que morremos, continuam vivas, ou se transmudam noutros sonhos, a visitar os que dormem?” A indagação é sua própria resposta. Afinal, não eram duas coisas mais que eu queria dizer, porém, três. A terceira: que beleza a personificação da cidade, do Oceano, do vento! É um regresso ao épico, romance como forma pura.

Alberto da Costa e Silva
(
Carta ao autor. Rio de Janeiro, 20.2.1999.)

Alberto da Costa e Silva (1931-2023), membro da Academia Brasileira de Letras, foi poeta, diplomata, historiador, ensaísta e memorialista. 


Carta aos loucos, de Carlos Nejar
Editora Sator
Brochura, 180 páginas
Formato: 16 x 23 cm