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A ascensão e a queda da elite evangélica


Converti-me a Cristo no ano 2000, abandonando minha oposição enquanto um ateu. Ingressei no protestantismo estadunidense completamente inconsciente de que algo único acontecia. Na década de 1980, o calvinismo ressurgia como uma poderosa força intelectual no evangelicalismo, liderado pelos batistas John Piper e John MacArthur e pelo presbiteriano R. C. Sproul. No início dos anos 2000, jovens da Geração X graduados nos seminários que foram influenciados por esses homens iniciaram um movimento conhecido como Young, Restless and Reformed (YRR). Novas personalidades e editoras surgiram, e muitas megaigrejas formaram-se. Centrados nas doutrinas calvinistas de salvação, esses Baby Boomers e os calvinistas da Geração X alcançaram uma boa dose de unidade teológica.

A sua unidade intergeracional e intrageracional ficava mais evidente nas conferências Together for the Gospel (T4G), que surgiram em 2006 e realizavam-se a cada dois anos. Eram organizadas por quatro amigos, já bem estabelecidos em seus próprios círculos na época pré-mídia social — Mark Dever (batista), Ligon Duncan (presbiteriano), Albert Mohler (batista) e CJ Mahaney (carismático), junto com três palestrantes convidados: Piper, MacArthur e Sproul. O que os unia era a crença na inerrância bíblica, na liderança masculina das famílias e nos “cinco pontos” do calvinismo, que podem ser reduzidos (embora de forma simplista) à doutrina tradicional reformada da predestinação. Assim, eles se opunham ao feminismo, aos estudos bíblicos “críticos” modernos e às doutrinas arminianas do livre arbítrio. A conferência cresceu ao longo dos anos e passou a incluir pastores mais jovens, como David Platt (batista), Matt Chandler (batista), Kevin DeYoung (presbiteriano), Thabiti Anyabwile (batista) e outros.

Participei do T4G de 2008 em Louisville, Kentucky, e vi os homens cujas obras li durante vários anos sentados juntos alegremente em painéis, apesar de suas diferenças doutrinárias importantes. Essa união era real. Mas também era inteiramente um produto da época. Foi desta época que o escritor reformado Aaron Renn chamou de período de 20 anos de “mundo neutro”, 1994 a 2014 — um mundo em que o cristianismo já não tinha um status privilegiado, mas não era desfavorecido. Quase todas as pessoas nestes círculos evangélicos eram políticos “conservadores” ou eleitores evangélicos comuns: contra o aborto e o casamento homossexual. No entanto, em questões políticas, os líderes do YRR possuíam abordagens muito diferentes. Piper era um pacifista cristão que até mesmo se recusaria a defender sua própria família contra a violência. MacArthur proclamava regularmente seu sentimento de que “o governo não podia salvá-lo”. Em contraste, Mohler (juntamente com os presbiterianos) dedicava atenção ao “engajamento” cultural. Mas, no mundo neutro, estas diferenças eram aparentemente menos pertinentes; o que dava liga a sua unidade era a oposição ao liberalismo teológico.

O falecido Timothy Keller também ganhou destaque nesta época ao comunicar o evangelho às elites costeiras. Seu neocalvinismo se espalhou amplamente entre o mundo da Geração X, estabelecendo um ethos centrado na “cativação” e em uma política de “terceira via” acima (e não entre, assim ele afirmou) da esquerda e da direita.

Sob a influência de Keller, a era da YRR não se retraiu, mas se tornou ainda mais ativa — buscando o “engajamento cultural”, demonstrando que a fé ortodoxa era a chave para uma vida coerente, boa e completa. O propósito da “teologia pública” era mais evangelístico do que político; e a maioria dos adeptos, mesmo que desaprovassem a linguagem da “neutralidade”, ainda aprovavam a possibilidade de debate numa praça pública partilhada. Ou seja, entrar no discurso público ofereceu aos cristãos a oportunidade não tanto de vencer politicamente, mas de demonstrar a sua serenidade, por meio de uma política que parecia atraente, celestial e agradavelmente distante, e desprovida de ansiedade, reação exagerada e raiva. Para o liberal urbano, esta era uma posição política peculiar, todavia segura, que atendia à maioria das preocupações de “justiça social”.

