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Jó foi um Rei edomita? (parte 1)

No final do livro de Jó na tradução grega antiga chamada Septuaginta, há um parágrafo adicional que identifica Jó como o Jobabe de Gênesis 36.33-35, o segundo rei listado de Edom. A declaração diz o seguinte (usando a tradução de Edouard Dhorme de seu Comentário sobre o Livro de Jó, traduzido para o inglês por Harold Knight e publicado pela Thomas Nelson em 1984):

Parece, pelo livro siríaco [versão aramaica de Jó], que ele [Jó] viveu na terra de Uz, nas fronteiras de Idumeia [Edom] e da Arábia. Anteriormente, seu nome era Jobabe. Após casar-se com uma mulher árabe, ele teve um filho cujo nome foi Enom. Seu pai era Zerá, descendente de Esaú, e sua mãe era Bosorras, de modo que ele era o quinto de Abraão… [Segue-se então a lista dos antigos reis de Edom, conforme Gênesis 36.31-35.] E estes são os reis que reinaram em Edom, um país que ele também governou…

Ora, não há uma razão definitiva para acreditar que esta declaração seja historicamente precisa. Pode ser nada mais do que uma suposição; e alguém poderia muito bem, talvez, vincular Jó ao Jobabe de Gênesis 10.29, ou a nenhum desses homens. Ainda assim, pode haver algo nisso, e certamente foi parte da tradição israelita.

Teremos que esperar pelo céu para saber se isso é verdadeiro ou não, mas apenas por diversão, e porque o exercício pode ser proveitoso de outras maneiras, vamos ver o que poderia estar na mente desses antigos judeus quando identificaram Jó como um dos reis de Edom. Supondo que esses judeus não tinham mais base do que a mesma Bíblia que temos, vejamos se conseguimos descobrir o raciocínio deles e se faz sentido.

Primeiro, consideramos se Jó era ou não um edomita; segundo, se ele era ou não um rei; e terceiro, se ele poderia ser o mesmo que Jobabe.

Jó, o edomita

Que Jó era quase certamente um edomita emerge do contexto geográfico da vida de Jó. Ele viveu no leste, e Edom estava a sudeste de Israel, no canto noroeste da Arábia. Ele viveu na terra de Uz (`Uts), e isso fazia parte de Edom, de acordo com Lamentações 4.21. Uz era um dos filhos de Disã, que era um dos chefes originais de Seir, a terra que Esaú conquistou e se uniu a ela (Gênesis 36.28-30). Assim, podemos ter bastante certeza de que Jó era um edomita.

Bastante certeza, mas não absoluta, e isso por duas razões. Primeiro, enquanto a terra de Uz fazia parte de Edom nos dias de Jeremias, isso pode não ter sido o caso nos dias de Jó, pois os tempos são pelo menos vários séculos diferentes. Segundo, existem outros dois Uzes:

Em Gênesis 10.23, lemos sobre um Uz que era filho de Arã. Arã era filho de Sem. Outro filho de Sem, Arfaxade, foi o ancestral dos hebreus (Gênesis 10 e 11). A esposa de Isaque, Rebeca, era de Arã, e as esposas de Jacó eram filhas do irmão de Rebeca, Labão, o arameu. Essas pessoas viviam a leste de Canaã, e, portanto, o primeiro Uz deveria ser localizado nessa área. Dhorme apresenta argumentos para isso nas páginas xxiii-xxiv de seu comentário.

Em Gênesis 22.21, lemos sobre um segundo Uz, filho de Naor, irmão de Abraão. Outro filho de Naor era Betuel, pai de Rebeca. Mas embora essas pessoas fossem descendentes de Arfaxade, elas são chamadas de arameus, como vimos. Assim, é bastante claro que este ramo dos hebreus se uniu aos arameus, e talvez o uso do nome Uz por Naor remeta ao fato de que esse mesmo nome estava na linha dos arameus, com a qual ele se fundiu. Assim, Betuel é chamado de arameu (traduzido às vezes como sírio) em Gênesis 25.20 e 28.5, assim como seu filho Labão em 31.20, 24. Novamente, Dhorme fornece evidências de que o filho de Naor, Uz, e seu irmão Buz, viveram na mesma área que os Uzes anteriores e posteriores (p. xxiii).

Assim, pode ser que Jó tenha vivido antes de Esaú, e fosse descendente de Arã ou de Naor. Que isso não possa ser o caso surge da consideração de seus quatro interlocutores.

