Um respeitável teólogo da Reforma se pronuncia
Wolfgang Musculus (1497-1563) foi uma figura importante no desenvolvimento da fé reformada. Richard A. Muller o descreve como um dos “importantes codificadores da fé reformada de segunda geração”, ao lado de Calvino, Vermigli e Hipério (Muller, Post-Reformation Reformed Dogmatics, Vol. 1, p. 31). Ele é descrito por Farmer como um destacado reformador nas cidades de Augsburgo e Berna. Em Berna, foi professor de teologia, bem como um influente conselheiro eclesiástico. Seus comentários bíblicos foram muito populares em sua época, sendo amplamente utilizados em toda a Europa reformada e passando por inúmeras edições (veja Craig S. Farmer, “Wolfgang Musculus’s Commentary on John”, em Richard A. Muller e John L. Thompson, org., Biblical Interpretation in the Era of the Reformation, p. 216 ss.).
Graças à gentileza do Dr. Matthew Colvin, que investiu tempo, esforço e utilizou seus privilégios de acesso à biblioteca para obtê-lo para nós, podemos apresentar aqui a discussão de Musculus sobre a pedocomunhão, extraída de sua obra de 1560, o Loci Communes Sacrae Theologiae (conhecido em inglês como Common Places of the Christian Religion). O Loci Communes é, essencialmente, uma teologia sistemática, embora Farmer observe que o material foi “recolhido de seus comentários e foi escrito a serviço da exegese” (Farmer, p. 216, nota 1).
A versão aqui apresentada é da tradução inglesa de John Man, publicada em Londres em 1578. A numeração das páginas refere-se a essa edição. Mantivemos a estrutura original da tradução, ainda que algumas expressões possam parecer desajeitadas. No entanto, tomamos a liberdade de atualizar a grafia [do inglês] e, sempre que possível, modernizar palavras arcaicas (as palavras originais são indicadas entre colchetes). Uma vez que o texto original continha poucas quebras de parágrafo, também as inserimos onde apropriado.
Convém observar que o próprio Musculus não advogou o retorno à prática da pedocomunhão. O leitor perceberá isso claramente ao final de seu tratamento sobre o tema, apresentado abaixo. Ele aparentemente hesitou em insistir na questão, visto que concordava plenamente com os demais reformadores de que a participação no sacramento não era necessária para a salvação dos filhos dos crentes.
Ao mesmo tempo, como se verá, ele é cauteloso ao censurar os Pais da Igreja Primitiva por sua prática. Como se tornará evidente, em sua perspectiva, essa prática antiga estava solidamente fundamentada nas Escrituras, e Musculus rejeita de forma contundente o apelo frequente a 1 Coríntios 11.28 (a exortação de Paulo para que cada um “prove” ou “examine” a si mesmo antes de participar) como suposta demonstração de que as crianças não estariam qualificadas para participar.
Uma de suas contribuições mais fortes para essa discussão é sua observação de que não é a capacidade de examinar-se que qualifica os participantes, de qualquer forma; o autoexame é um meio de proteger-se contra o juízo divino — juízo que Musculus afirma não recairá sobre os filhos dos crentes.
Podemos, assim, comparar e contrastar Musculus com Calvino em diversos pontos.
1. Ao contrário de Calvino, Musculus presta muita atenção à Páscoa em seu tratamento mais amplo sobre o sacramento e, também ao contrário de Calvino, Musculus acredita firmemente que as crianças eram admitidas à Páscoa.
2. Ao contrário de Calvino, Musculus não presume que os filhos dos crentes que ainda não têm capacidade para examinar-se possam, por isso, sujeitar-se ao juízo.
3. Relacionado ao ponto (2), Musculus nega aquilo que Calvino parece presumir implicitamente, a saber, que o autoexame tem algum tipo de papel constitutivo com relação à ceia. Para Musculus, o autoexame é uma medicina preventiva, não um meio pelo qual alguém se qualifica para a participação.
4. Subjacente a tudo isso está a ênfase de Musculus na ceia como sendo “pública e comum a toda a igreja”. Essa ênfase pode ser discernida em Calvino, mas não de forma tão explícita e central quanto é no tratamento de Musculus. É essa compreensão da Igreja como a comunidade eucarística que fundamenta toda a posição de Musculus.
Chega de comentários. Sigamos para a fonte original!
Tim Gallant, Dezembro de 2003
(O material a seguir encontra-se sob o título: “A quem deve ser ministrada a ceia do Senhor e a quem não.”)
p. 757
A administração da ceia não consiste em um uso privado, como se pertencesse a algumas pessoas escolhidas e designadas, mas é pública e comum a toda a igreja, de modo que todos quantos são contados entre os membros da igreja, por quem o corpo de Cristo foi entregue e seu sangue derramado na cruz, devem ser admitidos a ela. E a própria tradição do apóstolo, bem como o costume da Igreja Primitiva, declara suficientemente que seu uso é comum a todos os fiéis, tanto que os Pais da Igreja admitiam também os filhos dos fiéis, como podemos ver em Cipriano e Agostinho.
p. 761-764
É sabido que o sacramento era dado também aos filhos dos fiéis nos tempos do Papa Inocêncio, de Cipriano e de Agostinho, tanto na Europa quanto na África. Nem leio que o costume fosse contrário em qualquer lugar da Ásia. Há uma história lida no sermão de Cipriano, De Lapsis, de uma jovem que foi levada por sua ama, durante o tempo de perseguição, aos sacrifícios dos gentios, a qual foi depois, quando tudo estava tranquilo, levada por sua mãe ao sacramento de ação de graças dos fiéis. Há menção, em muitos lugares de Agostinho, do sacramento de ação de graças sendo dado a crianças pequenas.
