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A Análise da Personalidade por Gordon H. Clark

Para definir fé, alguma análise da personalidade é necessária. Não importa o que digamos que seja fé, as distinções entre atividades conscientes são pressupostas. De acordo com uma opinião muito comum, a consciência consiste dessas partes: intelecto, volição e emoção. A fé pode ser colocada entre um deles, ou pode ser descrita como uma combinação de dois ou até mesmo de todos os três. De qualquer forma, é requerido algum esquema analítico. Agora, uma das muitas dificuldades nesse procedimento surge da necessidade de se expressar a verdade bíblica em terminologia não bíblica. Em si mesmo, o uso de terminologia não bíblica não pode ser legitimamente criticado. O termo Trindade não ocorre na Bíblia, mas todos os trinitarianos sustentam que as idéias e relacionamentos que o termo envolve são solidamente bíblicas. Similarmente, a palavra emoção não ocorre na Bíblia, pelo menos não na King James Version. Contudo, no uso de nova terminologia, uma pessoa deve se assegurar que os termos sejam definidos sem ambiguidade. Desafortunadamente, muitas discussões sobre fé falham em definir intelecto, vontade ou emoção. Aqueles que usam os termos parecem ter apenas uma ideia nebulosa do significado deles, e um pouco de questionamento socrático revelaria prontamente a falta de inteligibilidade.

Há outro cuidado a ser tomado. Após o novo termo ser propriamente definido, sua relação com o material bíblico deve ser esclarecida. O uso de um termo não bíblico numa discussão teológica é evidência de uma precisão e economia técnica que a própria Bíblia não tem. Nenhum termo bíblico corresponde precisamente a um novo, e o novo termo não corresponde exatamente a nenhum simples termo da Escritura. Portanto, uma confusão se estabelece se o novo termo for veladamente equacionado com algum termo familiar na Bíblia. Isso tem acontecido com grande freqüência na identificação do termo hebraico coração com o [termo] emoção da psicologia popular. O significado desse termo será discutido mais abaixo, mas aqui a ênfase cai sobre o princípio geral. Quando um novo termo é introduzido na teologia e é precisamente definido, ele nunca deve ser assumido de maneira descuidada, mas deve sempre ser cuidadosamente comprovado que o novo termo e definição expressam adequadamente as idéias da Escritura.

Então, a Bíblia suporta ou não a popular divisão tripartida da alma? Obviamente, a psicologia moderna oferece outras divisões além de intelecto, vontade e emoção. Sigmund Freud especificou o id, o ego, e o superego, mais um libido cujas relações com eles não é muito clara. Admitidamente essa divisão freudiana tem um mau cheiro entre os devotos; mas o seu próprio reconhecimento de um mal inerente lembra a visão cristã de hereditariedade e depravação humana suficientemente para reivindicar uma consideração cristã. Ou, talvez, uma terceira análise seja melhor do que essas duas. Em todo caso, uma suposição apressada não pode ser permitida.

Porque é exigido cuidado, porque sobre o princípio a análise finalmente a ser escolhida deve se alinhar com a Bíblia, e porque – como já foi apontado anteriormente – o coração da Bíblia tem sido frequentemente identificado com as emoções da psicologia moderna, uma breve análise do registro bíblico deve ser feita.

O termo chave para a psicologia moderna, especialmente no Antigo Testamento, onde os princípios fundamentais foram lançados, é coração. Quando cristãos contemporâneos, frequentemente em pregações evangelísticas, fazem um contraste entre a cabeça e o coração, eles estão na verdade igualando coração com emoções. Tal antítese entre cabeça e coração não é encontrada em nenhum lugar na Escritura. Pelo contrário, esse uso às vezes indica um afastamento do Antigo Testamento. Nos Salmos e nos profetas, coração designa o foco da vida pessoal. Ele é o órgão da consciência, do conhecimento próprio, de fato de todo o conhecimento. Uma pessoa pode muito bem dizer que a palavra hebraica para coração é o equivalente da palavra personalidade em português.

Para entender o uso do Antigo Testamento, considere os seguintes exemplos:

  • Gênesis 6:5 Toda imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente.
  • Gênesis 8:21 E disse o SENHOR em seu coração: Não tornarei mais…
  • Gênesis 17:17 Então… Abraão… disse no seu coração: A um homem de cem anos há de nascer um filho?
  • Gênesis 20:6 Bem sei eu que na sinceridade do teu coração fizeste isto…
  • 1 Samuel 2:1 O meu coração exulta no SENHOR…
  • 1 Samuel 2:35 Um sacerdote fiel, que procederá segundo o que tenho no coração e na mente…
  • Salmo 4:4 Consultai no travesseiro o coração.
  • Salmo 7:10 O meu escudo está com Deus, que salva os retos de coração.
  • Salmo 12:2 Falam com lábios lisonjeiros e coração dobrado.
  • Salmo 14:1 Disseram os néscios no seu coração: Não há Deus.
  • Salmo 15:2 O que… fala a verdade em seu coração.
  • Isaías 6:10 Não venha ele… a entender com o seu coração.
  • Isaías 10:7 Nem o seu coração assim o imagine…
  • Isaías 33:18 O teu coração se recordará dos terrores.
  • Isaías 44:18 Nada sabem, nem entendem; porque se lhe untaram os olhos, para que não vejam, e o coração, para que não entendam. E nenhum deles considera em seu coração, e já não têm conhecimento nem entendimento.

