Douglas Wilson
Permita-me começar com uma afirmação chocante. Darei todas as explicações adequadas e necessárias em seguida. Vê se não fica reclamando.
Se bem compreendida, a instituição do casamento é fundamental para o evangelho, e negar isso é uma forma de idolatria.
Quero pôr essa afirmação ao lado da ideia cada vez mais popular de que os cristãos tradicionalistas fizeram um “ídolo da família”, e quero comparar e contrastar essas afirmações. Mas para chegar à edificante conclusão — que envolve muitos bebês — você terá que me aturar por alguns minutos.
Dois tipos de ídolos
Como cristãos, sabemos que não devemos esculpir ou pintar uma imagem para nos curvar diante dela. Esse tipo de prática é natural ao homem natural, e devemos ser zelosos em evitá-la, pois é algo que apela profundamente à carne. A mensagem da Bíblia é clara sobre esse tipo de idolatria. Livrem-se de todos esses ídolos e não tenham relação alguma com eles.
Ouvindo, pois, Asa estas palavras e a profecia do profeta, filho de Odede, cobrou ânimo e lançou as abominações fora de toda a terra de Judá e de Benjamim, como também das cidades que tomara na região montanhosa de Efraim; e renovou o altar do SENHOR, que estava diante do pórtico do Senhor. (2Cr 15.8)
De forma muito direta, esses são o que podemos chamar de ídolos. Quando Deus concede reforma e avivamento, fazemos mais do que simplesmente parar de orar para tais ídolos. Não os deixamos erigidos para facilitar a vida dos futuros arqueólogos. Não basta apenas corrigir a atitude e deixar as estátuas no lugar. Não, os baalins precisam ser derrubados. Devemos nos livrar deles completamente.
Naquela mesma noite, lhe disse o SENHOR: Toma um boi que pertence a teu pai, a saber, o segundo boi de sete anos, e derriba o altar de Baal que é de teu pai, e corta o poste-ídolo que está junto ao altar. (Jz 6.25)
Mas há outro tipo de idolatria, do tipo que deve ser tratada apenas através de uma correção de atitude. Porque a Escritura nos ensina a ir ao cerne da questão, devemos fazer isso, não apenas em termos de nossas lealdades do coração, mas também devemos ir ao cerne da questão quando se trata de clareza de pensamento. Não podemos ser crianças no entendimento.
Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prostituição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno e a avareza, que é idolatria. (Cl 3.5)
Sabei, pois, isto: nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento, que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus. (Ef 5.5)
O objeto da idolatria simpliciter é a estátua de Baal que deve ser removida. Mas um homem ganancioso também é um idólatra. Contudo, à luz do décimo mandamento, o objeto da cobiça é o funcionário do seu próximo, a empregada, a grama bem cuidada, o carro novo do sujeito, a esposa do vizinho. Tais coisas não podem ser licitamente removidas e, na verdade, não devem ser removidas. Esta é uma idolatria que deve ser tratada apenas através do arrependimento no coração. Você não pode corrigi-la por meio de algum mecanismo externo.
Eis outro exemplo. Se um homem é simplesmente ganancioso por dinheiro, e não necessariamente o dinheiro do próximo, ele também é um idólatra e deve tratar isso por meio do arrependimento. Mas uma vez que ele tenha se arrependido, na primeira segunda-feira após seu batismo, ele ainda deve sair para o mundo e lidar com dinheiro. Mamom é realmente um ídolo absoluto no coração de muitos, e por isso deve haver arrependimento. Mas o Senhor Jesus nos ensinou que ainda devemos usar o dinheiro (Lc 16.9). Ele não nos disse que poderíamos pegar serpentes e não sermos prejudicados (Mc 16.18)?
Com a idolatria padrão, o objeto a ser abolido é uma imagem esculpida ou pintada que é adorada no lugar de Deus. Com a idolatria do coração, o objeto adorado no lugar de Deus não deve ser abolido. Neste último caso, é necessário que o povo de Deus estude cuidadosamente seu relacionamento com ele e com todas as outras pessoas e coisas, e se certifique de entender o que Agostinho quis dizer com “amores ordenados”. Com a idolatria palpável, o ídolo é deposto da prateleira dos deuses em sua casa, ou do pedestal na praça da cidade. Com a idolatria do coração, o ídolo é deposto de um determinado lugar no coração.
E não para por aí. Se sua esposa era seu ídolo, digamos, uma vez que ela é deposta, você descobrirá que a ama mais do que antes, não menos. Antes, você a amava com todos os recursos que um idólatra tem para amar, ou seja, não muitos. Agora você está livre para amá-la como Cristo amou a igreja.
Quando a família se torna um ídolo
É possível que a “família” — um inigualável presente de Deus — se torne um ídolo? Claro que é. Um ídolo pode ser qualquer coisa criada que assume em nossa vida uma posição de importância que somente o Criador deveria ocupar. Portanto, a idolatria ocorre quando buscamos que algo finito nos dê o que apenas o infinito pode prover.