Assim, os cristãos que seguiam a abordagem de Keller podiam minimizar ou ignorar questões a respeito de poder político e se concentrar, em vez disso, na persuasão verbal e estética. O princípio relativo à política, especialmente para os seguidores de Keller, era que o comentário político e o ativismo eram uma extensão do “testemunho”, e não fundamentalmente um meio para bons resultados políticos. Cada decisão tomada na ministração deste testemunho tendia a retardar a questão acerca de se isso resultaria em tornar o cristianismo atraente para os habitantes urbanos não-cristãos. A política era uma extensão da apologética cultural, construída em torno da “autenticidade” em oposição ao movimento cafona e suburbano “seeker sensitive” dos anos 90. A suposição era de que as pessoas não cristãs ficariam insatisfeitas com as identidades seculares que lhes eram oferecidas e buscariam uma alternativa coerente. Esta abordagem fazia sentido naquele mundo neutro que já não existe, onde a identidade cristã era uma alternativa viável entre identidades concorrentes.

A The Gospel Coalition (TGC), fundada em 2005, exemplificou esta abordagem. A TGC, como uma “coligação” de igrejas, em sua maioria neocalvinistas, com ideias semelhantes serviu principalmente para promover estrelas em ascensão e para estabelecer um evangelicalismo de elite. O editor-chefe há muito tempo (e atualmente) do TGC, Collin Hansen, que escreveu o livro Young, Restless and Reformed,  em 2008, creditou os trabalhos de Keller sobre “apologética cultural” como um impulsionador do movimento. Posteriormente, o público-alvo de engajamento do TGC (e da apologética neocalvinista em geral) viria a ser os moradores urbanos, ou pelo menos os residentes não rurais. Poucos falavam sobre a necessidade de ministérios para os brancos da classe trabalhadora rural americana.

É óbvio agora, olhando para a era pós 11 de Setembro e pré-Obergefell2, que a deriva à esquerda deste movimento era inevitável. O fim do “mundo neutro” de Renn e o início de um mundo negativo e hostil ao cristianismo começou logo após a decisão Obergefell da Suprema Corte, ocorrida em 2015, e foi acelerado rapidamente com a vitória de Trump em 2016. A mudança de circunstâncias minou o modelo do testemunho de atração praticado anteriormente. O ethos do mundo neutro não poderia se sustentar no mundo negativo; a era do debate aberto acabou. O cristianismo como identidade alternativa viável foi colocado sob séria pressão, à medida que a aceitação do LGBTQ+ se tornou dominante, com a celebração obrigatória de sexualidades alternativas em quase todas as instituições. O #MeToo e os movimentos de justiça racial que surgiram nesta época também exigiam que todos eliminassem a alegada misoginia e o racismo.

O modelo de ter a política como testemunha, no entanto, permaneceu em vigor entre a elite evangélica. Com o movimento LGBTQ se tornando um dogma social, os evangélicos de elite começaram a mudar fortemente sua cultura para focar no gênero e na raça. Assim, em 2016 e durante a presidência de Trump, a máquina da elite evangélica atacou implacavelmente Trump e os seus eleitores evangélicos por serem insuficientemente sensíveis ao preconceito cultural. Por exemplo, Russell Moore, editor do Christianity Today (promovido desde o início por Al Mohler) escreveu um artigo: “Não mais uma igreja branca”, para o jornal New York Times, no qual acusava os apoiadores de Trump de “nativismo”, os quais ficariam “chocados” ao ver o “‘estrangeiro’ de pele escura e língua aramaica” em seu trono celestial. Os apoiadores de Trump não estão à “destra de Jesus”, afirmava Moore. Uma vez que apareceu num jornal pouco lido entre os evangélicos comuns, ficou claro que Moore escreveu o artigo não para os evangélicos, mas para a elite secularista e para as redes sociais de esquerda.

