Na noite em que foi traído, Jesus instituiu um rito extremamente simples. Duas orações, dois elementos: pão e vinho. Seria de se pensar que, com tal simplicidade, não teríamos dificuldade em seguir o padrão. Mas, na verdade, temos sim um problema. Costumamos fazer apenas uma oração em vez de duas, e, na América do Norte, é mais provável que se sirva suco de uva do que vinho na maioria das igrejas.
Deixando de lado a questão de uma oração em vez de duas, por que utilizamos suco de uva no lugar do vinho?
Houve duas principais defesas dessa mudança para o suco de uva. Primeiro, alguns afirmam que a prática original era o suco de uva, e que é a isso que a Bíblia se refere quando fala do “fruto da videira”. Alguns chegam ao ponto de sugerir que, sempre que o vinho é mencionado de forma positiva nas Escrituras, trata-se, na verdade, de suco de uva.
Em segundo lugar, mesmo entre aqueles que aceitam que o vinho era o elemento original na ceia do Senhor, há um forte sentimento de que o uso do vinho na comunhão constitui uma grave ofensa para aqueles que foram alcoólatras, podendo até lançá-los novamente no abismo.
O que se segue está longe de ser um tratamento exaustivo do tema, mas desejo abordar esses pontos de forma bastante breve.
1. Vinho realmente significava vinho
A Igreja Primitiva celebrava a ceia do Senhor semanalmente. Paulo dá a entender que, sempre que os coríntios se reuniam como igreja, a intenção era comer a ceia do Senhor (1Co 11.18, 20). De modo semelhante, Atos 20.7 faz referência à prática costumeira em Trôade: reunir-se no primeiro dia da semana “para partir o pão” — uma referência à celebração do sacramento.
O que isso tem a ver com o fato de se usar ou não vinho na Ceia do Senhor?
Ora, é preciso lembrar que, antes do advento dos métodos modernos de preservação, era literalmente impossível manter suco de uva não fermentado disponível o tempo todo. Ele estragava em pouco tempo. Um suprimento semanal e contínuo só podia ser, por definição, de vinho — vinho real, legítimo, vinho forte, bebida alcoólica de verdade. A Igreja Primitiva, não nos esqueçamos, não vivia nos dias do Sr. Welch.
Muito antes de instituir a Ceia, Jesus se caracterizou como aquele que dá o vinho. Todos conhecemos a história de João 2: numa festa de casamento em Caná, o vinho acabou, e Jesus atendeu à emergência transformando milagrosamente água de purificação em vinho excelente. Frequentemente se alega que o que Jesus produziu era novo e, portanto, não fermentado — em suma, que era suco de uva. Contudo, isso não corresponde ao texto. O mestre de cerimônias ficou tão satisfeito com o vinho de Jesus que perguntou ao noivo por que havia guardado o melhor vinho para o fim; a prática usual era o contrário. (Isso porque, depois que parte do vinho já fora consumida, os convidados estariam agradavelmente aquecidos e o paladar menos exigente.) Ora, como o próprio Jesus diz em outra ocasião, ninguém bebe vinho velho e logo deseja o novo, pois “o velho é excelente” (Lc 5.39). Não há qualquer indício de que Jesus tenha feito algo pela metade, transformando água em suco de uva não fermentado. Ele fez vinho. É assim que ele se apresenta: como aquele que dá o vinho.
2. Apenas o vinho pode ser “o fruto da videira”
Como já foi observado, alguns afirmam que a expressão “fruto da videira” é mais ampla do que o vinho e, portanto, que o suco de uva, sendo proveniente do fruto da videira, é ao menos um substituto aceitável para o vinho.
Contudo, tal argumento ignora vários fatos:
1. O Novo Testamento de fato utiliza a expressão “fruto da videira” (que soa mais genérica), mas também emprega explicitamente o termo “vinho”. Ainda que fosse apenas por essa razão, o específico governa o geral. Não podemos mais dizer que “fruto da videira” pode significar “suco de uva” do que podemos dizer que “Filho de Davi” pode significar “Tiago, o irmão do Senhor”. Se não nos é permitido adorar Tiago ou Judas, tampouco nos é permitido substituir o vinho pelo suco de uva.
2. A expressão “fruto da videira” é usada de modo paralelo nos três Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), quando Jesus afirma que não beberá mais daquele fruto da videira. Ela não é usada em nenhum outro lugar para se referir à ceia do Senhor. Em outras palavras, não há nenhum mandamento geral nos instruindo a usar “o fruto da videira” de modo genérico. Se o fruto da videira ao qual Jesus se referia era o vinho, não temos autorização para ampliar o referente e incluir o suco de uva.
3. A própria expressão “fruto da videira” é tomada da bênção judaica de ação de graças pelo vinho (ver, por exemplo, I. Howard Marshall, NIGTC Commentary on Luke, ad loc em Lc 22.18). Não nos é permitido esmiuçar os elementos da expressão e fazê-la significar tudo o que poderia significar em tese. Devemos interpretá-la segundo o uso que lhe foi realmente dado.
3. Alterar a forma é alterar o significado
Uma das maiores aflições sob as quais a Igreja atualmente sofre é uma espécie de gnosticismo que trata a matéria — as coisas tangíveis — como indiferente, como se tudo o que é importante ocorresse apenas no espaço entre as orelhas. A forma é considerada, na melhor das hipóteses, periférica, e muitas vezes completamente irrelevante. (Aliás, é esse mesmo gnosticismo que está por trás do outro erro mencionado no início — uma oração em vez de duas. “Por que orar separadamente pelo pão e pelo vinho?”, raciocinamos implicitamente. “São a mesma coisa, no fim das contas.” Ironia das ironias: os batistas não tratam a imersão desse modo. E embora eu discorde da noção idiossincrática de que batismo significa imersão, respeito a insistência deles em realizar o rito de uma maneira específica.)
