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«Herman Bavinck: cem anos atrás»

Cem anos atrás, neste dia,[1] nas primeiras horas da manhã, Herman Bavinck (1854-1921), o grande teólogo neocalvinista, faleceu. Um século depois, sua obra está experimentando um interesse renovado e notável por parte da igreja e da academia, e sua influência se estende para bem além de seu lar reformado neerlandês.

Qual é o motivo dessa fascinação internacional de sua vida e obra? Bavinck certamente foi um teólogo excepcional. Em 2021, muitos pastores e teólogos apreciam as ideias clássicas sobre a vida da mente cristã: desejamos ser hábeis nos idiomas da Bíblia e da Antiguidade, ser exegeticamente rigorosos, ter grande articulação com as doutrinas, ser cultural e psicologicamente perspicazes e cristalinos em nossas exposições.

No caso de Bavinck, esses instintos clássicos se combinavam a uma educação e instrução clássicas que já não mais existem – razão pela qual ele fazia teologia de um modo com que a maioria de nós só poderia sonhar. E, para coroar tudo isso, é claro, Bavinck teologizava com uma incrível generosidade de espírito. Mesmo quando polêmico, ele jamais era desagradável. Ele estendia sua amizade a seus oponentes, e levava a sério as perspectivas deles. Desse modo, ele continua a atrair um público, e mesmo fora do campo teológico –aliás, até além do mundo ocidental.

Bavinck não é o único teólogo de uma era passada no qual podemos encontrar essa combinação de erudição santificada. Cem anos após seu falecimento, sua influência continua a estender-se não somente por causa da qualidade de seu trabalho (considerado numa perspectiva, digamos, purista), mas sim porque este trabalho se desenvolveu no princípio de um momento cultural que ainda não terminou.

Em seu período mais maduro, particularmente, nas décadas iniciais do século XX, Bavinck debruçou-se sobre questões que continuam a espreitar-nos, no Ocidente, neste início do século XXI. Muitos do que leem (ou releem) Bavinck hoje em dia o fazem porque percebem sua relevância. Sabem que esse neerlandês morto há muito toca justamente onde incomoda, mesmo que ainda não tenham discernido como ele faz isso.

 

NOVIDADE HISTÓRICA

 

A cada segundo ano letivo, ministro, à graduação, uma disciplina de introdução à teologia que levanta uma série de questões basilares: quem faz a teologia, onde e por quê? Numa palestra sobre se um teólogo cristão deve ser um cristão teólogo – o que significa dizer: uma pessoa de fé –, analisamos exemplos de indivíduos que não se identificam como cristãos, e, no entanto, trabalham com textos e afirmações teológicas.

Nesse contexto, estudamos primeiramente os “cristãos culturais” chineses – um movimento de intelectuais chineses que muitas vezes não professam uma fé pessoal, mas que escrevem sobre teologia cristã em razão de sua influência sobre a cultura ocidental e de seu possível benefício cultural no Oriente. A existência desses apologetas culturais do cristianismo que não cristãos nem ocidentais habitualmente gera surpresa em meus alunos, que tendem a ver o movimento como interessante mas muito afastado deles. Na sala de aula, frequentemente ouço a resposta de que os “cristãos culturais” possivelmente não estão fazendo teologia verdadeira – ao menos não o tipo de teologia que os cristãos professantes precisam seguir de perto.

Para aumentar ainda mais sua surpresa, eu apresento então o número crescente de vozes ocidentais que atualmente promovem uma tendência semelhante; e assim mapeio o sucesso impressionante da obra Dominion, de Tom Holland, a controvérsia em torno de Jordan Peterson, a ampla influência de Douglas Murray, o “ateu cristão”, e, mais recentemente, o afastamento do historiador Niall Ferguson em relação ao ateísmo no qual havia sido criado. Indago a meus estudantes como deveríamos compreender figuras como essas, que defendem ousadamente que o Ocidente precisa do cristianismo, mesmo que se calem quanto à necessidade individual que cada ocidental tem de Cristo. Ao fazer essa indagação, apresento aos meus alunos uma novidade histórica: no Ocidente, os cristãos teologicamente conservadores de nossos dias, vivendo numa “guerra cultural” entre progressistas e conservadores, seguem cada vez mais a orientação de intelectuais cujos argumentos promovem uma necessidade cultural coletiva do cristianismo, mas que não falam a partir de uma perspectiva de fé inequívoca e pessoal.