Os interlocutores de Jó também eram da mesma região. Elifaz, o temanita, era claramente um edomita. O Elifaz original era filho de Esaú, e seu filho se chamava Temã (Gênesis 36). Esse Temã se tornou um dos chefes de Edom (36.15), e o distrito de Temã claramente leva seu nome. Elifaz, o temanita, era dessa área, provavelmente um descendente do Elifaz original e de Temã. A presença de Elifaz, o temanita, deixa claro que Jó viveu depois de Esaú, e depois que os edomitas se mudaram para a terra de Uz.

Bildade, o suíta, é descendente de Abraão através de Quetura (Gênesis 25.2). Abraão enviou os filhos de Quetura para o leste (25.6), e Dhorme mostra que eles se estabeleceram na área geral ocupada por Edom mais tarde (p. xxvii). Embora as origens e o ambiente de Zofar, o naamatita, não sejam dados na Bíblia, como ele vivia na mesma área geral que os outros homens, é claro que ele também vivia em Edom. Finalmente, Eliú é chamado de buzita, e Buz era filho de Naor, irmão de Uz. A cidade de Buz é associada com Dedã e Tema em Jeremias 25:23, e Dhorme mostra que essas localidades estavam na mesma área geral (p. xxiii).

Resumindo: Jó claramente viveu após Esaú, e viveu na terra de Uz, que fazia parte de Edom. Assim, podemos considerar estabelecido que Jó era um edomita.

O que isso significa?Para começar, significa que nem todos os descendentes de Esaú foram completamente apóstatas. Alguns eram verdadeiros crentes. Vemos que Elifaz, o temanita, um edomita, tinha muito conhecimento verdadeiro de Deus, embora o aplicasse de maneira errada. Também, Calebe, o quenezeu, um membro da multidão mista que foi adotado na tribo de Judá, e que com Josué foi o único homem fiel entre os espias que Moisés enviou para investigar Canaã, provavelmente era um edomita (Gênesis 36.11). Havia quenezeus mais antigos (Gênesis 15.19), mas assim como com os vários Uzes, podemos postular que os quenezeus edomitas se fundiram com eles, e que no tempo de Calebe, os quenezeus já faziam parte de Edom.

O fato de Jó ser um edomita também fornece uma perspectiva interessante sobre Ezequiel 14.14 e 20, onde Deus diz a Ezequiel que, mesmo se três dos homens mais justos que já viveram estivessem presentes na cidade apóstata de Jerusalém, eles seriam capazes de livrar apenas a si mesmos. Os três são Noé, Daniel e Jó. (Os estudiosos liberais, relutantes em acreditar que Deus ou Ezequiel louvassem tanto um homem vivendo ao mesmo tempo que Ezequiel, tentaram fazer parecer que esse Daniel era outro Daniel de uma época anterior. Mas não há evidências para essa suposição.)

Noé foi o primeiro gentil justo, Daniel o justo israelita, e Jó o justo edomita. Essa tríade se conecta com uma trindade humana vista por toda a Bíblia. Há três grandes inimigos de Deus apresentados em Gênesis 3-6. O primeiro é o pai humano maligno, que é Adão, e que peca no santuário. O segundo é o filho/irmão humano maligno, que é Caim, que peca na terra. O terceiro é o espírito humano maligno, que rejeita o Espírito Casamenteiro de Deus ao se casar com as filhas de Caim em Gênesis 6.

Mais tarde na Bíblia, os hebreus-israelitas-judeus são estabelecidos como sacerdotes do santuário de Deus, e sacerdotes malignos seguem o pecado de Adão. Esaú assume o papel de Caim, buscando matar seu irmão Jacó e roubar a herança que Deus disse que seria dada a Jacó; e por toda a Bíblia Esaú/Edom assume esse papel. Em terceiro lugar, encontramos os gentios inimigos, e o pecado de Israel é buscar se casar com eles, se misturar com eles. Tanto Jesus quanto Paulo foram colocados em julgamento por todos os três: o sumo sacerdote e o Sinédrio dos judeus, Herodes, o edomita (idumeu), e os governadores romanos. Eu discuti esse paradigma em detalhes em Crise, oportunidade e o futuro cristão (Editora Monergismo).

A tríade de Noé, Jó e Daniel se encaixa perfeitamente nesse esquema e explica por que Deus escolheria esses homens em sua profecia através de Ezequiel. Eles personificam o espírito gentil e justo, o irmão edomita e o sacerdote israelita.

Jó como Rei

Ser um edomita já vincula Jó com a Era do Reino na história de Israel. Como mostrei no livro mencionado, a história de Israel se divide em três fases. Durante a primeira, a Era Sinaítica, narrada principalmente no livro de Juízes, o pecado de Israel era sacerdotal: adorar outros deuses. Os pecados sociais não são muito abordados. Durante o segundo período, a Era do Reino, os pecados sociais são muito evidentes. É uma época de conflito entre irmãos, começando na casa de Davi e se estendendo à divisão do próprio Reino. É um tempo de Jacó contra Esaú em grande escala. A terceira era, a Restauração, é um tempo que se foca principalmente na interação com os gentios, e o pecado é tipicamente o sincretismo ou o casamento inter-religioso com os pagãos (como em Esdras, Neemias e Malaquias).

Jó é claramente algum tipo de rei. Ele é o líder de sua comunidade. Ele é a Pedra Angular, enquanto Elifaz, Bildade e Zofar são seus “três valentes”, os outros cantos do reino. É porque Jó é o rei que os outros homens chegam tentando forçá-lo a renunciar.

(A palavra hebraica para “comandante de exército” é “canto”. Para outros exemplos de cantos principais e três outros cantos, considere Davi e seus três valentes, Daniel e seus três amigos, e Jesus com Pedro, Tiago e João. Sobre “cantos” e “três valentes”, veja Biblical Horizons 121. Compare também Jesus com Caifás, Herodes e Pilatos, como discutido acima.)

Jó, como rei, é o “maior dos homens do oriente” (Jó 1.3). Ele empregava centenas de pessoas e alimentava os pobres. O desastre que sobreveio sobre sua casa foi, portanto, um desastre para todo o reino. Os pobres estavam morrendo de fome, e centenas de pessoas foram mortas ou ficaram desempregadas. As úlceras no corpo de Jó eram um sinal das lesões no corpo político do qual ele era a cabeça, um ponto que nenhum leitor antigo deixaria de perceber.

Esse reino ou “casa” política caiu porque a Pedra Angular, Jó, caiu. Os outros três cantos, assim, tentam intervir para tentar restaurá-lo. Seu erro não está em tentar restaurar a sociedade, mas na maneira como tentam fazê-lo. O desejo deles é que Jó renuncie, admitindo culpa, para que um deles possa substituí-lo. A intenção de Deus, no entanto, é levar Jó e essa sociedade pelo julgamento e ressurreição, e reconstituir uma nova e melhor sociedade depois (como acontece no capítulo 42).

A posição de Jó como rei ou líder de seu povo foi habilidosamente analisada por René Girard em Jó: a vítima de seu povo, traduzido por Yvonne Freccero e publicado pela Stanford University Press em 1987. Apesar das muitas falhas neste livro, fica claro que o ataque a Jó não ocorreu porque ele fosse uma pessoa comum, mas por causa de sua posição preeminente nesta comunidade, que caiu em caos aparentemente como resultado do julgamento de Deus sobre Jó, seu “rei”.

O livro de Jó, portanto, não é apenas sobre os sofrimentos de um homem justo, embora seja isso em parte, e possa ser pregado dessa forma. Também é sobre o caos no corpo político e a posição do rei sofredor dentro desse caos.

Que Jó seja sobre realeza o vincula com outros três livros de “sabedoria”, produzidos por Salomão. Jó é sobre o sofrimento do rei. Eclesiastes é sobre a sabedoria envelhecida do rei. Cantares é sobre o casamento do rei com seu povo. Provérbios é um conselho para o filho do rei, que ele se junte à companhia dos sábios (personificados como a Senhora Sabedoria nos capítulos 1-9 e 31), e evite a companhia dos tolos (personificados como a Prostituta Loucura) — algo que o filho de Salomão, Roboão, falhou em fazer.

Enquanto a lei e a obediência estão associadas à Era Sinaítica, sabedoria e habilidade estão associadas à Era do Reino. Os livros da Lei foram dados por Moisés, enquanto os livros de sabedoria foram dados por Salomão. Parece muito provável, então, que Salomão tenha sido o autor de Jó. De fato, o capítulo 28 de Jó poderia muito bem ser parte de Provérbios ou Eclesiastes. Assim, embora não possamos saber com certeza, Salomão é o autor mais provável de Jó.

(Tem se tornado comum hoje negar que Salomão tenha sido o autor de Eclesiastes, mas os argumentos contra ele são tão frágeis quanto teias de aranha, e o texto claramente diz que ele o escreveu. Também, claro, enquanto Salomão escreveu a primeira forma de Provérbios, ela foi mais tarde adicionada nos dias de Ezequias. Mas esse não é o lugar para uma discussão completa sobre os “quatro livros de Salomão”.)

Resumindo: Vimos que, para todos os efeitos, Jó era o rei de sua sociedade. Também vimos que seu ser edomita o vincula ao conjunto de associações reais, irmão-irmão. Assim, os antigos judeus estavam em boa base ao dizer que Jó era um rei edomita. Mas será que ele era Jobabe?

(Parte 2)

Tradução: Francisco Batista de Araújo

Fonte: James Jordan, Biblical Horizons 130

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