Dezenas de artigos políticos apareceram em todos os cantos dos meios de comunicação da elite evangélica, inclusive no site do TGC, refletindo o mesmo tema: apenas racistas, raivosos e sub-cristãos votariam em Trump. Além disso, um tema bizarro de deferência branca para com as minorias raciais começou a aparecer. Um editor do TGC, Brett McCracken, tuitou em novembro de 2016: “Os cristãos brancos na América devem fazer parceria, ouvir e acatar os líderes cristãos não-brancos e não-ocidentais. Precisamos de humildade, esperança, reavivamento.”

Dois anos depois, Moore ajudou a organizar a conferência MLK50, supostamente um evento em homenagem a Martin Luther King Jr., mas que serviu principalmente como um lamento performativo sobre o pecado do racismo branco. Nessa época, Ligon Duncan, professor de seminário e ex-presidente da Aliança dos evangélicos confessantes, escreveu um elogio ao livro de Eric Mason Igreja woke: um apelo urgente para os cristãos nos Estados Unidos enfrentarem o racismo e a injustiça. A justiça racial tornou-se tema importante para Dever, Platt, Chandler e outros. Enquanto isso, Mohler, presidente do Southern Baptist Theological Seminary, foi examinado minuciosamente por suas contratações de docentes, algumas das quais (como Jarvis Williams, Curtis Woods e o ex-reitor Matthew Hall) fiaram-se abertamente em métodos e conclusões da teoria crítica racial.

No entanto, no final de 2018, logo depois de ter falado na conferência T4G, MacArthur tomou uma posição veemente contra a “justiça social”, chamando-a de uma distorção do evangelho. Ele assinou a “Declaração sobre justiça social e o evangelho”, também conhecida como Declaração de Dallas, que denunciava metodologias e conclusões de esquerda baseadas na Teoria crítica. A T4G não o convidou novamente em 2020 ou 2022.

Em 2021, o movimento de justiça social já havia fracassado, em parte devido às feridas que tantos sofreram, mas também devido a todo constrangimento passado. Como esperado, muitos daqueles que foram apoiadores desse movimento foram de fato influenciados pela teoria crítica racial e pela teologia da libertação. Alguns começaram a defender o pastorado feminino. Acerca da questão de gênero, acadêmicos como Kristin Du Mez, autora de Jesus e John Wayne: como o evangelho foi cooptado por movimentos culturais e políticos [publicado no Brasil pela Thomas Nelson, com prefácio de Ronilso Pacheco], passou a “aceitar” as relações sexuais homossexuais. Muitas megaigrejas da YRR têm visto enormes divisões acerca da pregação da justiça racial, e finalmente, após anos de raciocínio empobrecido, e constrangimento após constrangimento, o TGC tornou-se irrelevante, sem importância e um merecido objeto de zombaria implacável.

A retórica e os acontecimentos de 2016 em diante mostraram que ter uma abordagem “testemunhal” na política nada mais é do que um espetáculo para o establishment progressista secularista. As elites costeiras eram o seu único público. Isto explica porque é que em todas as questões políticas eles levaram a ortodoxia o máximo possível à esquerda. As preocupações dos cristãos brancos da classe trabalhadora, que apoiavam Trump, nunca passaram por suas mentes, exceto como objetos de desprezo. Nunca ocorreu a estas elites que talvez devêssemos “ouvir” e “aceitar” não apenas as pessoas pardas, mas também as preocupações dos brancos pobres, e talvez até dos de classe média. Mas levar a sério as preocupações dos brancos “racistas” afastaria as elites evangélicas do establishment progressista antibranco que elas esperavam atrair.