 

NAVEGANDO MUNDOS

No Ocidente atual, muitas das grandes questões enfrentadas pelos cristãos lidam com nosso lugar numa cultura que foi moldada pelo cristianismo, mas que agora o rejeita – não apenas numa espécie de indiferença passiva, mas num esforço efetivo de desfazer a influência formativa e histórica da fé sobre nosso mundo. É nesse contexto que uma constelação de “cristãos culturais” locais obteve tamanha influência.

Em The Rise and Triumph of the Modern Self  [Ascensão e triunfo do self moderno], Carl Trueman nos ajuda a compreender o caminho deles à proeminência. Ele o faz trazendo à discussão a obra de Philip Rieff, o notável sociólogo judeu. Rieff argumentava que a história do Ocidente é a história de três mundos. O primeiro era um mundo sobrenaturalmente eletrizado, um mundo pré-cristão e pagão no qual a vida e morte eram governadas pelo destino. Este mundo deu lugar a um segundo, moldado pelo pensamento judeu e cristão, capaz de promover o conhecimento científico e a ordem social, e que buscava expandir-se com base em cada geração anterior, estando fundamentalmente orientado para as coisas que existem além do próprio mundo. (Na terminologia de Rieff, o segundo mundo é marcado pela “ordem sagrada” enraizada na transcendência divina. Numa expressão mais simples, é um mundo visto como uma criação em relação a um Criador).

E, num período bem recente, surgiu um terceiro mundo. Este novo mundo tenta justificar-se sem transcendência ou sem qualquer noção de ordem sagrada. Não conhece um Criador e, na verdade, apenas cria a si próprio. Rieff descreve esse terceiro mundo como uma “anticultura”, no sentido de que existe para eliminar o antigo mundo e toda ordem que julga sagrada – física, psicológica, social e espiritual –, justamente porque esse antigo mundo era uma criação com um Criador.

Para tomar de empréstimo as palavras do maior exponente desse terceiro mundo, o ateu Friedrich Nietzsche, a força que move esse mundo mais recente é o “desatar a terra do seu sol” e, com base nisso, “transvalorar todos os valores”. A ordem torna-se plástica e profana ao invés de sagrada e constante. O terceiro mundo é uma coisa totalmente nova, imprevisível, instável e caótica. Necessariamente, pois, só pode navegar em águas desconhecidas.

Ao trazer o pensamento de Rieff à tona, Trueman nos faz recordar que o que hoje vivenciamos como “guerra cultural” é na verdade o estrépito superficial de algo muito mais profundo. Bem abaixo dessa camada há duas placas tectônicas, cada uma sustentando um mundo para si: um habitado por conservadores guerreiros culturais, o outro por progressistas. Como crostas oceânicas, elas pressionam uma à outra de forma áspera, brutal e violenta. Enquanto isso, permanecemos na superfície esperando ver qual crosta irá avançar e sobrepor-se à outra, e qual afundará no manto da terra.

Não é de se admirar que sejam tempos desconcertantes para os cristãos. O pano de fundo histórico de nossas vidas não é uma simples “guerra cultural” teatral. Pelo contrário, é a luta do “terceiro mundo” apresentado por Rieff para desfazer o “segundo mundo”, como se sua ordem sagrada de extração religiosa jamais tivesse existido. Bavinck percebeu isso quando assinalou, em 1910: “De modo geral, a corrente dos tempos tem-se afastado de Cristo e sua cruz”.

Nove anos antes desse momento, em 1901, ele havia previsto que o século XX testemunharia um “conflito gigantesco dos espíritos” entre duas cosmovisões que se assemelham muito ao segundo e terceiro mundos de Rieff. Nas duas últimas décadas de sua vida, poucos nomes apareceram mais nos escritos de Bavinck que o de Nietzsche. Embora Bavinck tenha morrido poucos anos antes do nascimento de Rieff, e consequentemente tenha vivido anteriormente ao surgimento dessa teoria dos três mundos, esta possivelmente não lhe teria pegado de surpresa: ele sabia bem que uma mudança profunda havia ocorrido na aurora do século XX, e que, em muitos corações, a terra e sol de fato se desataram.

 

 

EM BUSCA DE GUIAS

 

Não é surpreendente que muitos cristãos vejam certa utilidade em seguir jubilosamente a direção de agnósticos e ateus ocidentais que, por diversas razões, opõem resistência à morte de um Ocidente que se orienta pela transcendência divina e pela ordem sagrada – mesmo que esses mesmos pensadores se abstenham de identificar-se, de todo o coração, com Cristo, ou que não acreditem que Deus de fato existe. E, é claro, segundo a teologia reformada, há muito a se ganhar ouvindo as intuições de pessoas reflexivas conforme estas navegam as complexidades desses mundos rivais, ainda que elas se identifiquem como agnósticas ou ateias. Essa é a doutrina da graça comum.

            Mas também há muito a se ganhar ouvindo as intuições daqueles que se identificam pessoalmente como cristãos, e que navegam através desse imenso embate entre mundos, com um comprometimento aberto não apenas com as questões da cultura atreladas à graça comum, mas também com as realidades do evangelho cristão atreladas à graça salvadora. Indivíduos que fazem isso com profundidade intelectual e com uma disposição pessoal cativante valem seu peso em ouro. Bavinck era um dessas guias para os desafios da era moderna.

 

O CHÃO QUE SE MOVE DEBAIXO DE SEUS PÉS

 

Ao longo de meu livro Bavinck: A Critical Biography [Bavinck: uma biografia crítica], pautei-me na metáfora de Bavinck como um cristão ortodoxo que passou sua vida tentando firmar seus pés conforme seu chão cultural se movia. Especificamente, essa imagem – usada primeiramente nas linhas iniciais do primeiro capítulo – foi tomada de empréstimo da observação que o historiador Tim Blanning faz acerca da experiência europeia moderna da cultura como uma realidade instável e em constante mudança. Blanning assinala apropriadamente que, na perspectiva dos europeus modernos, “o chão [estava] se movendo sob seus pés” – uma afirmação que se presta bem a uma história de uma vida que, em todo tempo, moveu-se sobre terreno inquieto e instável. A metáfora se estende mesmo à morte de Bavinck: pouco depois de seu funeral num cemitério de Amsterdã, seu féretro foi removido e levado para outra tumba em Vlaardingen. Até em seu falecimento, vê-se, o chão não deu a seu corpo um descanso direto e final.

A metáfora dominante da biografia não é arbitrária, ou tomada de empréstimo simplesmente como antegosto. Antes, perpassa todo o livro porque captura um feixe de instintos e intuições vistos em Bavinck e que guardam notável semelhança com os de Rieff.

Por que Bavinck, um século após sua morte, permanece importante? Hoje em dia, muitos cristãos professantes apoiam-se intensamente nos cristãos culturais apologetas – sendo estes frequentemente agnósticos e ateístas –, a fim de entender os tempos. Rieff, ele próprio um mordaz crítico judeu do cristianismo, também se tornou um dos mais procurados guias para cristãos que buscam entender o caos cultural que os cerca. Lendo a esmo esses autores, muitos cristãos podem se indagar se as jornadas de Tom Holland, Jordan Peterson ou Douglas Murray os levará, em algum momento, a uma fé pessoal e intrépida em Cristo, e o que suas conversões implicariam para o entendimento que têm acerca do conflito entre mundos.

Com Bavinck, no entanto, não é necessário especular. Um século após sua morte, ele é mais relevante do que nunca.

 

[1] O artigo foi publicado originalmente no dia 29 de julho deste ano, 2021. [N. do T.]

Tradução: Fabrício Tavares de Moraes

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