Como existem aproximadamente 750 ocorrências da palavra coração no Antigo Testamento, essas citações dão apenas um exemplo muito pequeno. Mas elas são suficientes para mostrar que muitos versículos não fazem sentido algum se o termo fosse traduzido como emoção. Por exemplo, se essa identificação fosse feita, seria necessário dizer: Falam com lábios lisonjeiros e emoções dobradas; e, o que fala a verdade em suas emoções; e, não venha ele a entender com as suas emoções. Obviamente essa substituição resulta em absurdos. Não deve ser negado que o termo bíblico coração pode e ocasionalmente se refere às emoções, como em 1 Samuel 2:1, embora aqui deva haver algum entendimento intelectual também. Mas embora as emoções sejam algumas vezes referidas, o termo coração mais frequentemente significa o intelecto. É o coração que fala, medita, pensa e entende. Ao mesmo tempo, não pode ser uniformemente traduzido intelecto como distinto da vontade ou das emoções. Isso não é porque ele exclua ou seja antitético à mente, o entendimento, ou o intelecto, mas porque ele inclui todos eles e significa a personalidade total. O termo coração na realidade significa o eu, ou, com alguma ênfase coloquial, o eu mais profundo de alguém. E como o eu age emocionalmente, volitivamente e intelectualmente, cada uma das três atividades são representadas em várias ocorrências do termo. Embora o termo coração inclua as emoções, e, portanto, não possa ser traduzido como intelecto, a referência intelectual ocorre com maior freqüência do que qualquer outra; e essa preponderância das referências intelectuais mostram a preponderância do intelecto na personalidade.

É extremamente difícil apreciar os motivos, pelo menos no caso daqueles que estão interessados na Bíblia, que levam a um menosprezo do intelecto. Por que a emoção deveria ser o único caminho ou até mesmo o melhor para Deus? Por que o pensamento, a meditação e o entendimento devem ser condenados? Por que conhecer, compreender ou apreender a Deus é uma forma pobre, impossível ou até mesmo ímpia de adorá-lo? O que há de errado com a atividade intelectual?

Então também, esse ato de denegrir o intelecto em favor das emoções, e possivelmente essa própria divisão tradicional tripartida, pode envolver uma assim chamada psicologia das faculdades que contradiz a ênfase bíblica sobre a personalidade unitária. Parenteticamente, pode ser observado que isso se aplica a Freud também. Esse tipo de psicologia deve ser condenado por suas insinuações repugnantes, mas principalmente por sua divisão esquizofrênica da personalidade.

A Bíblia não sugere uma psicologia das faculdades. Embora discussões como essas dificilmente possam evitar usar a palavra intelecto, deixemos claro que não há nenhum “intelecto”; há atos intelectuais; não há “emoções”; há oscilações flutuantes de temor, ira, tristeza e exaltação. Similarmente, não há nenhuma “vontade”, nenhum “id”, nenhum “superego”; mas uma pessoa unitária.

Assim, o contraste comum entre a cabeça e o coração é evidentemente antibíblico. Há um contraste na Escritura. É o contraste entre o coração e os lábios, pois Mateus está citando Isaías, quando ele diz: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”. Quando o contraste da Escritura é substituído por uma psicologia da faculdade alheia à Escritura, não pode ser rejeitada a possibilidade de que outras teses da Escritura serão descartadas ao mesmo tempo.

Traduzido por Felipe Sabino

Fonte: Religion, Reason and Revelation, Gordon Clark, Trinity Foundation, páginas 90-94.

Sobre o autor: Gordon Haddon Clark (31 de Agosto de 1902 – 09 de Abril de 1985) foi um filósofo e teólogo calvinista americano. Ele foi o primeiro defensor da idéia de apologética pressuposicional e foi Presidente do Departamento de Filosofia da Universidade de Butler durante 28 anos. Era um especialista em filosofia pré-socrática e antiga, e ficou conhecido por seu rigor ao defender o realismo Platônico contra todas as formas de empirismo, por argumentar que toda verdade é proposicional, e por aplicar as leis da lógica .

Livros do autor publicados pela editora Monergismo

Deus e o Mal: O problema resolvido

Em Defesa da Teologia

Ensaios Sobre Ética e Política

Introdução à Filosofia Cristã

Senhor Deus da Verdade

Três Tipos de Filosofia Religiosa

Uma Visão Cristã dos Homens e do Mundo

William James e John Dewey