Mas, após o tempo desses pais, aquele costume universal começou pouco a pouco a decair, até que o contrário prevaleceu tanto, que agora se considera como um herege declarado aquele que sustenta que o sacramento da ceia do Senhor deve ser dado a crianças.
Na Lorena, ainda hoje permanece algum vestígio desse costume. Pois ali, quando uma criança é batizada, o ministro ou sacerdote que realizou o batismo retira da sacristia para o altar o píxide onde se guardam certas porções do pão sacramental, como eles o chamam, e ele eleva uma dessas porções diante do povo; depois, recoloca-a novamente no píxide e estende ao diácono os dois dedos com os quais segurou o pão, para que sejam lavados com vinho, e desse vinho ele goteja um pouco na boca do infante, dizendo: “O sangue de nosso Senhor Jesus Cristo te aproveite para a vida eterna”. Esses resquícios do antigo costume permaneceram não apenas nas igrejas da Lorena, mas também, suponho eu, em muitas outras.
E aquela palavra de Cristo também levou os Pais da Igreja a dar o sacramento da ceia às crianças: “Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos”. Por isso, eles julgaram necessário admitir também os infantes ao sacramento da ceia do Senhor, para que pudessem tornar-se participantes da graça de Cristo e da vida eterna. Pois eles aplicaram essa afirmação de Cristo — que falava do comer e beber espiritual de sua carne e sangue e do fruto de sua morte — à cerimônia do sacramento; e seus sucessores foram levados, pela palavra do apóstolo, a retirar o uso desse sacramento das crianças: “Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma do pão e beba do cálice”. Pois, a partir desse texto, concluíram: As crianças não podem examinar-se a si mesmas; logo, não é lícito que comam desse pão e bebam do cálice do Senhor.
Que vejam aqui aqueles que clamam [lit. gritam estridentemente] contra os Pais da Igreja que estes não interpretaram as Escrituras de maneiras diversas, mas de forma harmoniosa e coerente. Cipriano, Agostinho e o Papa Inocêncio sabiam muito bem que o apóstolo disse: “Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma do pão e beba do cálice”. Nem eram eles tão ignorantes [lit. tão asnos] que não soubessem que as crianças não são capazes de se examinar a si mesmas. Além disso, também aqueles que os seguiram sabiam que o Senhor havia dito: “Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos”.
Então, como é que um grupo interpretou a palavra do apóstolo de forma que julgou que ela não impede que as crianças sejam participantes do sacramento da ceia do Senhor, enquanto o outro grupo julgou que essa palavra as impede de participar? E, novamente, como entenderam eles a palavra de Cristo, de modo a concluir que os filhos dos cristãos não poderiam ser salvos a menos que participassem do sacramento da ceia do Senhor, e, ainda assim, esses outros sustentaram que nenhuma conclusão desse tipo deve ser tirada, tanto que sua opinião é que os filhos dos fiéis podem ser salvos sem a comunhão sacramental?
Essa diversidade de interpretações é tal que uma reprova a outra como erro, e isso em uma questão de grande peso: a saber, a salvação de nossos filhos, que é o que mais nos preocupa logo após nossa própria salvação.
Será esta uma exposição das Escrituras feita de forma coerente e harmoniosa? Eu não me ponho a atacar os Pais da Igreja — Deus me livre — mas culpo a perversidade [lit. obstinação] daqueles que condenam como heresia os dons de Deus, naqueles que, em nossa época, expõem as Sagradas Escrituras, pelo fato de que diferem em muitos pontos uns dos outros. Se a discordância na exposição das Escrituras é heresia, que eles acusem também os Pais da Igreja, ou então prestem atenção àquela palavra do Senhor: “Não julgueis segundo a aparência, e sim pela reta justiça”.
Quanto a mim, estou tão longe de condenar os labores dos homens eruditos, sejam antigos ou modernos, pelo fato de que em alguns pontos expõem as Sagradas Escrituras de maneiras diversas, cada um conforme seu próprio entendimento, que, por essa mesma razão, os leio ainda mais atentamente, do que se todos fossem tão servilmente limitados ao julgamento de algum único Doutor, que nenhum homem pudesse livremente declarar seu próprio juízo. A diversidade de opiniões e de exposições aproveita ao homem sábio, desde que ninguém condene precipitadamente aquele que dele discorda, e assim rompa o vínculo da paz na Igreja.