Como eles próprios admitem, muitas elites evangélicas raramente ou nunca interagem com a sua base evangélica majoritariamente branca. Em 2018, o então editor-chefe da Christianity Today, Mark Galli, escreveu que seu grupo de “elite evangélica” ficara chocado ao saber que 81 por cento dos evangélicos brancos votaram em Trump. “A maioria dos cristãos evangélicos como eu exclamou: ‘Quem são essas pessoas? Não conheço quase ninguém, muito menos qualquer cristão evangélico que votou em Trump’”, escreveu ele.

Foi a resposta da elite evangélica à COVID que finalmente destruiu a sua credibilidade. Solidificou a suspeita já generalizada de que o seu papel na sociedade é fornecer um verniz teológico às narrativas do establishment. Eles demonstraram uma confiança ingênua e uma condescendência absurda para com as instituições e os “especialistas”, que mentiam abertamente e riam das acusações de tirania enquanto fechavam parques infantis e escolas, despejavam areia em pistas de skate, trancavam pessoas nas suas casas e insistiam que os seus entes queridos morressem sozinhos. Um proeminente pastor-teólogo, Jonathan Leeman, escreveu vários artigos contra igrejas que desafiaram as restrições da COVID, inclusive contra a igreja de MacArthur. No auge da pandemia e enquanto sua igreja estava proibida de se reunir, Leeman participou de um protesto lotado do Black Lives Matter, e até mesmo convidou sua igreja para se juntar a ele.

Em 2022, a T4G realizou sua conferência final. O mundo negativo os arruinou; a coligação acabou e o movimento YRR está morrendo lentamente. É agora claro para todos que a subserviência da elite evangélica para com os seus pares secularistas hostis é prejudicial para o país, para as igrejas e para o avanço do evangelho. A elite evangélica sabe que está em declínio.

A energia do evangelicalismo estadunidense está agora na direita cristã, que se tornou encorajada nos seus esforços para devolver os Estados Unidos à sua herança de fé. Eles proclamam a bondade das nações cristãs, uma política cristã assertiva e a herança de fé predominante na história norte-americana. Para eles, a política cristã não é uma teologia perdedora, nem se destina apenas a criar uma existência segura para as igrejas. O objetivo é a recristianização completa da sociedade civil, das instituições e do governo.

A ala moderada do YRR, representada por pastores como Kevin DeYoung, quer garantir um “centro” no meio deste caos. Mas isso é pura nostalgia de um mundo neutro que já não existe e que nunca mais voltará. Em nossa era de hostilidade secularista, você deve decidir se ter uma drag queen contando histórias em bibliotecas para crianças é uma bênção para a liberdade ou uma licença que deve ser destruída; se quer o nacionalismo pagão ou o nacionalismo cristão; se a degeneração ou a justiça prevalecerão; e se Satanás ou o Senhor Jesus governarão esta terra.

Notas do Tradutor:

1. Obergefell refere-se ao caso legal nos Estados Unidos que resultou na legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo em nível nacional, em 2015.

O texto se refere ao The Gospel Coalition estadunidense e entendemos que essa crítica não se aplica ao Coalizão pelo Evangelho aqui no Brasil. Louvamos a Deus pelo bom trabalho e fidelidade dos irmãos do blog Coalizão pelo Evangelho no Brasil.

Stephen Wolfe é um estudioso sediado na região central da Carolina do Norte, onde mora com a esposa e os quatro filhos. Recentemente, ele concluiu um programa de pós-doutorado no Programa James Madison em Ideais e Instituições Norte-americanas, da Universidade de Princeton. Wolfe é co-apresentador do podcast Ars Politica e escreve para Mere Orthodoxy, First Things, Chronicles Magazine e History of Political Thought. The Case for Christian Nationalism é seu primeiro livro publicado.

Traduzido por Rafael Sanguinetti

Fonte: https://chroniclesmagazine.org/view/the-rise-and-fall-of-the-evangelical-elite/