Personagem central de Carta aos loucos, Assombro é cidade-mulher, onde o maravilhoso da vida se confunde com o maravilhoso ato criador da arte, da obra de arte como expressão da fineza do espírito, à imagem e semelhança do Espírito, contrariando uma tradição demonizadora da imaginação criadora. Carlos Nejar santifica “a loucura” artística, tirando-a do revestimento satânico importo por uma razão tirânica. A socrático-aristotélica Assombro parteja cartas artísticas ou “loucas”, numa metafísica da arte pela via não conceitual da criação literária. A cidade é um útero, labirinto, onde seres humanos vivem e imaginam “loucuras”. Israel Rolando assume a narrativa coletando fragmentos de vida e de imaginação como vida. A criação literária é um ato de assombro, consequência do assombro de estar no mundo e procurar reinventá-lo. Deus criou o mundo, nós estamos condenados a recriá-lo pela arte.
Como toda obra-prima, Carta aos loucos resiste ao resume, à simplificação. Permeada de personagens cujas referências à história da filosofia e à história da literatura são perfeitamente identificáveis, em nenhum momento Carta remete explicitamente às obras dos mesmos. Nejar ludicamente distribui tarefas e funções aos grandes nomes da literatura e da filosofia, como o motorista Deleuze ou o pastor Novalis, sem fazer do romance uma história raciocinante. A este título, vale preciosa ênfase irônica de Clarice Lispector ao referir a Nejar “com admiração, identifico a mim e tão burro quanto eu”. A criação literária não é uma atividade racional, cognitiva, de inteligência conceitual, discursiva, mas “burra” no sentido de produto da inteligência imaginante, da imaginação criadora, fora dos parâmetros da racionalidade, um delírio fugaz e volitivo. Platão e os gregos antigos a designavam mania, loucura pelas musas, através do transe ou delírio poético. A “desordem” artística sempre desafiou a ordem da razão, e esta até hoje acumulou uma enorme dificuldade histórica de conviver com as razões da desordem artística, que é de fato uma ordem singular.
Carta aos loucos parece cumprir a máxima do fragmento 20 de Novalis, “é preciso que um romance seja do começo ao fim poesia”. Nejar recupera fragmentos de palavras e sonhos, imagens, e os transforma em obra de arte, vale dizer, ele não se situa em certa corrente da literatura brasileira que exige desassombro com relação a conceitos de natureza racional e consciente. Querendo a todo custo romancear “ideias”, “doutrinas”, “teses” e “pesquisas”, mais do domínio da história ou da ciência política que da literatura. Nejar afirma-se como um grande artista. A primeira condição de sê-lo é desejá-lo, amparado por uma poderosa imaginação criadora e prepará-la, sem medo do desconhecido. Romance é invenção literária, sem compromissos firmados com a realidade empírica, mas pela magia literária criando um mundo que, quanto mais delirante e criador, mais próximo da verdade. O chamado conteúdo de verdade da obra de arte na filosofia estética de Adorno passa pela obra como contradição estética. A “loucura” da imaginação criadora nunca gerou cadáveres, mas a “racionalidade” da razão não pode olhar para trás — “acende o fósforo a razão, e ser humano é labareda” (obra citada, p. 69).
Novalis imaginou o filósofo como “um mago” que pudesse por em ação à sua vontade “o organismo universal” e fazer aparecer maravilhosamente um mundo. Esta representação foi tomada incontestavelmente do fazer do poeta”, Nejar aproveita-se das maravilhas da Bíblia para, ao lembrar João, Apocalipse 21.5, “eis que faço novas todas as coisas”, fazer novas todas as coisas dispostas no mundo. Carta aos loucos faz aparecer maravilhosamente um mundo, um mundo onde “o futuro é imaginação” (p. 181). E “não estaremos mais sós”. Do mesmo modo, para Baudelaire a imaginação é rainha das faculdades.
Assombro, “a Jerusalém das cinzas”, onde o tempo é doença e morte, onde a razão tem valor relativo, onde a memória só tem valor se for memória imaginante, o único valor absoluto é a imaginação criadora. Há uma mística cristã da imaginação criadora como pão da terra. A obra de arte é o antegosto do gozo definitivo no Espírito face a face. A palavra literária experimenta antecipadamente a liberdade futura, que é a imaginação em Deus. A morte pelo tempo pode ser compensada pela vida na palavra, mas aqui palavra artística. A força da palavra a faz ter cheiro, tato, concretude e transcendência metafísica.
Em diversos momentos da Carta, Nejar abandona por imposição do inconsciente a estrutura “normal” da sintaxe para adotar o “delírio” da parataxe, tão caro a Hölderlin. Sem o misoneísmo dos escritores bem pensantes e racionais, Nejar reafirma sua coragem artística ao ampliar a sua intimidade com os desvãos da imaginação criadora e nos espaços sadios de uma desrazão poética. Carlos Nejar demonstra artisticamente que a razão em literatura se subordina à imaginação criadora, linha auxiliar como razão imaginante, instrumento da dignidade da palavra criadora. Carta aos loucos é um monumento ao pão vivo da palavra literária. Recordo Benedetto Croce, para quem arte é monumento e não documento. Carlos Nejar inaugura um novo paradigma de romance na literatura brasileira, que não é mais a mesma após Carta aos loucos, e certamente muitíssima menos burra, no sentido literal e estrito da palavra.
João Ricardo Moderno
(Artigo publicado no Caderno de Prosa e Verso, jornal O Globo, 1999)
João Ricardo Moderno (1952-2018) era filósofo, jornalista, professor e artista plástico. Foi Presidente da Academia Brasileira de Filosofia.
Carta aos loucos, de Carlos Nejar
Editora Sator
Brochura, 180 páginas
Formato: 16 x 23 cm