Quanto a este assunto que aqui discutimos, suponho que não será inadequado considerá-lo se o ato dos antigos, que admitiram crianças aos sacramentos de ação de graças, for ponderado separadamente da razão que os levou a isso, e que possamos julgá-lo também conforme outras razões piedosas e prováveis, das quais exporei algumas para serem consideradas pelo leitor.
A primeira razão é que o sinal não parece dever ser negado àquele que é participante daquilo que é significado.
A segunda é que Cristo é o Salvador de todo o corpo, isto é, da igreja, e que as crianças também pertencem à integridade e totalidade do corpo eclesiástico.
A terceira é que o próprio Cristo disse: “Deixai vir a mim os pequeninos, e não os impeçais, porque dos tais é o reino dos céus”.
Pois, por estas razões, me parece que podemos concluir o seguinte.
Primeiro, se aquele que é participante daquilo que é significado pode ser feito participante do sinal, e se os filhos dos que creem são participantes da morte de Cristo, isto é, da redenção adquirida por ele, logo, eles podem também participar da ceia do Senhor.
Segundo, se nossas crianças pequenas são parte da Igreja, que é o corpo de Cristo, segue-se que elas pertencem também à comunhão, pela qual, segundo a palavra do apóstolo, somos um só corpo, nós que participamos de um só pão e de um só cálice. Cristo é o alimento de todo o seu corpo; logo, também de nossas crianças. Por isso, assim como os filhos pequenos dos judeus pertenciam à Páscoa, o sacramento de sua redenção, tanto quanto seus pais, assim também nossos filhos pertencem igualmente ao sacramento de nossa nova Páscoa, assim como nós.
Terceiro, se Cristo dignou-se a permitir que crianças viessem a ele, para abraçá-las, impor-lhes as mãos e abençoá-las, como poderemos julgá-las indignas de serem admitidas ao sacramento de seu corpo e sangue, visto que ninguém, suponho eu, julgará tal sacramento superior ao próprio Cristo?
E parece que se pode dar uma resposta à passagem de Paulo: “Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma do pão e beba do cálice”; a saber, que ela deve ser entendida como se referindo apenas àqueles em quem há perigo de que possam comer indignamente o pão do Senhor e beber do cálice, tornando-se assim culpados do corpo e do sangue do Senhor e comendo e bebendo juízo para si mesmos, como o próprio texto claramente declara.
Mas nada disso há que se temer nos filhos pequenos daqueles que creem; pois não vejo razão para dizermos que eles são indignos da mesa do Senhor, visto que são dignos, pela graça de Cristo, de serem incorporados a ele pelo batismo, ainda que, por causa de sua tenra idade, não possam ainda crer, muito menos confessar sua fé e examinar-se a si mesmos — coisas essas que são exigidas daqueles que já chegaram aos anos perfeitos do entendimento.
E visto que o apóstolo nos admoesta a provar a nós mesmos antes de participarmos deste pão e deste cálice do Senhor, isso não serve para nos tornar aptos a vir à mesa do Senhor por meio desse esforço de nos examinarmos; mas sim para que não usemos, sim, abusemos, indignamente do sacramento da graça, nem ofendamos contra o corpo e o sangue do Senhor, ao nos aproximarmos de forma precipitada, leviana e de modo impróprio. Essa razão não impede, contudo, que os filhos pequenos daqueles que creem possam ser participantes deste pão e deste cálice do Senhor.
Assim, suponho que um homem piedoso pode pensar acerca do proceder dos antigos, e pode atribuir a razão daquele que Agostinho fortemente constrangeu à opinião comum, pela qual as coisas que são ditas acerca do comer espiritual são aplicadas ao comer sacramental, e a graça é aplicada aos sinais sacramentais.
Algum homem dirá: “Logo, tu aprovas tanto o proceder dos antigos que condenas tudo o que foi recebido em todas as outras igrejas depois deles?” Respondo: Não condeno nem isto, nem aquilo, nem serei aquele que promoverá a tentativa de introduzir novamente na Igreja a comunhão de crianças, ou que julgue apropriado que ela seja praticada, e que dê qualquer ocasião para contenda.
De modo que aquilo que diz respeito à salvação deles em Cristo permanece firme e seguro. Em resumo, não aprovo aquela afirmação de Agostinho de que as crianças, se forem tiradas desta vida sem a participação exterior do sacramento da ceia do Senhor, não podem ser salvas; mas aprovo aquilo que hoje é crido [lit. sustentado], que não é necessário para elas. Nem irei contender, se for dito que, por alguns inconvenientes, é melhor que elas não sejam trazidas à comunhão da Igreja; mas, quanto à questão de ser ou não lícito que sejam admitidas a ela, minha opinião é que isso pode ser debatido por homens sábios e discretamente instruídos em Cristo, contanto que isso seja feito com uma temperança adequada e sem qualquer argumentação contenciosa.
Mas, acerca deste assunto, talvez já tenha dito mais do que o suficiente, o que, contudo, julguei conveniente abordar, para oferecer algum auxílio ao apaziguamento das consciências de pessoas piedosas que se preocupam com a salvação de seus filhos pequenos.
Tradução: Thiago McHertt