Traduzido por Felipe Barnabé
Institute for Christian Studies, Toronto, Canada.
1. O problema do relacionamento entre a Bíblia e a ciência é de fundamental importância para qualquer grupo de cristãos que se ocupam com trabalhos teóricos. Ao mesmo tempo, a formulação comum da questão, o relacionamento entre Bíblia e ciência, é inadequada e requer expansão. O verdadeiro problema em questão é a relação da Palavra de Deus com a ciência, e não apenas, como muitas vezes é sugerido, a relação da Palavra Escrita com a ciência.
Só quando fica claro como devemos conceber a Palavra de Deus, inclusive as Escrituras, é possível prosseguir e considerar a relação da Bíblia com a ciência. Por isso, e como está ficando cada vez mais claro que não há consenso quanto à natureza da Palavra, para não dizer que, em geral, a maioria dos cristãos tem uma visão da Palavra que, por si só, a minimiza, este trabalho tratará em grande parte dessa questão cardinal. Em conclusão, a importância do que é dito sobre a Palavra para a ciência será resumido.
2. Confessando que as Escrituras são proveitosas para a instrução, recorremos a elas para sermos instruídos quanto à natureza da Palavra de Deus. Neste ponto inicial, só podemos apelar para as Escrituras. Não podemos apelar à razão de forma racionalista ou neorracionalista, nem à consciência religiosa a la Schleiermacher, nem aos resultados do método histórico-crítico em suas formas do século XIX ou XX.
Nosso apelo às Escrituras toma a forma de confissão. Confessamos que é nelas que chegamos ao conhecimento de Cristo. Cremos em Cristo devido as Escrituras. Na fé nos curvamos diante dela como a Palavra de Deus. Que não podemos ir além ou aquem das Escrituras para testar sua autoridade como a Palavra de Deus não é um problema a ser reconhecido. Se houvesse alguma autoridade superior pela qual corroborar as Escrituras, elas não seriam a Palavra ou o cânon para a nova criação. No início da ação humana, incluindo os esforços científicos, o homem deve confessar no que põe sua primeira e última confiança, deve escolher se viverá pela Palavra ou por alguma pseudopalavra.
3. Estudando as Escrituras com vistas a receber os primeiros princípios a partir dos quais se pode formular uma doutrina da Palavra, torna-se chocantemente claro que a comunidade cristã tem sido, e ainda é, atormentada por uma trágica redução da Palavra de Deus. Hoje os “liberais” estão preocupados em sustentar que somente Cristo é a Palavra – se é que estão dispostos a conceder isso – e os “conservadores” lutam para defender o fato de que tanto as Escrituras como Cristo são a Palavra.
Enquanto isso, as Escrituras são enfáticas contra ambos, liberais e conservadores: “os céus por sua palavra se fizeram, e, pelo sopro de sua boca, o exército deles… Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo passou a existir” (Sl 33:6-9). O salmista testifica ainda que: “ele arroja o seu gelo em migalhas; quem resiste ao seu frio? Manda a sua palavra e o derrete; faz soprar o vento, e as águas correm. Mostra a sua palavra a Jacó, as suas leis e os seus preceitos, a Israel” (Sl 147:17-19). “Fogo e saraiva, neve e vapor e ventos procelosos que lhe executam a palavra” (Sl 148:8).
E as palavras de Pedro vão direto ao ponto: “porque, deliberadamente, esquecem que, de longo tempo, houve céus bem como terra, a qual surgiu da água e através da água pela palavra de Deus… Ora, os céus que agora existem e a terra, pela mesma palavra, têm sido entesourados para fogo…” (2Pe 3:5-7; cf. Hb 11:3; Sl 119:89-96).
As Escrituras exigem que, em nossa reflexão, levemos em conta o fato de que o mundo foi criado pela Palavra de Deus. “E disse Deus, haja… e houve”. Qualquer discussão da Palavra não pode limitar-se às Escrituras ou mesmo a Cristo. Deus falou e o mundo foi formado. Nada existe em si mesmo ou por si mesmo. Todas as coisas foram criadas por Deus através da Palavra e todas as coisas são reconciliadas por Deus através da Palavra. Todas as coisas são sustentadas pela “palavra do seu poder” (Hebreus 1:3). Deus colocou sua Palavra no mundo e chamou a criação à existência e a mesma Palavra a mantém até hoje em Jesus Cristo em quem todas as coisas coexistem (cf. Gn. 1, Jó 38, Jo. 1, Ef. 1, Cl. 1). A única continuidade entre Deus e sua criação é o Verbo. Sem esta Palavra, o mundo simplesmente morreria. E o Espírito do Senhor conduz e move a criação de acordo com a direção do Verbo para o escathon no qual Deus será tudo em todos.
4. Quando liberais e conservadores, incluindo homens da ciência, ignoram esse simples testemunho das Escrituras, enfraquecem sua confissão de que Cristo e as Escrituras são Palavra. Pois sem a visão bíblica de que a Palavra de Deus estrutura e dirige a criação, é impossível entender o significado e o propósito da Palavra Escrita como meio pelo qual, após a queda, a humanidade poderia voltar a ver seu lugar e sua tarefa no mundo. Além disso, sem a visão bíblica do Verbo como Palavra de Lei para a criação, é impossível fazer justiça ao Verbo encarnado como aquele em quem todas as coisas existem e coexistem (cf. Ef. 1 e Cl. 1). Isolar Cristo dessa Palavra-Lei não permite entender corretamente a confissão de João 1 de que todas as coisas foram feitas através da Palavra e que sem Ele nada foi feito. Não se pode compreender o significado de Hebreus 1 que o Filho de Deus sustenta o universo através de sua Palavra de poder.
A igreja cristã deve recuperar a plenitude e a unidade da Palavra de Deus. A Palavra de Deus é uma só, mas desde a queda do homem, essa Palavra também vem até nós em forma escrita e encarnada. Quando o homem caiu em Adão, não mais ouviu e compreendeu a Palavra. Para tornar novamente possível ao homem ouvir e praticar a Palavra, e assim viver, Deus deu as Escrituras para iluminarem o homem quanto ao seu lugar, sua natureza e sua tarefa. Finalmente, nos “últimos dias, nos falou pelo Filho” (Hebreus 1:2). A Palavra em sua unidade e em suas formas é o Poder de Deus para a vida. Essa Palavra é “viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes” (Hebreus 4:12).
Como a Palavra é uma só, é tão ilegítimo jogar suas formas umas contra as outras (por exemplo, “você segue a Palavra-Lei ou as Escrituras?”) quanto negar que todas as formas são a Palavra de Deus. Para obedecer à Palavra de Deus Escrita é necessário confessar que a Palavra não se esgota nas Escrituras. A Palavra de Deus é toda palavra que procede da boca de Deus. E como o Senhor é fiel e Suas palavras são confiáveis, as palavras de Deus são a única Palavra.
5. O mistério das Escrituras e de Cristo e ao mesmo tempo nossa alegria e salvação é o fato de que nas Escrituras e em Cristo a Palavra de Deus assume a forma de uma realidade criada que está sujeita à Palavra. Assim, as Escrituras e Cristo são completamente humanas (criatural) e, ao mesmo tempo, completamente a Palavra (divinal). Desta forma, as Escrituras e Cristo são “guias” pelos quais uma criação caída pode novamente ver e obedecer à Palavra. O Verbo se fez carne; foi Escrito e Encarnado para nossa salvação.
As Escrituras republicam a Palavra na forma criatural da confissão. Como um livro de confissão, as Escrituras revelam a Palavra como Norma para a confissão. Em outras palavras: as Escrituras nos incitam a entregar nossas vidas ao Senhor e a colocar diante de nós a Direção da obediência. Elas desdobram para a humanidade a visão do Reino de Cristo e a necessidade de confessar seu nome para viver nesse Reino. As Escrituras estabelecem as linhas mestras de uma visão confessional que deve guiar nosso dia a dia. Elas nos dizem quem somos (os servos de Deus), onde estamos (em uma criação segura em Sua Palavra), para onde vamos (em Cristo, até a perfeição final do Reino já alvorecendo) e qual é a nossa tarefa (jardineiros obedientes, agentes da reconciliação). Assim, as Escrituras, através de Cristo, nos recolocam no lugar para que possamos novamente ouvir, ver e conhecer corretamente a Palavra de Deus que sustenta a criação. Com esta visão do Reino e de nossa tarefa nele contida, a humanidade deve começar a trabalhar o sentido desta salvação em todas as suas atividades com temor e tremor, também na ciência.
6. A Palavra de Deus ou Palavra-Lei é, em sua unidade, uma diversidade coerente. Muitas palavras do Senhor, muitos “haja” compõem a única Palavra. E o homem deve viver de cada palavra que procede da boca de Deus, e não apenas da palavra para pão. A Palavra na sua diversidade como estrutura de ordem jurídica dirige e sustenta a criação. A ordem-lei é a estrutura-para as estruturas-da criação.
É importante notar este duplo uso da estrutura. Normalmente quando se fala em estruturas, se refere à composição de totalidades concretas. Tais estruturas pertencentes à realidade e, portanto, sujeitas à lei, chamarei de estruturas-de. São estruturas de sentido. Ao mesmo tempo, são as estruturas-para que delimitam e tornam possíveis as estruturas-de. É o sentido dessas estruturas-para que geralmente é negligenciado, confundido ou identificado com as estruturas-de. Mas é apenas a estrutura-para que é a Palavra de Deus. A estrutura-para é a lei de condicionamento fundamental que primeiro torna possível a existência de coisas, eventos, estruturas sociais etc. É a estruturação, fora da qual nada existe ou pode existir.
7. O anterior deixa claro que a realidade nunca está apenas “lá fora”, para ser racionalmente apreendida. A realidade é sempre a revelação contínua da Palavra de Deus ou, desde a Queda, a revelação da Mentira do Diabo. Como revelação da Palavra é significativa, como revelação da Mentira não tem significado.
Consequentemente, a ciência não é a investigação racional e o domínio de uma realidade racionalmente qualificada, nem é o estabelecimento de modelos com vistas à introdução de alguma ordem no caos da realidade. O trabalho científico é basicamente uma resposta à Palavra de Deus, na qual são feitos esforços para traçar as estruturas-para as diversas áreas da criação.
Teorização ou ciência é o tipo de atividade humana concreta que se caracteriza pela abstração lógica. A teoria envolve abstração da totalidade da realidade para um ou mais aspectos ou segmentos dela, do particular para o geral. A teoria tem como finalidade o traçado das estruturas-lei para as áreas de preocupação. Um botânico, como botânico, por exemplo, preocupa-se com o aspecto orgânico das árvores e não com as árvores como objetos de culto, como objetos de valor econômico ou como objetos esteticamente agradáveis. Ele não se preocupa com esta árvore ou aquela árvore em particular, mas com as árvores em geral. Ele está empenhado em descobrir as estruturas da lei orgânica que sustentam as árvores.
8. Descobre-se apenas as estruturas-para (lei) em sua teorização via, através e nas estruturas-de (facticidade sujeita à lei). Adquire-se uma visão das estruturas-para através da observação das regularidades e conformidades-lei dadas na vivência das estruturas-para. As leis estruturais sustentam a criação; elas nunca estão à mão, possíveis de serem apreendidas. São antes as próprias condições do que está à mão e que pode ser apreendido. Tudo isso significa que com a preocupação com a estrutura-para não se está deixando a realidade (metafisicamente), como muitas vezes está implícito, para as regiões etéreas do além. Ao mesmo tempo, não se está empiricamente preso à facticidade. Ao invés disso, trabalha-se empiricamente investigando a experiência para, através das regularidades observadas, obter uma visão mais clara da ordem que suporta a realidade.
