1. Então falou Deus todas estas palavras, dizendo:
2. Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.
3. Não terás outros deuses diante de mim. (Êxodo 20.1-3)
A promulgação da Lei foi precedida por um requisito de santificação física. A Lei foi dada no monte Sinai, em um lugar improvável do ponto de vista humanista. Em todos os aspectos, os requisitos de Deus se opunham às antecipações humanistas. A soma total das visões e expectativas humanistas pode ser expressa na palavra magia. Essa palavra, para nós, geralmente carrega o sentido de crenças infantis ou primitivas, e isso nos impede de compreender seu significado e perigo.
As crenças mágicas começam com dois pressupostos básicos: primeiro, a crença na continuidade do ser, de modo que o que o homem faz pode afetar ou governar quaisquer forças ou ser que sejam últimos no universo; e, segundo, a adoração do poder. Há outras crenças fundamentais, mas, para nosso propósito presente, apenas estas devem ser consideradas. A magia é, em geral, naturalista antes que sobrenaturalista; sua visão dos fenômenos naturais pode incluir o que é supranormal. Gerardus Van Der Leeuw (1890-1950) disse das religiões antigas e sua perspectiva mágica que “‘deus’ é, acima de tudo, o nome para alguma experiência de Poder”. A palavra “deus”, para nós, é um “termo demasiadamente pessoal” para oferecer uma ideia clara do que eram os deuses pagãos. Van Der Leeuw escreveu:
Das emoções das jovens de Trózen, por exemplo, que antes do casamento sacrificavam suas tranças, surgiu o nome e, mais tarde, a forma de Hipólito. Isto, porém, não implica teoria antropomórfica nem sabedoria feuerbachiana. O poder presente na experiência conduz à dotação de forma. A entrega da virgindade envolve contato com algum poder estranho, e este contato recebe nome e forma.[1]
O objetivo da magia é o controle e a dominação. A magia, portanto, está intimamente relacionada à ciência, e sua perspectiva essencial é hostil à religião. Enquanto a religião normalmente busca conhecer e obedecer ao poder supremo, a magia busca o controle do poder supremo. Está, assim, mais próxima da ciência e do estatismo.
Para compreender mais profundamente a magia, examinemos exemplos dela, tanto antigos quanto modernos. Em algumas culturas, antes do plantio, homens e mulheres copulam no campo para estimular sua fertilidade; na Índia, mulheres nuas arrastam um arado por um campo durante a noite; entre os Kamchadals, membros da tribo que sonham em conquistar o favor de uma moça dizem-lhe isso, e ela se submete.[2]
Em um exemplo mais moderno, um funcionário do Pentágono, atuando como jurado, conseguiu a absolvição de um jovem marginalizado envolvido com drogas e atividades criminosas. Quando lhe perguntaram a razão, respondeu: “Da próxima vez pode ser meu filho”. Que relação havia entre absolver um marginal, e um possível julgamento futuro de seu filho? O homem estava usando o poder para estabelecer um precedente a fim de criar, na cadeia do ser, uma futura misericórdia para seu filho e para os filhos de outros. Outro exemplo: um homem insistia religiosamente em misericórdia para com um criminoso depravado, culpado de um delito atroz. Em resposta às objeções, disse: “Não creio que Deus será menos misericordioso do que eu”. Ele estava tentando ensinar a Deus algo sobre misericórdia! Como a magia nega a divisão bíblica entre o Ser incriado de Deus e o ser criado de toda outra vida e coisa, e como afirma a grande Cadeia do Ser, ela crê que os atos do homem podem afetar todo o ser. A prática mágica abraça o poder da contaminação por causa dessa continuidade. Assim, sustenta-se que, se nos desarmarmos, a União Soviética se desarmará; se formos “bons” com os criminosos, eles se tornarão bons, e assim por diante.
Deus lida com essa perspectiva por meio do profeta Ageu:
11. Assim diz o Senhor dos Exércitos: Pergunta agora aos sacerdotes acerca da lei, dizendo:
12. Se alguém leva carne santificada na aba da sua veste, e com a aba toca em pão, ou em caldo, ou em vinho, ou em azeite, ou em qualquer outro mantimento, ficará isso santificado? E os sacerdotes responderam: Não.
13. Então perguntou Ageu: Se alguém, contaminado por ter tocado num corpo morto, tocar em alguma dessas coisas, ficará imunda? E os sacerdotes responderam, dizendo: Ficará imunda. (Ageu 2.11-13)
Isso significa que, na esfera física, nem a limpeza nem a saúde são contagiosas, ao passo que a sujeira pode poluir o que é limpo, e a doença pode afetar o que é sadio. Na esfera moral, a justiça e a moralidade não são contagiosas, ao passo que o mal e a injustiça o são. O homem, sendo decaído, pode poluir, mas não pode purificar; isto é prerrogativa de Deus e pertence ao seu poder.
Assim, Deus começa declarando que o bem na vida de Israel é inteiramente obra sua: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão” (v. 2). A libertação não foi obra de Israel, mas de Deus. A declaração de Deus a Paulo resume a questão: “A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2 Coríntios 12.9). Qualquer confiança num sistema de poder humanista conduz à magia, porque assume a ultimidade da ação humana.