O vinho desempenha uma função específica nas Escrituras e não pode ser substituído por suco de uva. Na Escritura, o vinho é símbolo de muitas coisas: potência, alegria, celebração, fartura, banquete. O suco de uva não compartilha de nenhuma dessas associações bíblicas.
Já que somos gnósticos e achamos que toda a atividade se dá apenas em nossas cabeças, permitam-me ao menos tentar abordar essa questão apelando às implicações intelectuais do vinho em contraste com o suco de uva. Mesmo que digamos que os elementos são meramente simbólicos — e apenas simbólicos —, ainda assim eles devem simbolizar algo. Eles não remetem a si mesmos.
Um dos erros comuns é supor que o ponto central do elemento é a cor, que nos faz lembrar o sangue de Jesus. Ora, não nego que a cor provavelmente tenha sido intencionada como parte da associação entre o vinho e o sangue de Cristo. Mas isso, no mínimo, levanta a questão: será que a cor é a única associação pretendida? Do contrário, Kool-Aid de cereja ou qualquer outra bebida vermelha seriam igualmente apropriados.
Nossos problemas com a teologia da ceia e nossa rejeição da forma original da ceia estão interligados. Como enxergamos a ceia principalmente como um momento para sentar, fechar os olhos e visualizar o sangue escorrendo do corpo de Jesus — e sentir-se profundamente comovido, contrito, ou algo do tipo —, o suco de uva não representa obstáculo algum. Se é que não representa até uma melhoria em relação ao vinho. Menos distração. Nenhuma tontura.
Mas… e se? E se nossa prática estiver reforçando uma concepção errada do sacramento desde o início? E se Jesus deseja que vejamos seu sangue, não como algo sobre o qual devemos lamentar e nos comover, mas como vida — vida abundante? Afinal, é isso que ele indica em João 6, onde associa a vida, a vida eterna — a vida do mundo — a comer sua carne e beber seu sangue.
Isaías 25.6 traz uma gloriosa profecia acerca do tempo do Messias: “O Senhor dos Exércitos dará neste monte a todos os povos um banquete de manjares suculentos, um banquete de vinhos envelhecidos, de tutanos gordurosos, de vinhos envelhecidos, bem puros”. Será tão estranho pensar que o vinho da ceia do Senhor foi instituído para evocar e corporificar tal promessa? Será tão estranho pensar que estamos — como professamos estar — celebrando a ceia do Senhor, e não participando de um velório?
4. O vinho de Cristo é cura
O que, então, devemos responder à objeção comum de que, ao usarmos vinho na ceia, estaremos colocando uma pedra de tropeço diante dos alcoólatras?
Devemos negar que isso seja verdade.
Temos bebido profundamente (com o perdão do trocadilho) do anti-evangelho do diagnóstico moderno. Não posso me alongar muito sobre isso aqui. Mas direi algumas coisas que, creio, são manifestamente verdadeiras à luz das Escrituras.
Primeiro, a Bíblia não conhece algo chamado “alcoolismo”. O pecado com o qual ela lida é a embriaguez. A noção de alcoolismo funciona, em grande medida, para obscurecer as fronteiras entre enfermidade e atos pecaminosos.
Segundo, os pecados mais comumente associados à embriaguez nas Escrituras são pecados de indulgência e falta de domínio próprio — como a glutonaria. A resolução bíblica para a glutonaria, por sua própria natureza, não é a abstinência de alimento. Pelo contrário, o excesso é tratado mediante o domínio próprio guiado pelo Espírito.
Terceiro, o pecado da embriaguez é muito mais antigo do que nosso diagnóstico culturalmente condicionado acerca do alcoolismo. Tem sido um problema recorrente em praticamente todas as épocas e, sem dúvida, era suficientemente conhecido em Israel e na Igreja Primitiva para ser abordado tanto pelos profetas do Antigo Testamento quanto pelos apóstolos em suas cartas. E ainda assim, apesar disso, Jesus escolheu instituir o banquete da Igreja com vinho. A noção de que somos mais sensíveis pastoralmente do que o próprio Cristo é repugnante e de uma arrogância inconcebível.
O que precisamos reconhecer, acima de tudo, é que a ceia não é uma instituição nossa. Não é algo que tenhamos concebido para auxiliar nossa imaginação simbólica ou nutrir uma vida emocional espiritual. É o dom de Cristo para nós, no qual ele se dá a si mesmo.
Há inúmeras implicações nisso. Uma delas é que devemos ser extremamente cautelosos quanto a dar rédeas soltas à nossa própria criatividade, com base em nossa própria sabedoria. Porém, mais especificamente, trata-se de um lembrete de que Cristo, o Médico (pois esse é um dos sentidos centrais da palavra Salvador), vem até nós aqui para nos tornar íntegros.
A ideia de que o banquete de Cristo, tal como ele o instituiu, poderia ser causa de pecado, reflete uma postura incrédula em relação à ceia do Senhor. Em vez de olhar para este vinho como uma possível queda para um alcoólatra, deveríamos vê-lo como Cristo, em sua misericórdia, restituindo seus bons dons ao pecador que os abusou em outros contextos. Cristo é o Médico, e ele nos ensina a gratidão por meio da celebração que ordena em sua própria presença.
Assim, retirar o vinho da ceia é emasculá-la, é roubar dos necessitados — sim, é roubar até mesmo daqueles que lutam contra o vício do álcool — o dom de vida curadora que Cristo oferece.
Vinho significa vinho.
— Tim Gallant
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto