Jó era Jobabe?
Para começar, Gênesis 36.33 nos diz que o segundo rei nomeado de Edom foi “Jobabe, filho de Zerá, de Bozra”. Existem duas diferenças entre o nome desse homem e o de Jó. Deixando de lado as marcações vocálicas, pois não fazem parte do texto original, em hebraico os nomes são escritos ywvv e ‘ywv. O nome de Jó começa com uma aleph (‘), enquanto o nome do rei edomita não começa com aleph, mas tem uma beth (v) extra no final.
Há um segundo problema. O nome Jó claramente significa “Perseguido”, mas o significado de Jobabe é desconhecido.
No entanto, o problema pode não ser tão grande quanto parece para nós. Em primeiro lugar, temos o testemunho antigo, que indica que pessoas familiarizadas com as línguas hebraica e semítica poderiam facilmente pensar que esses eram variantes do mesmo nome. Em segundo lugar, a aleph que começa o nome de Jó às vezes é colocada ali simplesmente para dar maior ênfase ao som vocálico, e, portanto, não é sempre uma parte necessária da palavra quando aparece no início. O nome do rei edomita é pronunciado “Yovav”, enquanto o nome de Jó é pronunciado “Eeyov”, ambas palavras bisílabas. Além disso, converter o nome “Yovav” para “Perseguido” (“Eeyov”) é fácil e se encaixa no propósito do autor de Jó.
Ainda assim, se tudo o que temos são os nomes, não há evidências suficientes para formar qualquer hipótese concreta. No entanto, como Jó era um governante edomita, e já que os nomes são semelhantes, é fácil entender por que os antigos judeus fizeram essa associação.
Podemos talvez extrair um pouco mais de informação do texto que ajude a situar Jó no tempo e fortaleça a hipótese de que ele seria Jobabe, ainda que apenas um pouco (mas apenas um pouco). Gênesis 36.31-39 nos fornece uma lista de sete reis de Edom, seguidos de um oitavo:
- Belá, filho de Beor, de Dinabá;
- Jobabe, filho de Zerá, de Bozra;
- Husão, de Temã;
- Hadade, filho de Bedade, de Avite;
- Samlá, de Masreca;
- Saul, de Reobote;
- Baal-Hanã, filho de Acbor;
- Hadar/d, de Paú.
O oitavo é Hadar ou Hadad (escrito dessa forma em muitas versões; as letras D e R em hebraico são quase idênticas). Essa pessoa é quase certamente o Hadad que fugiu para o Egito quando Davi conquistou Edom, e que depois libertou Edom de Salomão (1 Reis 11.14-22). Hadad se casou com a irmã da esposa do Faraó, mas o nome dela não é dado — assim como Salomão se casou com a filha do Faraó. Em Gênesis 36.39, a esposa de Hadad é mencionada, juntamente com sua linhagem. As esposas dos sete reis edomitas anteriores não são nomeadas. Notamos que na Era do Reino, as esposas dos reis de Judá são mencionadas (como o nome da mãe do próximo rei; cp. 1 Reis 11.20), enquanto as esposas dos juízes na Era Sinaítica anterior não são.
Ao juntar Gênesis 36 com 1 Reis 11, vemos Edom passando por um ciclo de reis, seguido por uma morte e ressurreição, seguido por uma nova linha de reis. Os reis anteriores não formavam uma dinastia, mas eram eleitos de várias cidades e locais; enquanto os reis posteriores eram descendentes de Hadad (1 Reis 11.20, por implicação). Paralelamente a isso, houve sete juízes eleitos no livro de Juízes (Otniel, Eúde, Débora, Gideão, Abimeleque, Jefté e Sansão), seguidos por uma morte de Israel quando o Tabernáculo foi desmontado nos dias de Samuel, seguido por uma ressurreição com Davi, que começou uma dinastia, e cujo filho reuniu o Tabernáculo novamente como o Templo. Mas os sete juízes de Israel não são chamados de reis, enquanto seus contemporâneos em Edom são chamados de reis, segundo a regra de que os ímpios recebem sua herança primeiro e depois a perdem, enquanto os justos recebem a sua por último e a mantém (Gênesis 36.31). (Veja a Nota 1 no final deste ensaio.)
Qual é a cronologia dos primeiros sete reis edomitas? Não podemos saber com certeza, mas há pistas que nos permitem esboçar a possibilidade mais provável. Para começar pelo final, o último rei antes de Hadad foi Baal-Hanan. Podemos assumir que ele foi o rei conquistado por Davi. Seu predecessor se chamava Saul (escrito Shaul em muitas Bíblias, mas idêntico em hebraico). Vamos assumir que o Saul edomita foi contemporâneo do ímpio Saul que governava Israel.
O quinto rei foi Samlá, e o quarto foi Hadad, filho de Bedad. Este Hadad “feriu Midiã no campo de Moabe” (Gênesis 36.35). Agora, em Juízes, lemos que Gideão libertou Israel de Midiã (Juízes 6-8). Parece muito provável que esses eventos estejam de alguma forma ligados. É típico dos edomitas atacar uma nação derrotada e saqueá-la. Os edomitas amalequitas estavam a caminho de tomar o Egito como os “Reis Pastores” quando encontraram Israel saindo do Egito (Êxodo 17). Encontramos o mesmo padrão em Obadias 10-14 e no Salmo 137. Assim, parece provável que, após Gideão derrotar e expulsar os midianitas, os edomitas sob Hadad ben Bedad atacaram e conquistaram os midianitas.
O terceiro rei edomita foi Husão, o segundo foi Jobabe, e o primeiro foi Bela, filho de Beor. Sugiro que este Bela esteja relacionado com Balaão, filho de Beor (Números 22.5). Sabemos que já havia reis em Edom nessa época, porque um desses reis negou a passagem de Moisés por seu território (Números 20.14-21). Se este rei fosse Bela, filho de Beor, Balaão possivelmente seria seu irmão.
O nome Belá é escrito bela’, enquanto o nome Balaão é escrito bil’am. O E em Belá é curto e poderia facilmente ser reduzido ainda mais para um I se o nome fosse estendido, como ocorre em Bilam: Belá tem acento na primeira sílaba, enquanto Bil’am tem acento na segunda, após uma pausa no som. Assim, é perfeitamente possível que Belá e Balaão sejam a mesma pessoa. O nome parece ser uma forma abreviada de Baal, que significa “senhor, marido, devorador”. Bela, como o primeiro rei de Edom, seria “Senhor/Marido/Devorador”, enquanto Balaão significa “Senhor/Marido/Devorador de um Povo”. (Compare o deus babilônico Bel com o deus cananeu Baal para uma associação similar.) O senhor de um povo é seu marido, e “os devora” para si mesmo como um corpo político, como parte de seu próprio corpo. (Veja a Nota 2 no final deste ensaio.)
Se Belá e Balaão eram ou não a mesma pessoa, o fato de ambos serem filhos de Beor, a única menção de “Beor” na Bíblia, indica a forte possibilidade de que pelo menos fossem irmãos, e, portanto, contemporâneos.
Ora, a lista de reis de Edom claramente não está completa. Já havia um rei sobre Edom nos dias de Moisés, e sugerimos que ele fosse Belá, filho de Beor. Oito reis não são suficientes para cobrir os cerca de 480 anos entre o fim das peregrinações no deserto e a parte final do reinado de Salomão. Alguns reis não estão incluídos na lista para que tenhamos uma lista “completa” de sete reis.
Mas, se Belá foi rei nos dias de Moisés, e Jobabe veio logo depois dele, ou imediatamente após ele, Jobabe teria sido rei nos dias de Josué. Jobabe teria tido a oportunidade de encontrar Moisés e a nação sacerdotal de Deus no deserto, e poderia ter se convertido nesse período. A ordem de Moisés em Deuteronômio 23.7-8 indica que alguns edomitas estavam de fato buscando se unir a Israel durante esse período.
Se esse Jobabe fosse o mesmo governante edomita que Jó, então esse encontro explicaria duas coisas. Primeiro, explicaria como Jobabe e outros em sua região chegaram ao conhecimento da verdadeira religião. Segundo, explicaria como os israelitas chegaram a conhecer a história de Jó.
Podemos avançar nossa hipótese mais um passo. Jobabe era filho de Zerá, e o único Zerá mencionado em Gênesis 36 é o filho de Reuel, filho de Esaú (36.13). Esse Zerá pode ou não ter sido o pai de Jobabe. Esaú casou-se com a mãe de Reuel, filha de Ismael, uma geração após ter se casado com suas duas primeiras esposas (Gênesis 26.34; 28.8-9). Se Reuel nasceu muitos anos depois, podemos situar seu nascimento por volta da época em que Israel desceu ao Egito, ou pouco antes disso. Lembrando que a mãe de Moisés, Joquebede, nasceu de Levi depois que esse filho de Jacó se mudou para o Egito (Números 26.59), o filho de Reuel, Zerá, poderia ser um contemporâneo mais jovem de Joquebede, e assim Jobabe poderia ser um contemporâneo mais jovem de Moisés.
Agora, assumindo que Belá e Balaão são a mesma pessoa, Moisés teria colocado esse homem à morte logo no final das peregrinações no deserto (Números 31.8 — e a menção de Balaão, filho de Beor, ao lado de cinco reis de Midiã aumenta a possibilidade de que Balaão fosse Belá, rei de Edom). Nesse momento, então, Jobabe, filho de Zerá, teria se tornado rei de Edom.
É claro que devemos admitir imediatamente que (a) essa cronologia hipotética pode não ser correta; (b) mesmo que seja correta, Jobabe pode não ter sucedido Belá imediatamente; (c) Jobabe pode não ser Jó; e (d) as experiências de Jó podem ter se tornado conhecidas pelos israelitas em qualquer momento durante o período dos Juízes. Não há uma prova irrefutável da reconstrução sugerida.
Mas o que esse ensaio conseguiu fazer foi o seguinte: Vimos que os antigos judeus estavam certos ao supor que Jó era um rei edomita, e que provavelmente estavam certos ao vinculá-lo a Jobabe, filho de Zerá, de Bozra.
Nota 1:
Gênesis enfatiza que a cultura caída aparece na história antes que uma cultura verdadeira surja. Vemos isso claramente em Gênesis 4, onde temos a primeira cidade, o primeiro músico, o primeiro agricultor, o primeiro metalúrgico e o primeiro poeta, todos na linha de Caim. Mais tarde, enquanto Abraão (“Pai de uma Multidão”) tem apenas dois filhos (antes de seu casamento com Quetura), seu irmão Naor tem um total de doze. Da mesma forma, enquanto Isaque tem apenas dois filhos, Ismael tem doze. Jacó chega finalmente a doze filhos, mas seu irmão Esaú recebe um reino e tem uma linhagem de reis muito antes de Jacó (embora a Jacó seja prometido reis em Gênesis 35.11).
Enoque e Babilônia são as primeiras cidades, mas Jerusalém é a última. Jubal é o primeiro músico, mas Davi o “último”. Os ímpios chegam primeiro e fazem grande parte do trabalho, acumulando uma herança para os justos. Como não estão preocupados com a moralidade, os ímpios podem empregar trabalho escravo livremente e construir suas culturas mais rapidamente, enquanto a cultura dos justos leva mais tempo para se construir.
Nota 2:
Como discuti em detalhes em meus Estudos sobre comida e fé, especialmente no No. 7: “O significado de comer na Bíblia”, comer é incorporação. Em Apocalipse 3.16, a Igreja é retratada como estando na boca de Jesus, enquanto ele a come para dentro de si, incorporando-a. Quando Deus “come” os sacrifícios em Levítico, ele está “comendo” o povo para dentro de si como seu Rei. Quando os cristãos se cumprimentam com um beijo santo, eles estão simbolicamente “comendo” uns aos outros, compartilhando suas vidas.
Os nomes Belá (Heb. בֶּלַע, Bela‘) e Balaão (Heb. בִּלְעָם, Bil‘ām) estão mais obviamente relacionados à raiz בל (bl‘), que significa “comer ou devorar”. No nome de Balaão, a palavra עָם (‘am), que está evidentemente unida, significa “povo”, de modo que Balaão significa “Devorador de Povo”.
A palavra Baal, abreviada para Bel, significa “senhor” ou “marido”. É escrita em hebraico b’l, que simplesmente transpõe as duas últimas letras de bl’. Tais transposições ocorrem ocasionalmente nas palavras hebraicas. Além disso, a forma abreviada Bel elimina a consoante do meio: bl. Assim, não estamos longe da verdade ao associar as duas palavras. Um rei é tanto um senhor quanto um marido, e um devorador de seu povo para dentro de si.
Tradução: Francisco Batista de Araújo
Fonte: James Jordan, Biblical Horizons 131