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A aflição da Solteirice 

Traduzido por Rafael Sanguinetti
Fonte: Singleness as Affliction

Introdução

Por várias razões e de diversas maneiras, o ensino de que a solteirice “é uma dádiva” espalhou-se pela Igreja Cristã. Como muitas outras coisas, como aquela cobra de estimação que seu filho adolescente adotou, ele tem sido a causa de muita empolgação, que, em sua maior parte, não é nada boa.

Há alguns anos, escrevi um artigo no qual argumentava que os jovens deveriam casar-se até o 23º aniversário. Apesar da força do raciocínio contido ali, essa minha contribuição não resolveu nosso desgraçado problema cultural, então achei melhor tentá-lo novamente.

Deixe-me definir os termos, certo?

A solteirice é uma aflição, não uma dádiva. Ou, se a considerarmos uma, seguindo as instruções do Novo Testamento, seria o mesmo tipo de dádiva que uma aflição real. Mais acerca disso em um momento.

Entendeu? A solteirice é uma aflição, não uma dádiva. Mas, para que esse argumento se sustente por mais de três minutos, apresso-me em definir aqui a respeito de que tipo de solteirice estou falando.

Ela é uma dádiva, se for escolhida livremente por um adulto responsável, para se dedicar ao trabalho no reino e se a escolha não for feita por um jovem de dezenove anos precipitadamente em uma reunião de avivamento. “Ninguém deve prometer fazer coisa alguma… que não está em seu poder cumprir e para cuja execução não tenha promessa ou poder de Deus” (CFW 22.7).

Uma criança de três anos é solteira, e isso é uma dádiva para todos, olhando-se a partir de qualquer perspectiva. Fico feliz em chamar esse status de dádiva. O solteiro apóstolo Paulo foi dotado com o celibato (1Co 7.7), e ele chama, explicitamente, esse seu status de dom.

Então, talvez, devêssemos distinguir o celibato da solteirice desta maneira: o celibato é a solteirice voluntária, adotada por um adulto responsável por causa do trabalho no reino. Isso excluiria aqueles que são voluntariamente solteiros, mas cujas razões têm mais a ver com seus pensamentos de solteiros rabugentos do que com a dedicação de plantadores de igrejas nas missões de fronteira. Como diz meu pai, os homens transformam-se em solteirões mais cedo do que as mulheres.

Portanto, a solteirice se torna uma aflição se não for escolhida livre e voluntariamente por causa do trabalho no reino, e se a pessoa em questão estiver em idade de casar-se e gostaria muito de o fazer.

O problema é que a vários milhares de jovens adultos nessa circunstância foi dito, de várias maneiras e em muitas ocasiões, que sua solteirice “é uma dádiva”. Mas isso coloca muitos deles em uma posição realmente incômoda. Eles são o tipo de membro da igreja aos quais ela, de um modo geral, gosta de implicar. Geralmente, são muito gentis para falar a respeito disso, mas é como se a igreja organizasse uma festa de aniversário em sua homenagem e fizesse questão de dar à jovem em questão um  presente especial de aniversário, um que vem com um cartão assinado pelo próprio Jesus. Esse é um presente de Jesus, toda a igreja diz, sorrindo para ela. Mas quando Suzy ou Sadie ou Sally abre-o, o que encontra é um suéter volumoso, tricotado por um amador, com um alce grande e feio nas costas. A única vantagem do tamanho do alce é que ela não deixa espaço para nenhum elefante branco, que de alguma forma parecia estar envolvido ou poderia ser antecipado surgindo no evento. E o que dói, e talvez até arde um pouco, é a expectativa da igreja em geral de que você segure o suéter contra o peito e grite que era “exatamente o que queria”.

Mas não é.

A afirmação do consequente

Ora, uma série de comentários, de nossos líderes evangélicos, acerca deste assunto possui uma grande quantidade de verdade misturada a eles. Mas, bem perto do centro, uma confusão fatal pode ser geralmente encontrada. E esse é o equívoco a respeito da palavra dádiva. Todos os que têm o dom do celibato são solteiros, mas nem todos os solteiros têm o dom do celibato. Confundir os dois é afirmar o consequente. Todos os cachorros têm quatro patas, mas o fato de um gato específico ter quatro patas não faz dele um cachorro.

Todos os que têm o dom do celibato possuem um dom verdadeiro, dado como uma bênção e recebido como tal. Todos os solteiros, que não têm o dom do celibato, possuem uma aflição. Ora, uma aflição também é uma dádiva, acerca da qual falarei mais em um momento, mas, para nossos propósitos aqui, ela é um tipo de dádiva completamente diferente.

Mas observe como Vaughan Roberts o explica:

Quando Paulo fala acerca da solteirice como um dom, não está falando a respeito de uma habilidade particular que algumas pessoas têm de ser alegremente solteiras. Ele está falando, ao contrário, a respeito do estado de solteirice. Enquanto você o tiver, ele será uma dádiva de Deus, assim como o casamento o será. (Vaughan Roberts) 
https://www.livingout.org/resources/articles/36/vaughan-roberts-on-singleness

Mas observe o que ele diz. Não há diferença entre uma pessoa que é equipada e fortalecida para trabalhar pelo reino por meio de uma oportunidade livre de distrações e outra que está emaranhada em um caso grave de tentações, que são uma distração diária. Se não for a luxúria, será solidão.

A “capacidade particular de ser alegremente solteiro” é a única coisa que torna a solteirice uma condição livre de distrações. E você não pode dizer que, embora Deus não tenha lhe dado a capacidade de ficar livre delas, você deve estar livre de qualquer maneira.

Tanto Jesus quanto Paulo indicam que tal chamado ao estado de solteiro permite que homens e mulheres solteiros dediquem maior e mais atenção ao serviço religioso (1Co 7.32-35). Não há dúvida, portanto, de que ser solteiro pode ser a vontade de Deus para certos indivíduos; nesses casos, pelo menos, a solteirice não é uma maldição, mas um presente divino — assim como “todo dom bom e perfeito vem do alto” (Tg 1.17). De fato, em certos momentos e em certas situações, a solteirice é preferível ao casamento (1Co 7), embora o casamento continue sendo a norma (Mt 19.4-6). (Andreas Kostenberger)
https://www.biblicalfoundations.org/the-gift-of-singleness/

Há muita verdade aqui, mas ela ainda está misturada com essa tal confusão fatal. A condição de se estar “distraído” pode acontecer de duas maneiras diferentes. Uma é a distração acerca da qual Paulo falava — o homem que se casa, em pouco tempo, terá uma esposa, três filhos, duas cadeirinhas de criança, um cachorro, que não foi ideia dele, uma minivan e, acima de tudo, um um tempo contínuo de perturbação. Esse é o tipo de distração que Paulo tenta fazer com que as pessoas dispensem, as que podem.

Mas seria melhor ter que fugir da perturbação em sua minivan do que ser solteiro e ter lapsos sexuais periódicos. Isso também é uma distração (1Co 7.9). Certa vez, conversei com um jovem sincero que se questionava em voz alta se poderia ter o dom do celibato, então perguntei-lhe se ele assistia pornografia. Um tanto assustado, ele respondeu que isso vinha sendo um problema, então eu lhe disse que ele poderia riscar o celibato de sua lista de possíveis dons.

Uma das razões pelas quais a igreja é tão conivente com o fato de que muitos jovens permanecem solteiros por longos períodos de tempo é que assinamos um tratado de paz secreto com a indústria pornográfica. Sim, temos algumas centenas de solteiros na casa dos vinte anos. Sim, todos eles estão cheios de hormônios e, sim, todos têm computadores. Não faremos muitas perguntas, no entanto. Pagamos pela condição, bastante pública, de nossos solteiros “livres de distrações”, sobrecarregando-os com essa distração mais privada, e não a investigamos muito de perto. É assim que mantemos baixos os custos das babás: vinte dólares, uma piscadela e um aceno de cabeça.

Água e óleo

Quando falamos acerca da solteirice como uma aflição, estamos falando de uma circunstância que consideramos indesejável. Oramos para que ela desapareça. Não gostamos dela. Dito isso, não conseguimos responder à situação gritando e gemendo — devemos lidar com ela como cristãos.