Em seguida, Deus declara, como o Primeiro Mandamento: “Não terás outros deuses diante de mim” (v. 3). Isso pode também ser traduzido como “ao lado de mim”, “diante de minha face” ou “na minha presença”. Pode ainda ser lido como “nenhum outro Deus”.
A expressão “diante de mim”, ou “diante de minha face”, foi vista por Cole como relacionada a uma expressão semelhante em Levítico 18.18, que proíbe a poligamia. Ele escreveu:
Esta frase um tanto incomum parece também ser usada para referir-se à tomada de uma segunda esposa enquanto a primeira ainda está viva. Tal uso, ou quebra de um relacionamento pessoal exclusivo, ajudaria a explicar o significado aqui. Isso, então, se conecta com a descrição de Deus como um “Deus zeloso” no versículo 5.[3]
Esta é uma observação reveladora, pois esta lei exige “um relacionamento pessoal exclusivo”. Isso significa que nenhuma outra fonte de poder, bênção, esperança ou qualquer outra coisa deve ser buscada fora do Deus das Escrituras. Não podemos limitar o poder e a eficácia de Deus a qualquer esfera enquanto o excluímos das demais.
A versão King James é muito precisa em um ponto específico. Ao contrário das versões modernas, ela lê: “Thou shalt have no other gods before me”. Thou é a forma do pronome pessoal de segunda pessoa do singular, enquanto you é o plural. O inglês moderno abandonou a forma singular, ao passo que a leitura verdadeira aqui é pessoal. Embora todo o povo do pacto esteja sendo endereçado, Deus não lhes fala como a um grupo, mas como indivíduos. O pacto era com Israel como grupo, e com cada pessoa em particular.[4]
Outro ponto: segundo Martin Buber, as leis dos Dez Mandamentos são mais acuradamente traduzidas como “Não terás… não farás”.[5] Temos uma série de ordens. Deus não está negociando um tratado, contrato ou aliança com Israel: ele a está concedendo em sua graça e misericórdia e, como resultado, os mandamentos são dados unilateralmente. Leis negociadas representam um consenso, não uma ordem última de justiça. A lei humanista expressa não a justiça de Deus, mas ou uma vontade arbitrária criada e imposta pelo homem, ou um consenso democrático. Como tal, ela é, por natureza, alheia à justiça. Representa ou a lógica humana, como sustentavam os antigos estudiosos do direito, ou a experiência, como insistia Oliver Wendell Holmes. A experiência triunfou agora como a chave para todas as esferas. A Suprema Corte dos Estados Unidos decide os casos diante de si em termos da experiência popular e jurídica. As escolas públicas cada vez mais enfatizam “a experiência de aprendizagem”. Os estudantes agora são levados, por exemplo, em viagens com crédito acadêmico para a França, a fim de obter aprendizado por meio da experiência.
A lei, porém, não deve ter por fundamento nem a lógica nem a experiência. Seu único fundamento válido está no ser e na natureza de Deus. Qualquer outra doutrina da lei destruirá uma sociedade; é comparável a remover os ossos de um corpo e ordenar que o homem permaneça em pé.
Os Dez Mandamentos são divididos de maneiras diversas. Na forma judaica de nossos tempos e de um pouco antes, os dois primeiros versículos são considerados o primeiro mandamento, e os versículos 3 a 6 formam o segundo. Santo Agostinho acrescentou o segundo mandamento ao primeiro, e então dividiu o décimo; esta divisão ainda é usada pelas Igrejas Católica Romana e Luterana. A disposição reformada e inglesa é hoje mais amplamente utilizada. A única diferença entre essas três formas está na divisão dos versículos, não em seu conteúdo.
Por fim, é necessário observar que o Primeiro Mandamento, ao condenar qualquer outro deus ou fonte de poder, condena o sincretismo. O sincretismo é a tentativa de unir duas coisas ou conceitos alheios entre si a fim de aumentar o poder disponível. Os sincretistas, na religião, procuram reunir o que consideram o melhor de todas as religiões para aumentar sua eficácia e poder. Na esfera econômica, os sincretistas creem numa economia mista, unindo capitalismo e socialismo, entre outras coisas. Na política, os sincretistas creem que um mundo melhor surgirá se crenças políticas conflitantes forem fundidas em uma única ordem. Em toda esfera, o sincretismo é uma violação do Primeiro Mandamento: “Não terás outros deuses diante de mim” (v. 3). O sincretismo, em qualquer esfera, emerge onde quer que haja desprezo por esta lei.
[1] Gerardus Van Der Leeuw, Religion in Essence and Manifestation, 13.3 (Nova York, N.Y.: Macmillan, 1938), 157.
[2] Ibid., 2, 5, 10, 82, 95, 554.
[3] R. Alan Cole, Exodus (Downers Grove, Illinois: Intervarsity Press, 1973), 153.
[4] H.L. Ellison, Exodus (Philadelphia, Pennsylvania: Westminster Press, 1982), 106.
[5] Ibid., 105.
Fonte: R. J. Rushdoony, Exodus: Volume II of Commentaries on the Pentateuch
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto