A OBEDIÊNCIA DO CÂNCER (Douglas Wilson)
Introdução
Se Deus governa o mundo, e ele realmente o governa, então isso significa que todas as coisas precisam ser obedientes a ele. Mas há outro lado dessa moeda, deixando-nos com uma antinomia. Sabemos de fato que vivemos num mundo pecaminoso, o que significa que há entidades e indivíduos que são desobedientes a Deus. Não há pecado sem obediência. Como devemos reconciliar isso? Todas as coisas são obedientes e algumas são desobedientes? Como isso pode fazer sentido?
Claramente a solução, se é para ter uma solução, precisa considerar a possibilidade de que a palavra obediente está sendo usada de forma equívoca, isto é, com mais de um sentido. E isso, é claro, é exatamente o que encontramos na Escritura.
O exemplo central
Ao olharmos para a paixão de nosso Senhor, vemos que o Filho do Homem foi para a morte, assim como estava determinado (Lc 22.22). Tudo estava no roteiro, até mesmo o comportamento dos galos (Mt 26.74), se os soldados quebrariam os ossos do Senhor (Jo 19.33) e quem molharia o pão na Última Ceia (Jo 13.26).
“…porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram” (At 4.27-28)
Aqueles que crucificaram a Jesus, fizeram-no a fim de cumprir o que a mão de Deus e o que o propósito de Deus tinham predestinado, predeterminado e preordenado.
Ao mesmo tempo, e sendo igualmente verdade, as pessoas que participaram nesse evento orquestrado, coreografado e plenamente roteirizado eram agentes morais verdadeiros, responsáveis por seu comportamento pecaminoso. Pilatos foi advertido num sonho por meio da sua esposa (Mt 27.17). O Senhor não foi crucificado pelas mãos de autômatos: “sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos” (At 2.23). Deve ficar claro que só porque um crime foi estabelecido de antemão pelo “determinado desígnio e presciência de Deus” não impede que o crime seja realizado por “mãos de iníquos”.
Filhos obedientes ou ferramentas obedientes
Deus nunca perde o controle. Nada fica oscilante nas suas mãos. Os fios de cabelo de nossas cabeças estão contados (Mt 10.30). Nem um pardal cai aparte da vontade do Pai (Mt 10.29). Em todas as coisas, sobre todas as coisas, por meio de todas as coisas, debaixo de todas as coisas, Deus permanece para sempre Deus. “Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.36).
Há diferentes camadas nessa questão da obediência. Porque Deus nos concedeu o dom da liberdade (ao nos regenerar), fomos dados a liberdade de obedecer como filhos. E então, se os nossos corações não forem transformados no novo nascimento, não seremos filhos obedientes, mas permaneceremos na nossa capacidade de sermos ferramentas obedientes.
Quanto mais o Faraó endureceu o seu coração, mais ele cumpriu os propósitos que Deus lhe tinha designado. Quanto mais Judas nutriu a cobiça do seu coração, mais ele estava sendo equipado para a obra de traição que lhe fora designada mil anos antes na profecia do salmista. Quanto mais um ateu milita contra os céus, mais ele cumpre a função para que foi criado.
Se ele se arrepender, essa função é de se tornar um filho obediente. Se ele não se arrepender, a função é para continuar uma ferramenta obediente.
Todas essas mesmas realidades se aplicam a objetos inanimados que nunca poderiam se tornar filhos: todos eles são uma ferramenta. E isso significa que, sempre que o câncer é dado, ele funciona como uma ferramenta obediente, executando os propósitos de Deus. E quando Deus pega uma ferramenta para usar, essa ferramenta nunca escorrega da sua mão. Ele nunca larga as suas ferramentas.
Então, um estágio
Poucos dias atrás eu notei uma protuberância no meu queixo esquerdo, mais ou menos do tamanho de uma moeda. Eu tentei várias alternativas, fiz uma tomografia, chegando à respectiva biópsia nessa última semana. O médico confirmou que a protuberância era de fato cancerosa e precisava ser extraída. Ela se localizava na minha glândula salivar, e é por isso que se parecia com um inchaço no queixo. Nem sequer dói. Estamos agora no processo de agendamento da cirurgia, que provavelmente será daqui a poucas semanas.
Não deixei de notar que esse é o segundo ano seguido que o clã Wilson fez isso com todo mundo: recebeu notícias de um tumor logo antes da conferência Grace Agenda e anunciou logo depois. Prometemos que vamos dar o nosso melhor para não tornar isso num evento anual de lançamentos de tumores, mas, até agora, está do jeito que está.
O resultado mais provável é que o médico irá remover o tumor e ficará por isso mesmo. Mas naturalmente há uma possibilidade de que o tumor seja um bad boy, do tipo agressivo. Eles descobrirão isso durante a cirurgia, depois de puderem olhar diretamente para ele. Se for do tipo agressivo, então eles também retirarão alguns gânglios linfáticos circundantes. O saldo líquido disso tudo é que eu estarei fora do jogo por alguns dias.
Aplicações
A questão mais óbvia que eu posso antecipar é sobre “como estamos”. Estamos contentes e nos alegrando na providência de Deus, confiando no Senhor e gostaria de pedir a todos vocês que orem para que continue assim. Em situações como essa, enquanto que você obviamente quer lidar com o tumor de uma forma responsável, o mais importante é impedir que suas emoções entrem em metástase, impedir que as suas emoções cheguem aos gânglios linfáticos.
Relacionado ao que escrevi acima, a Escritura nos ensina que devemos dar graças em tudo (1Ts 5.18) e por tudo (Ef 5.20). Deus realmente é soberano em cada detalhe de cada vida. Então, agradecemos ao Senhor por este câncer e pretendemos continuar a agradecê-lo por ele. Nós não sabemos qual é o bom propósito de Deus para isso, mas estamos seguros de que Aquele que conta tanto os fios de cabelo quanto pardais também é Aquele que controla o comportamento de cada célula do câncer. Indo direto ao ponto, também relacionado ao que disse acima, este câncer está exatamente onde está porque ele está sendo obediente, e não queremos ser menos obedientes do que o câncer está sendo. E isso significa confiar no Senhor que faz tudo muito bem. Ele designa um lugar para tudo e eu preciso me preocupar mais com ser obediente no meu posto designado do que perturbado pela inconveniência criada por outra coisa ser obediente no seu posto designado.
Eu sei que os tipos de obediência de que eu falo ocupam níveis diferentes. Elas certamente são tipos diferentes de obediência. De todo modo, ao mesmo tempo, um filho desobediente seria envergonhado de ser superado por uma pedra obediente. E se Jó tivesse cedido à primeira grande tentação, a que lhe convidava a “amaldiçoar a Deus e morrer”, isso o teria feito menos obediente do que suas úlceras.
Tomando a liberdade de adaptar ligeiramente Thomas Watson, ele disse certa feita que nos distraímos por quem ou o que traz a provação até nós, esquecendo quem enviou a provação a nós. E então lembramos isto, admitindo pleno escopo de agência moral em outras: toda aflição é obediente. Isso se aplica a tudo, caldeus e cânceres, desventuras e dívidas, emergências e evacuações, febres e fomes, e todo o resto do alfabeto. Tudo.
Então, pedimos pelas suas orações, e realmente agradecemos por elas. Queremos ser genuinamente fiéis nessa aflição em particular e, se o Senhor me der a oportunidade, uma das minhas aplicações será esta: digitar mais rápido. Caso seja possível, por favor, ore para que eu possa cumpri-la.
Tradução: Guilherme Cordeiro
Fonte: https://dougwils.com/resources/personal/the-obedience-of-cancer.html