E o Senhor Jesus nos ensina explicitamente que a família apresenta justamente esse tipo de perigo.
Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. (Lc 14.26)
Como nos mostra a passagem paralela em Mateus, Jesus está dizendo que qualquer um que ame sua família mais do que a Cristo (Mt 10.37) não pode ser discípulo dele. Qualquer pessoa que ame um membro da família mais do que ama a Cristo é, por definição, um idólatra.
Mas isso não significa que o corretivo para tal idolatria seja tratar a esposa e os filhos como postes-ídolos, e cortá-los. O que precisa ser cortado, neste caso, são as pretensões idolátricas que cresceram no coração do idólatra.
Digo tudo isso para reconhecer que, dentro das fileiras dos cristãos tradicionais, há aqueles que fizeram um ídolo dos “valores familiares”. Isso é um problema. Isso deve ser tratado, e deve ser tratado por meio do arrependimento. Se sua associação de valores familiares favorita lhe fornece um boletim semanal que é uma lâmpada para seus pés e uma luz para o seu caminho, e você realmente não presta atenção à sua Bíblia, então, você tem um problema.
Mas para os críticos sofisticados de tais tradicionalistas, o indicador de idolatria não se encontra no fato de alguém simplesmente estar sendo um pateta. O indicador não reside em algo sem significado. Ele é tangível: onde o pai administra os sacramentos para sua família, onde ele é o principal sacerdote, teólogo, papa e grande cacique em sua casa, onde o ministério de ensino da igreja é negligenciado. Esse tipo de coisa é realmente perigoso.
Mas não é perigoso por causa de simples diferenças culturais. Um pai que educa seus filhos em casa não deve ser julgado como idólatra da família simplesmente por insistir na importância da educação.
Portanto, antes de nos entregarmos às tarefas kuyperianas de fazer cerveja artesanal, produzir móveis feitos à mão, gerenciar uma loja, ou escrever um grande romance, vamos primeiro nos dedicar à tarefa fundamental de fazer bebês. E como meu amigo Chocolate Knox costuma dizer: casem-se, tenham bebês e batizem-nos.
Confusão de categorias
A idolatria no segundo sentido em que apontei — no sentido do coração — é uma questão de motivação e intenção. Ela não é determinada por aquilo que alguém está fazendo externamente. E quando a família é um ídolo, ela é um ídolo nesse sentido.
Dois homens podem trabalhar diligentemente o dia todo, das 8h às 18h, voltar para casa, beijar a esposa, brincar com os filhos, fazer um churrasco para o jantar, assistir à televisão e depois ir para a cama. Eles poderiam ter dias praticamente idênticos, e um desses homens ser um idólatra e o outro não. O que precisa ser corrigido, se há de se corrigir, deve ser tratado no âmbito do coração.
Infelizmente, vivemos em uma época em que aqueles que levantam a voz com preocupações quanto a se os cristãos tradicionais estão ou não transformando a família em um ídolo tendem a ser justamente os que transformaram os seus esforços em minar, enfraquecer, desanimar, erodir, ignorar ou simplesmente negar a família em um ídolo. Defender o casamento heterossexual contra a falsificação homossexual não é idolatria. Defender a monogamia contra a poligamia não é idolatria. Defender a fecundidade do sexo contra os que promovem a esterilidade não é idolatria.
Digo isso já tendo reconhecido que um defensor desse tipo poderia ser um idólatra em seu coração. Mas essa é uma questão de motivação. Ele estaria fazendo uma coisa boa com uma motivação ruim. Porém, um homem pode dar todos os seus bens aos pobres e ser um idólatra (1Co 13.3). Ele pode ser um mártir e entregar seu corpo para ser queimado, e ser um idólatra (1Co 13.3). Ele pode falar nas línguas dos homens e dos anjos, e ser um idólatra (1Co 13.1). Podemos dizer isso, e de fato devemos, sem proferir uma palavra contra a verdadeira generosidade, o verdadeiro martírio ou a verdadeira eloquência.
Portanto, defender a família contra os ataques do secularismo é uma tarefa nobre e necessária. Devemos fazê-lo. Nesse percurso, não devemos nos tornar idólatras da causa, mas se descobrirmos que devemos nos arrepender de tal idolatria, isso significa que estaremos mais bem equipados para lutar em defesa da família.
Os que criticam aqueles que defendem a família, os que lançam levianamente a acusação de idolatria da família, são frequentemente aqueles que entendem que a melhor defesa é um bom ataque. Sua insistência na solteirice como um dom, na esterilidade como uma opção, na abertura ao mundanismo como um esforço missionário é muito mais passível às críticas de verdadeiros iconoclastas do que um pai, uma mãe, cinco filhos e uma van com adesivos da família feliz no porta-malas.
A facilidade com que essas coisas se invertem me faz pensar em um comentário de Thomas Sowell que ilustra como a serpente nos manipula com facilidade.