Não é, bom notar, que o homem possa traçar com certeza a priori as estruturas-para de sua experiência das estruturas-de factuais. No entanto, ainda que nossas descrições científicas das estruturas-para sejam falíveis e sempre abertas à correção, isso não afeta minimamente a força de obtenção dessas leis. As estruturas-para não dependem do conhecimento humano para sua constituição. Nossas descrições nunca podem ser identificadas ou equacionadas com as estruturas-para. Ao mesmo tempo, é tarefa da ciência trabalhar cada vez mais para aumentar nosso conhecimento sobre essas estruturas.
O conhecimento científico, uma vez reunido, pode, uma vez traduzido e integrado às situações da vida, ajudar a humanidade de forma mais eficaz e obediente a ordenar sua vida diante da face do Senhor.
9. Como se responde às diversas palavras do Senhor em sua teorização depende, em última análise, da resposta do coração à Palavra em sua unidade. Somente quando alguém se entrega de todo coração à Palavra é capaz (em princípio) de ver as diversas palavras em sua própria perspectiva, inter-relação e unidade. Fora de Cristo, se eleva uma dimensão e a distorce achando que é a Palavra em sua unidade. (Isto não nega que muito trabalho valioso pode ser feito e é feito por cientistas não-cristãos. Afinal, também eles estão trabalhando dentro da criação formada e delimitada pela Palavra. Mas, tendo rejeitado a chave do conhecimento, nunca entenderão o sentido da realidade, ainda que descubram muitas coisas. Os cientistas modernos, fora de Cristo, são como os fariseus, que sabiam tudo e, no entanto, nada sobre as Escrituras).
Só se pode conhecer a Palavra depois da queda em rendição a Jesus Cristo. E, como Cristo é conhecido pelas Escrituras e a Palavra para a criação é conhecida, nesse sentido central do coração, pelas lentes das Escrituras, a Bíblia é indispensável à ciência.
Ao mesmo tempo, como as Escrituras são uma republicação em forma confessional da Palavra e não uma republicação em forma teórica, as Escrituras não são, em nenhum sentido, livros de texto científico. Os cientistas, movidos pelos motivos das Escrituras, são mandatados a investigar as realidades da criação e assim traçar as estruturas-para dessas realidades.
10. Talvez seja bom, por um momento, comparar esta abordagem com a mais comum. Se nos limitamos a perguntar sobre a relação da Bíblia com a ciência, cria-se a impressão de que a atividade científica é uma atividade em si mesma e, depois, por sermos cristãos, surge a questão da relação do nosso trabalho científico com as Escrituras. É difícil, se não impossível, escapar da concepção da relação como uma questão de relação de natureza (ciência) e graça (Escrituras). Até mesmo falar em encontrar a conexão intrínseca pode ser mal-entendido. Isso deixa em aberto a possibilidade de a ciência como ciência poder ser praticada sem preocupação com a Palavra.
Tem sido o tema deste breve artigo que a própria atividade científica, seja ela realizada em sujeição ou em rejeição a Cristo, é uma possibilidade por causa da Palavra de Deus.
11. Toda ciência está intimamente, integral e inextricavelmente ligada à Palavra de Deus. Toda teorização é uma resposta à Palavra. Toda ciência é uma ciência de uma dimensão ou de um lado da Palavra. A teologia, nesse sentido, não tem status especial; ao mesmo tempo, poderíamos chamar de sagrada toda ciência.
Tendo acreditado em Cristo segundo as Escrituras, nossos olhos estão mais uma vez abertos para ver e conhecer a Palavra, enquanto ela sustenta e dirige a criação. Para os homens da ciência isso é de suma importância enquanto tentam levar todo pensamento cativo a Jesus Cristo.
Disponível em: The Word of God and Science