Diferentes grupos dentro do cristianismo discordam quanto à legitimidade de se representar Jesus em ícones, crucifixos, pinturas ou outros meios visuais. Neste artigo, Chad Bird aborda a questão sob a perspectiva tanto dos mandamentos quanto da encarnação.
Recentemente, fui questionado em minha página do Facebook se imagens de Jesus (por exemplo, em um crucifixo, ícone ou pintura) constituem uma violação do Segundo Mandamento. Como pensei que outros poderiam se interessar por essa questão também, postarei aqui minha resposta.
Pergunta: Imagens de Jesus são uma violação do Segundo Mandamento?
Primeiramente, um pouco de perspectiva histórica. Esta questão geral tem sido debatida desde os primeiros séculos da igreja. Foi o tema do Sétimo Concílio Ecumênico em 787 d.C., e tem sido um ponto contínuo de discordância entre vários líderes da Reforma e seus herdeiros teológicos.
Luteranos, por exemplo, ensinam que cristãos e igrejas são livres para ter ícones, crucifixos, pinturas e outros meios visuais de Cristo. Muitas comunhões reformadas tradicionais ensinam o contrário. Elas sustentam que isso constitui uma violação do mandamento em Êxodo 20.4-5 quanto à confecção de imagens ou semelhanças de Deus.
Uma primeira clarificação preliminar: não podemos simplesmente dizer “o Segundo Mandamento” sem definir de qual mandamento estamos falando. Existem ao menos três diferentes sistemas de numeração dos mandamentos (judaico, luterano/católico romano e ortodoxo/reformado). Na pergunta acima, o “Segundo Mandamento” refere-se à proibição de imagens (o que, para luteranos e católicos romanos, está incluído no Primeiro Mandamento).
Agora, tentemos responder à pergunta original.
O Antigo Testamento
Perguntemos primeiro por que o mandamento foi dado. Deuteronômio 4.15-16 nos dá a resposta: “Guardai, pois, com diligência as vossas almas, pois aparência nenhuma vistes no dia em que o Senhor vos falou em Horebe, do meio do fogo; para que não vos corrompais e vos façais alguma imagem esculpida na forma de qualquer figura…”. O texto prossegue listando quais poderiam ser algumas dessas imagens. Poucos versículos antes, linguagem semelhante é usada: “Então o Senhor vos falou do meio do fogo; ouvistes voz de palavras, porém, além da voz, não vistes aparência nenhuma” (4.12).
O que Deus está dizendo? Ele não mostrou aos israelitas “forma” nem “semelhança”, sendo esta última a palavra hebraica temunah תְּמוּנָה. Essa é a mesma palavra utilizada tanto em Êxodo 20.4 quanto em Deuteronômio 5.8 para proibir a confecção de uma “semelhança” divina. Porque Deus não concedeu ao seu povo forma ou semelhança de si mesmo; porque eles apenas “ouviram a voz das palavras, mas não viram forma alguma”; por isso lhes foi vedado fazer qualquer forma ou semelhança de Deus.
Aquilo que seus olhos não contemplaram, suas mãos não deviam modelar.
Portanto, ao longo de todo o Antigo Testamento, sob o pacto do Sinai, o povo de Israel foi estritamente proibido não apenas de fazer imagens de falsos deuses (é claro), mas também de fazer imagens do verdadeiro Deus, Yahweh. O tabernáculo e o templo estavam repletos de iconografia de querubins, flores e uma variedade de animais, mas não havia imagem alguma do Senhor.
O Novo Testamento
Na encarnação do Filho de Deus, finalmente houve algo novo debaixo do sol. Jesus é “o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu ser” (Hb 1.3). À igreja em Corinto, Paulo escreve que Cristo “é a imagem de Deus” (2Co 4.4). À de Colossos, ele praticamente repete: “[Cristo] é a imagem do Deus invisível” (Cl 1.15). Jesus é Deus tornado visível, tangível, um verdadeiro homem de carne e osso, plenamente divino e plenamente humano em uma só pessoa.
Em outras palavras, diferentemente do que ocorreu no Sinai, quando os israelitas apenas ouviram a voz do Senhor, mas não viram sua forma ou semelhança, na encarnação, Deus se dá a ver e a tocar. Em Jesus, “habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9). Portanto, tocar o corpo de Jesus, ver o corpo de Jesus, e de fato pintar, esculpir ou entalhar o corpo de Jesus, é tocar, ver e representar artisticamente o próprio Deus.
Se qualquer e toda representação visual de Deus fosse proibida, para todos os tempos, em toda e qualquer circunstância, então, na encarnação do Filho, o Pai estaria violando seu próprio mandamento, pois ele nos dá sua imagem, sua semelhança, sua forma em Jesus Cristo — e não em pintura, mas em um homem real.
Sermões visuais
Por essa razão, cristãos de diversas tradições, inclusive a minha, não apenas não têm qualquer hesitação em exibir ou criar imagens de Jesus, mas o fazem com alegria e ousadia, como uma confissão da encarnação.
Esses “sermões visuais” proclamam que o Filho de Deus se fez um de nós. Eles dizem:
— Está vendo o rosto de Jesus naquele ícone? Aquele é o rosto de Deus, feito homem por você.
— Está vendo as mãos de Jesus naquele crucifixo? Aquelas são as mãos de Deus, traspassadas por você.
— Está vendo as cicatrizes de Jesus naquela imagem da ressurreição? Aquelas são as cicatrizes de Deus, que são para a sua cura.
Sob essa perspectiva, quando leio Êxodo 20 ou Deuteronômio 5, vejo ali uma sutil profecia da encarnação. Sob a antiga aliança, quando Deus deu suas “dez palavras” a Israel, uma das quais os proibia de fazer imagens de Deus, vemos uma palavra que um dia encontraria seu verdadeiro cumprimento, quando o Filho do Pai assumisse forma humana, semelhança humana, e se tornasse um conosco, ainda que permanecesse um com seu Pai.
Ler os mandamentos é, portanto, já ouvir, num futuro distante, os anjos tomando fôlego para cantar “Glória a Deus nas alturas”, à medida que o Senhor se faz visível e tangível nos braços de Maria.
Imagens de Jesus, em suma, não são uma violação dos mandamentos, mas a própria celebração de seu cumprimento em Jesus, o ícone do Pai.
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Fonte: https://www.1517.org/articles/are-images-of-jesus-a-violation-of-the-commandments
Tradução: Francisco Batista de Araújo