Eu nunca entendi por que é “ganância” querer manter o dinheiro que você ganhou, mas não é ganância querer pegar o dinheiro de outra pessoa.
Vivemos em uma época em que o casamento e a família, instituições estabelecidas por Deus, realmente estão sob ataque. Isso já é óbvio, certo? A Suprema Corte declarou solenemente que a caricata união de pessoas do mesmo sexo é matrimônio genuíno — e o momento para especular à distância sobre os possíveis motivos do coração não é quando alguém se levanta para falar a verdade sobre essas coisas.
É difícil imaginar — quando Atanásio fielmente se posicionou contra mundum — um bispo transigente dizendo a um bispo hesitante que “toda essa questão parece ter mexido com ele. Parece importante demais para ele, se é que você me entende…”?
Sim, eu entendo o que você quer dizer. Cada época tem seu zeitgeist, e cada geração da igreja tem aqueles que seguem para onde o vento sopra.
De onde se extraem as pedras vivas
E agora estamos prontos para chegar à conclusão. “Até que enfim”,, você diz? Bem, eu não te critico. Ei-la.
É completamente verdadeiro que na ressurreição não haverá casamento. Se o casamento continuasse da mesma forma como experimentamos aqui embaixo, então a questão dos saduceus permaneceria: de quem será a esposa (Mt 22.28)? A família é uma instituição temporal, histórica, e não será continuada em sua forma atual na ressurreição.
Eu digo “em sua forma atual” porque não acredito que um homem estará vagando pelo paraíso com as mãos nos bolsos quando, por acaso, esbarrar com a esposa com quem viveu cinquenta anos, momento em que ele dirá, “Ah, oi. É você?” Ainda não se manifestou o que haveremos de ser (1Jo 3.2) e sabemos que será algo que excede qualquer cogitação mortal. Mas acredito que podemos ter a certeza de que não será um retrocesso. Será (por necessidade) um aprimoramento transformador.
Bem, o paraíso será composto de incontáveis santos, e cada um deles é uma pedra viva que comporá o templo eterno. Ora, a família terrena — essa que é terrena, histórica, temporal — é a única pedreira de onde tais pedras vivas podem ser extraídas. Não digo que toda pedra seja levada ao templo, mas estou dizendo que toda pedra que é levada ao templo é uma pedra que foi extraída aqui na terra. As almas redimidas têm de vir de algum lugar.
Pense nisso. Há apenas uma maneira legítima de trazer uma alma eterna à existência, e essa maneira legítima é o ato sexual dentro dos laços de um casamento pactual. E quando digo “casamento pactual”, estou me referindo ao tipo de casamento registrado no cartório mais próximo de você. Estou falando de nossas uniões terrenas como o depósito de suprimentos para o que Deus vai fazer com todos os santos na ressurreição.
Não estamos brincando com fichas. Caminhamos diante de realidades eternas o tempo todo. Aquela escapada romântica com a esposa no fim de semana? Aquela em que seu terceiro filho foi concebido? Esse filho viverá para sempre. Essa criança é uma centelha eterna. E você quase não viajou por causa do problema do carro. Ela não apenas viverá para sempre, mas ela crescerá e se casará, e terá cinco filhos. Eles viverão para sempre também. E eles se casarão. E antes do fim, sua filha será a ancestral de centenas de milhares de pessoas. E tudo isso porque seu amigo da igreja, que é mecânico, consertou seu carro a tempo.
Em nossa experiência aqui na terra, existem três instituições estabelecidas por Deus: a família (Mt 19.6), a ordem civil (Rm 13.1), e a igreja (1Tm 3.15). Dessas três, é verdade que apenas a igreja durará para sempre. Mas cada pedrinha nessa igreja — que durará para sempre — foi concebida em uma cama terrena.
Que sentido faria um fabricante de tijolos se preocupar se estava ou não se esquecendo da importância dos tijolos, por estar dando uma ênfase indevida à argila? Ou um cozinheiro fazer o mesmo com suas omeletes? Quando ele pega os ovos na geladeira, não há uma omelete à vista. Suponha que ele tenha parado de procurar os ovos e tenha feito isso para se lembrar da omelete. Afinal, disse ele, ignorando os ovos, o importante é a omelete.
Apenas as almas humanas podem ser salvas, e há apenas uma maneira legítima de obter uma alma humana. O ponto legítimo de origem para todas essas almas é a família.
Ouvi-me vós, os que procurais a justiça, os que buscais o SENHOR; olhai para a rocha de que fostes cortados e para a caverna do poço de que fostes cavados. Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, que vos deu à luz; porque era ele único, quando eu o chamei, o abençoei e o multipliquei. (Is 51.1-2)
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Tradução: Márcio Santana Sobrinho
Revisão: Thiago McHertt
Texto escrito originalmente em maio de 2019: https://dougwils.com/books-and-culture/s7-engaging-the-culture/god-of-hearth-and-home.html