“Eu sei como estar humilhado e sei também como ter abundância; em todo lugar e em todas as coisas, estou instruído, tanto a ter fartura como a ter fome, tanto a ter abundância como a sofrer necessidade. Eu posso fazer todas as coisas por meio de Cristo, que me fortalece.” Filipenses 4.12-13 (KJV)

Mas lidar com a aflição como um cristão não deve ser um grande exercício de autoengano. Você não pode se sentar na chuva e fingir que está em um clima perfeito para um piquenique. Quando Paulo disse que aprendera a se contentar com qualquer estado em que se encontrasse, não o fez achatando as diferenças entre os estados alternativos em questão. Ele ainda conhecia a diferença entre humilhação e abundância. Ainda podia dizer a diferença entre estar cheio e estar com fome. Ainda conseguia distinguir água de óleo. O contentamento não destrói todas as suas terminações nervosas nem oblitera sua capacidade de distinguir o que você quer do que não quer. Paulo conhecia o segredo do contentamento e também conhecia o suficiente para sair da chuva.

Então, a aflição também é um tipo de dádiva

Bem, Roberts está certo de que tudo o que vem da mão de Deus deve ser recebido por nós como vindo da mão de Deus. Mas o apóstolo Paulo ainda sabia a diferença entre seu espinho na carne e uma segunda porção de purê de batatas e molho no jantar de Ação de Graças.

Então quem está solteiro (e não quer estar) deve dar graças a Deus por sua situação. Mas devem fazê-lo sem qualquer ilusão. Estão agradecendo a Deus por isso da mesma forma que deveriam agradecê-lo por más notícias financeiras ou por um diagnóstico de câncer ou por qualquer outra verdadeira aflição.

Isso será mais fácil de se fazer quando você parar de tentar convencer-se de que sua principal aflição particular é, na verdade, como um pedaço de torta de creme.

Mas é aqui que a confusão mencionada acima surge novamente.

Sua vida de solteiro não é um inverno sombrio esperando pela primavera do casamento. Paulo não apenas vê a solteirice como legítima, mas como “bela” (kalon, 1 Coríntios 7.8). (Ryan Griffith)
https://www.desiringgod.org/articles/is-my-singleness-a-gift

Mas, dependendo de quem você é, sua condição de solteiro pode parecer mais com um inverno muito sombrio.

“E naquele dia sete mulheres agarrarão um homem, dizendo: Nós comeremos nosso próprio pão e vestiremos nossas próprias roupas.” Isaías 4.1 (KJV)

Devemos contar como alegria o enfrentamos várias provações (Tg 1.2). Sabemos que o sofrimento produz perseverança e a perseverança conduz à esperança. É por isso que devemos dar glória na tribulação (Rm 5.3). Devemos crescer em caráter, diligência e paciência (2Pe 1.5-8). Fazemo-lo diante das provações e tentações, com clareza e ousadia. Mas não fazemos nada disso contando mentiras a nós mesmos.

Uma última coisa

Há uma tentação comum nos círculos cristãos conservadores que não leva em conta a verdadeira natureza e magnitude do problema. Pelo menos o problema em tais círculos é reconhecido como um problema, mas geralmente é considerado um problema com os rapazes, que só precisam tomar a iniciativa. Se os rapazes simplesmente começassem a convidar as garotas para sair, poderíamos resolver isso rapidamente. Mas não é assim.

Nosso problema não é que os rapazes sejam preguiçosos e todos os outros façam a parte deles corretamente. Nossa dificuldade é que nós, na igreja, concordamos com um rebaixamento da compreensão do casamento e, particularmente, do valor do casamento para os rapazes. Como a igreja se acomodou a um feminismo brando (também conhecido como complementarismo brando), a igreja evangélica hoje pensa no casamento como uma forma lícita de “amigos com benefícios”. Mas não é isso o que o casamento significa.

Quando nos arrependermos e sairmos dessa confusão em que nos encontramos, os rapazes certamente terão sua parcela de arrependimento a cumprir. Mas a maior parte do arrependimento terá de vir dos mestres da igreja. Temos enganado o povo de Deus acerca da verdadeira natureza da criação, sexo, casamento, homens, mulheres, crianças, gravidez e amor por muito, muito tempo.