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O louco de Deus

Carta aos loucos é a biografia de uma aldeia-mulher. É a história de um povoado, Assombro, disposto a abolir o tempo que o envelhece, determinado a caçar o tempo como a um animal. Esse tempo que se esconde nos costumes, no tédio, na inércia, nas doenças, na desilusão amorosa, para domesticar o homem. “Se queres caçar o tempo, busca o lugar em que se alimenta”, avisa um dos viventes. O tempo passa a perder terreno, quando os protagonistas decidem revelar a história do sangue. A saga da aldeia, síntese do imaginário brasileiro.

Carta aos loucos é o retorno a uma narrativa primitiva, de Homero e dos clássicos, quando a narração, antes de tomar o formato de romance, era indivisível poema. E seguindo a tradição oral grega, o escriba e aldeão, Israel Rolando, salva a si mesmo ao salvar em livro o rosto de cada um que conheceu. Na obra, a mensagem é o próprio mensageiro. Os personagens ultrapassam a esfera de personagens: são cartas de uma aparente loucura que é sabedoria. Sentem-se relatados, esmiuçados, conscientes da presença do narrador entre eles. Descobrem que “na luz nada pesa” e que a escuridão é “uma moeda calada”. As figuras centrais da trama perdem o sonho individual. Experimentam o sonho coletivo. que só conectado nos sonhos de outros viventes pode ser então decifrado. As metáforas, ao contrário de intimidar a leitura, prolongam o impacto visual aos demais sentidos.

Carta aos loucos é um romance de pensamento a pensamento. Nejar aponta o rio da memória em que o realismo mágico necessita desembocar. Não basta mais expor a realidade pelos seus excessos, mostrar o impossível, o fantástico. O que os leitores querem é interagir no teatro dos pensamentos e encontrar saídas para engrandecer o destino. Se “viver é trocar de abismo”, na vida se ressuscita muitas vezes ao dia. A força das pequenas mortes ensina ao homem a parar de morrer.

Nejar cria um novo paradigma e perspectiva ao cânone ocidental. As palavras não mais se movimentam por esporas ou chibatadas a ponto de o verbo virar um adjetivo ou ornamento. O escritor gaúcho é um criador substantivo, transitivo, que encontra na ficção o amadurecimento de sua poética.

Fabrício Carpinejar
Poeta, cronista e jornalista


Carta aos loucos, de Carlos Nejar
Editora Sator
Brochura, 180 páginas
Formato: 16 x 23 cm