4. Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.
5. Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem,
6. e uso de misericórdia com milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos. (Êxodo 20.4-6)
Ao longo dos séculos, e até em nossos dias, têm ocorrido disputas amargas quanto ao significado deste, o Segundo Mandamento. Para muitos, tanto no antigo Israel como também na Igreja, trata-se de uma proibição de toda escultura, pintura e representação de qualquer coisa, seja de caráter religioso ou não; outros, porém, têm rejeitado essa interpretação. Deve-se observar que ambos os lados reivindicaram a ortodoxia e buscaram ser fiéis às Escrituras.
Na Igreja Primitiva, na era pós-apostólica, houve uma hostilidade muito intensa contra toda pintura e escultura. A arte sempre esteve essencialmente ligada à religião, e, para muitos convertidos, arte significava paganismo e ocultismo. Por um tempo, artistas que se converteram tinham de abandonar sua vocação ou renunciar à feitura de qualquer imagem de qualquer forma.
Pouco depois, ainda na era pós-apostólica, imagens, pinturas e mosaicos começaram a abundar. Houve um uso muito amplo deles, e frequentemente uma veneração. Aqueles que usavam imagens não eram menos zelosos em sua fé do que os que as rejeitavam, e sua teologia era essencialmente semelhante.
Ao se assumir qualquer uma dessas posições, é importante compreender as razões por trás delas, e por que é necessário que condenemos ambas.
Como vimos, o grande mal que o Primeiro Mandamento proíbe, entre outras coisas, é o conceito de continuidade entre Deus e a criação. O mundo greco-romano aceitava a continuidade de todo o ser, de modo que existia um vínculo interior entre o poder ou os poderes supremos e o mundo dos homens e das coisas.
Gordana Babic observou: “A julgar pelas lendas e vidas de santos, pareceria que as imagens de Cristo e dos santos eram, para o povo comum, objetos em si mesmos imbuídos de poderes sobrenaturais”.[1] A lógica dessa posição era a seguinte: qualquer imagem pintada ou escultura possuía uma ligação com o poder supremo e, ao representá-lo, tornava-se uma concentração desse poder. Nenhum idólatra pagão jamais identificou sua imagem com a totalidade do poder representado; antes, via-a como um foco que concentrava parte do poder de forma local. Assim, a idolatria possui raízes religiosas e filosóficas. Em razão da crença na continuidade do ser, um homem podia mandar esculpir uma imagem, na crença de que, como um para-raios, ela localizaria um poder supremo.
Aqueles que eram iconoclastas compartilhavam essa visão e, por isso, se opunham a todas as imagens. Em Isaías 44.9-20, a futilidade e a absurdidade dos ídolos são afirmadas com franqueza: eles são nada. O problema é que, para muitos iconoclastas, assim como para os que veneravam imagens, eles eram algo.
Por causa dessa crença, governantes, como os imperadores romanos, ao assumirem o poder, enviavam sua imagem por todo o império para indicar quem era o atual representante terreno dos deuses. Os retratos dos imperadores eram venerados; acendiam-se velas diante deles, e acusados fugiam para junto de um retrato do imperador em busca de refúgio.[2]
Em parte, a ascensão dos ícones de Cristo e dos santos foi um desafio a essa fé, pois aqueles que promoviam os ícones cristãos expressavam, com isso, sua crença de que os ícones de Cristo e dos santos eram foco de poder. Por isso, velas eram acesas diante das imagens cristãs.
Foi João Calvino quem fez a ruptura mais clara e dramática com todo o conceito da continuidade do ser, também conhecido como a Grande Cadeia do Ser. Seus escritos apresentam com clareza Deus como o Ser incriado, que não deve ser confundido ou misturado com sua criação, ser criado. Calvino escreveu:
17. Assim como, no mandamento anterior, o Senhor se declarou como o único Deus, fora do qual nenhum outro deve ser imaginado ou adorado, assim neste ele revela mais claramente sua natureza, e o tipo de culto com o qual deve ser honrado, para que não ousemos formar quaisquer concepções carnais a seu respeito. O fim, portanto, deste preceito é que ele não quer que seu culto legítimo seja profanado com ritos supersticiosos. Por isso, em suma, ele nos afasta e nos separa inteiramente das observâncias carnais que nossas mentes insensatas costumam inventar quando concebem Deus segundo a grosseira medida de seus próprios pensamentos; e assim ele nos chama ao serviço que lhe pertence de direito, isto é, ao culto espiritual que ele instituiu. Ele assinala qual é a transgressão mais grosseira deste tipo, a saber, a idolatria externa. E este preceito consiste em duas partes. A primeira nos impede de, licenciosamente, ousarmos tornar Deus — que é incompreensível — objeto de nossos sentidos, ou de representá-lo sob qualquer forma visível. A segunda nos proíbe de prestar adoração religiosa a quaisquer imagens.[3]
É muito importante notar que Calvino via este mandamento como essencialmente relacionado ao culto: trata-se de “o tipo de culto com o qual ele deve ser honrado”.
Os três versículos deste Segundo Mandamento constituem uma só sentença. Essa única sentença trata do culto e de nossa representação de Deus. Se for tomada de maneira geral, como fizeram alguns hebreus e alguns cristãos, então significará a abolição de toda pintura, escultura e fotografia. Tal interpretação é absurda e contrária às Escrituras. O próprio Deus, ao dar as ordens para seu santuário, exigiu a confecção de imagens dos querubins, do boi de bronze, de romãs entalhadas e assim por diante. Estas não eram para adoração, mas para adornar seu santuário.
Keil e Delitzsch observaram:
É evidente não apenas pelo contexto que a referência não é à feitura de imagens em geral, mas à construção de figuras de Deus como objetos de reverência ou culto religioso, como também isso é declarado expressamente no versículo 5; de modo que até Calvino observa que “não há necessidade de refutar o que alguns tola e insensatamente imaginaram, que a escultura e a pintura de todo tipo são aqui condenadas”. Com a mesma precisão ele havia observado pouco antes que “ainda que Moisés fale de ídolos, não há dúvida de que, por implicação, ele condena todas as formas de falso culto, que os homens inventaram para si”.[4]
Deuses criados pelo homem, de toda espécie, sejam materiais ou intelectuais, são proibidos, juntamente com todas as formas de culto falso.
A desobediência a este mandamento e a prática do falso culto significam juízo “até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem” (v. 5). Ellison chamou a atenção para um aspecto importante dessa frase. Desde a Grande Depressão da década de 1930, que começou entre os agricultores na década de 1920, mudanças ocorreram na vida familiar nos Estados Unidos. A educação foi diluída e prolongada, um processo que começou com Horace Mann na década de 1830. Na década de 1930, a ideia era manter as pessoas fora do mercado de trabalho aumentando a idade da escolarização obrigatória. Muitos pais desde então vivem para ver apenas seus netos, não a quarta geração. Em Israel, a terceira e a quarta gerações geralmente estavam presentes e próximas.[5] O juízo por falso culto e falsas doutrinas acerca de Deus afeta toda a família, e, portanto, uma cultura inteira muito rapidamente.
Em contraste com isso, o significado do versículo 6 é que a misericórdia de Deus se estende até à milésima geração “daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos”. Por mais mortíferos que sejam os resultados do mal, ainda mais poderosas e duradouras são as consequências da fidelidade. Há grande razão para esperança por causa desta sentença.
É importante notar que, embora nenhuma imagem possa apreender o significado de Deus, e, portanto, seja falsa com base neste fundamento, a razão que Deus dá para a sua proibição é: “porque eu, o Senhor, teu Deus, sou Deus zeloso” (v. 5). A ênfase está na exclusividade de Deus. Diz-nos ele:
Eu sou o Senhor, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem o meu louvor, às imagens de escultura. (Is 42.8)
… a minha glória não a dou a outrem. (Is 48.11)
A palavra hebraica para zeloso está estreitamente relacionada à ideia de ciumento; não há indecisão nem medidas intermediárias no Senhor.
Em virtude deste fato, a ordem divina impõe penalidades. Assim como doenças podem ser transmitidas em uma família, assim também o pecado e suas consequências podem ser transmitidos. Um homem que dilapida a herança de uma família penaliza as gerações seguintes; do mesmo modo age aquele que adora falsamente a Deus e sustenta crenças errôneas.
O comentário de Josefo sobre este mandamento, e também sobre o primeiro e o terceiro, é de interesse:
O primeiro mandamento nos ensina que existe um só Deus, e que devemos adorá-lo exclusivamente; o segundo ordena que não façamos imagem de qualquer criatura viva para adorá-la; o terceiro, que não devemos jurar falsamente por Deus.[6]
Rawlinson percebeu o sentido deste mandamento como sendo: “Não farás para ti imagem de escultura alguma… para adorá-la”.[7]
Vimos anteriormente que, devido ao fato de a arte estar tão essencialmente ligada à religião, muitos cristãos na Igreja Primitiva rejeitaram-na por enxergá-la como pagã. É necessária a formulação de uma doutrina cristã da arte e perceber as suas implicações para a nossa fé.[8]
[1] Gordana Babic, Icons (Nova York, N.Y.: Crescent Books, 1988), 1.
[2] Ibid., 2.
[3] João Calvino, Institutes of the Christian Religion, vol. 1, Livro 2, cap. 8 (Filadélfia, Pennsylvania: Presbyterian Board of Christian Education, 1936), 413 s.
[4] C. F. Keil and F. Delitzsch, Biblical Commentary on the Old Testament, The Pentateuch, vol. 2 (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1949 reprint), 115.
[5] H. L. Ellison, Exodus (Philadelphia, Pennsylvania: Westminster Press, 1982), 108.
[6] William Whiston, tradutor, The Works of Flavius Josephus, “Antiquities of the Jews”, Livro 3, cap. 5, par. 5 (Filadélfia, Pennsylvania: David McKay, n.d.), 102.
[7] George Rawlinson, “Exodus”, in C. J. Ellicott, org., Commentary on the Whole Bible, vol. 1 (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, n.d.), 260.
[8] Sobre esse assunto, veja o excelente livreto de Jeffrey J. Meyers: Quando precisamos de imagens de Jesus: Um estudo sobre arte, culto e o Segundo Mandamento: https://amzn.to/3GJCPZ0
Fonte: R. J. Rushdoony, Exodus: Volume II of Commentaries on the Pentateuch
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto