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Carta ao Rei Francisco I [João Calvino]

CARTA AO REI FRANCISCO I

Ao Mui Poderoso e Ilustre Monarca,

FRANCISCO,

Cristianíssimo Rei dos Franceses, seu Príncipe,

JOÃO CALVINO

Roga Paz e Salvação em Cristo

1. Circunstâncias em que a obra foi inicialmente escrita

Quando, de início, tomei da pena para redigir esta obra, nada menos cogitava, ó ilustríssimo Rei, senão escrever algo que, depois, fosse apresentado perante vossa majestade. O intuito era apenas ensinar certos rudimentos, pelos quais fossem instruídos sobre a verdadeira piedade todos quantos são tocados de algum zelo de religião. E eu empreendia esse trabalho principalmente por amor a nossos compatriotas franceses, dos quais a muitíssimos percebia famintos e sedentos de Cristo; pouquíssimos, porém, via devidamente dotados de pelo menos modesto conhecimento. Que essa foi a minha intenção proposta é algo que nos diz o próprio livro, composto em uma forma simples e elementar de ensinar, por assim dizer.

Notei, porém, até que ponto tem prevalecido em vosso reino a fúria de certos degenerados, de modo que não há nele lugar algum à sã doutrina. Então, me dei conta da importância da obra que estaria para fazer, se, mediante um mesmo tratado, não só lhes desse um compêndio de instrução, mas ainda pusesse diante de ti uma confissão de fé pela qual possais aprender de que natureza é a doutrina que, com fúria tão desmedida, inflamam-se esses tresloucados que, a ferro e fogo, conturbam hoje o teu reino. Pois não me envergonharei de confessar que resumi aqui quase toda a essência da mesma doutrina que, segundo eles, deveria ser punida com o cárcere, o exílio, o confisco, a fogueira, e que deveria ser exterminada por terra e mar.

2. Defesa dos fiéis perseguidos

Sei perfeitamente de quão atrozes denúncias teriam eles enchido teus ouvidos e mente, no afã de tornar nossa causa a mais odiosa possível diante de ti. Mas, em função de tua clemência, deve ser-lhe cuidadosamente ponderado que, se bastasse acusar, nenhuma inocência haveria de subsistir, nem nas palavras, nem nas ações.

No interesse de suscitar ódio, alguém poderá alegar que essa doutrina – da qual estou tentando dar-te a razão – , já há muito tempo tem sido condenada pelo veredito de todos os Estados e solapada por sentenças definitivas dos tribunais. Tal pessoa não estará dizendo outra coisa senão que, em parte, a doutrina tem sido violentamente pisoteada pelo caráter faccioso e pela prepotência dos adversários e, em parte, oprimida de modo traiçoeiro e fraudulento por suas falsidades, invencionices e calúnias.

Constitui arbitrariedade o fato de, não sendo concedida oportunidade de defesa a uma causa, contra ela se dirigir sentenças sanguinárias. É má fé acusá-la – independentemente de qualquer delito – de fomentar sedições e promover malefícios.

Para que ninguém pense que estamos injustamente nos queixando dessas coisas, Vossa Majestade, ó Rei nobilíssimo, podeis ser-nos testemunha de com que mentirosas calúnias ela é diariamente trazida diante de ti. É como se ela não tivesse outra finalidade senão arrebatar os cetros das mãos dos reis, pôr por terra todos os tribunais e normas judiciárias, subverter todas as instituições e estruturas político-administrativas, perturbar a paz e a tranquilidade públicas, anular todas as leis, desmantelar domínios e posses, enfim, promover total ruína de tudo. E, no entanto, o que ouvis é apenas uma parcela mínima. Pois certas coisas horrendas se espalham entre o povo, coisas que, se fossem verdadeiras, deveria o mundo inteiro, com merecida razão, julgá-la digna, juntamente com seus autores, de mil fogueiras e cruzes.

Quem a esta altura haveria de se surpreender de que, onde se dá crédito a essas acusações demasiadamente iníquas, contra ela se tem inflamado o ódio público?

Eis por que todas as suas classes, de comum acordo, concordam e cooperam em nossa condenação, bem como de nossa doutrina. Arrebatados por essa paixão, os que se assentam nos tribunais para exercer o juízo, em lugar de sentenças reais, pronunciam os preconceitos que trouxeram de casa. E julgam terem criteriosamente se desobrigado de suas funções se a ninguém ordenam que seja levado ao suplício, a não ser que seja incriminado por confissão direta ou por sólidos testemunhos.

Mas de que crime? Dessa doutrina condenada, dizem eles. Mas com base em que direito foi ela condenada? Ora, essa era a essência da defesa, a saber, não repudiar a própria doutrina, ao contrário, tê-la por verdadeira. Aqui, no entanto, nos é vedado até mesmo o direito de falar em sussurros!

3. Apelo em favor dos fiéis perseguidos

E assim, não sem justa razão, ó Rei Vitoriosíssimo, rogo-te que empreendais investigação completa dessa causa, que até agora tem sido tratada desordenadamente, quando não de todo tumultuada, sem nenhuma sistemática de direito e mais sob a agitação do impulso que com a seriedade adequada do judiciário.

Não julgueis que estou aqui arquitetando minha defesa pessoal, graças à qual me resulte um retorno seguro à pátria. Embora a ame tanto quanto é próprio do sentimento humano, no pé em que estão as coisas, não lamento profundamente estar longe dela. Antes, estou abraçando a causa comum de todos os piedosos, que não é outra senão a própria causa de Cristo. Essa, de todos os modos, está lacerada e humilhada em teu reino, reduzida a uma condição desesperadora, e isto, com certeza, mais em decorrência da tirania de certos fariseus do que pela tua vontade.

Denunciar aqui como isso acontece, porém, não leva a nada. O certo é que essa causa está sofrendo dura opressão. Isto, pois, os ímpios têm conseguido: que a verdade de Cristo, se não se aniquilar a si própria em debandada e destroço, certamente se torne maculada e, aviltada, se esconda. E a pobrezinha da Igreja está ou devastada por cruéis morticínios, ou arruinada por banimentos, ou ralada por ameaças e terrores, de modo que nem sequer ousa elevar a voz. E, ainda agora, com a costumeira fúria e loucura, investem impiamente contra a muralha que já está a ponto de desmoronar, prontos a levar à plena consumação a devastação a que se propuseram. Entretanto, ninguém se joga à frente em sua proteção, para opor-se a tais explosões de violência. E se existem alguns que desejam ser tidos como favorecendo especialmente a verdade, eles defendem que se deva ignorar o erro e a imprudência de homens incultos. Assim, pois, falam homens comedidos, chamando de erro e imprudência o que sabem ser a plena verdade de Deus e chamando de homens incultos aqueles cuja inteligência veem não ter sido, de modo algum, desprezível a Cristo, uma vez que ele os teve por dignos dos mistérios de sua celestial sabedoria. Todos ficam envergonhados do evangelho a esse ponto.

Cabe-vos, portanto, ó Rei Sereníssimo, não apartar nem os ouvidos nem a mente de tão justa defesa. Principalmente quando está em jogo questão de tão alta importância, a saber: como se fará patente na terra o caráter intocável da glória de Deus; como a verdade de Deus pode manter seu lugar de honra; como entre nós o reino de Cristo permanecerá íntegro e inabalável. Esse assunto é digno de tua atenção, digno de teu conhecimento, digno de teu juízo!

Com efeito, o verdadeiro rei certamente faz esta consideração: reconhecer-se um ministro de Deus na gestão do reino. Aquele que assim não reina para o serviço da glória de Deus não exerce o reino; ao contrário, exerce a usurpação. Além do mais, muito se engana quem espera a prosperidade diária do reino que não é regido pelo cetro de Deus – isto é, por sua santa Palavra –, pois o oráculo celeste em que se proclamou que não havendo profecia, o povo se espalhará não pode falhar [Pv 29.18].

Tampouco deve-te tirar da reputação desse esforço o menosprezo de nossa humildade. Estamos honestamente conscientes do quanto somos insignificantes e pequenos homens desprezíveis. Sim, diante de Deus, míseros pecadores; à vista dos homens, absolutamente desprezíveis, escória e lixo do mundo, se o quereis, ou qualquer outra coisa mais vil que, porventura, possa se referir. Assim, nada resta de que possamos nos gloriar diante de Deus além de sua misericórdia [2Co 10.17-18], graças à qual, à parte de qualquer mérito nosso [Tt 3.5], fomos admitidos à esperança da eterna salvação. Diante dos homens, nada nos resta senão nossa fraqueza [2Co 11.30; 12.5,9], cuja admissão, sequer com um aceno, é entre eles suprema desonra.

Nossa doutrina, porém, sublime acima de toda glória do mundo, invicta acima de todo poder, importa que seja enaltecida, pois não é nossa, mas do Deus vivo e de seu Cristo, a quem o Pai constituiu Rei, para que domine de mar a mar e desde os rios até os confins do mundo [Sl 72.8]. E de tal forma ele deve imperar que, golpeada só pela vara de sua boca, a terra toda – com seu poder de ferro e bronze, com seu resplendor de ouro e prata – ele a despedace como se ela fosse apenas um pequeno vaso de oleiro, exatamente como os profetas previram sobre a grandeza de seu reino [Dn 2.34; Is 11.4; Sl 2.9].

Nossos adversários, é verdade, bradam em contrário que nos servimos deslealmente da Palavra de Deus, da qual, a seu ver, seríamos os mais depravados corruptores. Essa, na verdade, não só é uma calúnia por demais maldosa, mas ainda é um total descaramento. Lendo nossa confissão, podereis julgar segundo a tua prudência. Aqui também será bom dizer alguma coisa que te desperte zelo e atenção, ou que pelo menos te prepare algum caminho para ler nossa confissão.9

Quando quis que toda profecia fosse conformada à analogia da fé [Rm 12.6], Paulo estabeleceu uma regra extremamente segura pela qual deve ser testada a interpretação da Escritura. Portanto, se nossa interpretação da doutrina se conformar a essa regra de fé, temos a vitória nas mãos. Pois o que melhor se coaduna com a fé que reconhecer que somos despidos de toda virtude, para que sejamos vestidos por Deus; vazios de todo bem, para que sejamos por ele enchidos; escravos do pecado, para que sejamos por ele libertados; cegos, para que sejamos por ele iluminados; coxos, para que sejamos por ele restaurados; fracos, para que sejamos por ele sustentados; despojando-nos de todo motivo de glória pessoal, para que somente ele seja glorioso e nós nos gloriemos nele? [1Co 1.31; 2Co 10.17]

Quando dizemos essas e outras coisas dessa espécie, nossos adversários nos interrompem e protestam com veemência, dizendo que, desse modo, se subvertem não sei qual cega luz da natureza, preparações imaginárias, o livre-arbítrio e as obras meritórias da salvação eterna, com suas super-rogações. É que não podem suportar que o pleno louvor e a glória de todo bem, virtude, justiça e sabedoria residam em Deus.

Com efeito, não lemos que tenham sido repreendidos os que beberam com abundância da fonte da água viva até a saciedade [Jo 4.14]. Ao contrário, sofrem pesadas censuras os que cavaram para si cisternas rotas que não podem reter água [Jr 2.13]. Por outro lado, o que mais se coaduna com a fé do que ter certeza de que Deus é um Pai propício, onde Cristo é reconhecido como irmão e propiciador; do que esperar confiadamente todas as coisas alegres e prósperas da parte desse Deus cujo indescritível amor por nós chegou ao ponto de não poupar o próprio Filho, entregando-o por nós [Rm 8.32]; do que descansar na segura esperança da salvação e da vida eterna, quando se tem em conta que Cristo nos foi dado pelo Pai, em quem todos os tesouros estão escondidos?

A essa altura, agarram-nos e bradam que não faltam arrogância e presunção a essa certeza da fé. Como, porém, nada devemos presumir de nós mesmos, de Deus se deve presumir tudo. Nós nos despojamos de vanglória por nenhuma outra razão, senão para aprender a gloriar-nos no Senhor [2Co 10.17; 1Co 1.31; Jr 9.23-24].

Que mais direi?

Examinai brevemente, ó Mui Poderoso Rei, todos os elementos de nossa causa e considerai-nos mais ímpios que qualquer espécie de homens criminosos, se não descobrirdes, com cristalina clareza, que nisto nos afadigamos e sofremos opróbrios, porque depositamos nossa esperança no Deus vivo [1Tm 4.10], porque cremos ser esta a vida eterna: conhecer o único Deus verdadeiro e aquele a quem ele enviou, Jesus Cristo [Jo 17.3]. Em razão dessa esperança, alguns dentre nós são confinados em grilhões, outros, fustigados com varas, outros, levados de um lado para outro como objeto de ridículo e zombaria, uns, forçados ao exílio, outros, torturados com extrema crueldade; outros, afastados pela fuga. Todos nos vemos oprimidos pela pobreza, amaldiçoados com terríveis maldições, retalhados de infâmias, tratados de maneiras as mais afrontosas.

Atentai, agora, para nossos adversários (falo da classe dos sacerdotes, a cujo arbítrio e capricho os demais são hostis contra nós) e, por um momento, ponderai comigo por qual zelo são movidos.

4. Escritura e tradição

Permitem, com muita facilidade, tanto a si mesmos como aos outros, ignorar, negligenciar e desprezar a verdadeira religião, que foi transmitida pelas Escrituras e que deveria manter-se constante entre todos. E pensam que pouco importa em que alguém creia ou deixe de crer acerca de Deus e de Cristo, desde que, pelo que chamam fé implícita, submeta o entendimento ao arbítrio da Igreja. Nem se preocupam muito caso se macule a glória de Deus com gritantes blasfêmias, contanto que ninguém levante um dedo contra o primado da sé apostólica e a autoridade da Santa Madre Igreja.

Por que, afinal, lutam com tão acirrada virulência e ferocidade em favor da missa, do purgatório, das peregrinações e baboseiras tais, a ponto de negarem que haja verdadeira piedade se não houver a fé mais explícita nessas coisas, quando, entretanto, nada dessas coisas eles provam serem provenientes da Palavra de Deus?

Por que, senão que seu Deus é o ventre [Fp 3.19] e a religião é sua cozinha? Se isso lhes for tirado, creem que não serão cristãos, nem mesmo seres humanos. Ora, embora uns se empanturrem regaladamente enquanto outros roem frágeis migalhas, todos, entretanto, vivem do mesmo caldeirão, que, sem esse combustível, não só se esfriaria, mas congelaria totalmente. Por isso, já que cada um deles está extremamente solícito pelo próprio ventre, assim, cada qual se mostra obstinado batalhador por sua fé. Enfim, todos juntos se dedicam a isto: preservar intocado o poder, ou encher o ventre. Ninguém, contudo, dá sequer a mínima demonstração de zelo sincero.

5. Acusações dos adversários

Nem assim cessam de investir contra nossa doutrina e de reprová-la e difamá-la com nomes que a tornam odiosa ou suspeita. Dizem ser ela doutrina nova e originada recentemente. Ridicularizam-na como duvidosa e incerta. Indagam por quais milagres ela foi confirmada. Perguntam se, porventura, possui alguma base pela qual prevaleça contra o consenso de tantos santos Pais e contra o mais antigo costume. Acusam-nos de reconhecer que ela é cismática, uma vez que move guerra contra a Igreja, ou que declaramos que a Igreja esteve semimorta por muitos séculos, durante os quais nada parecido se fez ouvir.

Finalmente, dizem que não há necessidade de muitos argumentos, pois o que ela é se pode julgar pelos próprios frutos, visto que tem gerado tantas seitas, tantos tumultos sediciosos, tão indecorosa licenciosidade.

Certamente que é muito fácil, para eles, insultar uma causa desamparada perante a multidão crédula e ignorante. Entretanto, se também a nós fossem dadas oportunidades para argumentar, digo que imediatamente lhes seria estancado o fervor dessa acidez com que, de boca cheia, de maneira depravada e impunemente, espumejam e vociferam contra nós.

6. De fato é doutrina recente ou nova?

Em primeiro lugar, chamando-a de nova, ofendem seriamente a Deus, cuja Sagrada Palavra não merece ser rotulada de novidade. Certamente, não duvido que seja nova para aqueles a quem Cristo e o evangelho são novos. Todos, porém, que sabem ser antiga essa proclamação de Paulo – a saber, que Jesus Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação [Rm 4.25] – não encontrarão nada novo entre nós. Que ela, por tão longo tempo, tenha ficado desconhecida e confinada é culpa da impiedade humana. Agora, quando, devido à bondade de Deus, ela nos é restaurada, sua antiguidade deve ser reconhecida, ao menos por direito de recuperação.

A mesma ignorância os faz considerá-la duvidosa e incerta. É precisamente disso que se queixa o Senhor por meio de seu profeta: que o boi conhece seu possuidor, e o jumento, o estábulo de seus donos; ele, porém, não é conhecido de seu povo [Is 1.3]. Na verdade, por mais que zombem da incerteza de nossa doutrina, se tivessem de selar sua doutrina com o próprio sangue e à custa da própria vida, poderíamos ver que valor dão a ela. Bem diferente é nossa confiança, a qual não teme nem os terrores da morte, nem mesmo o próprio tribunal de Deus.

7. Funções dos milagres

Ao exigirem de nós milagres, agem de má fé. Ora, não estamos forjando um evangelho novo; ao contrário, mantemos o mesmo evangelho cuja verdade é confirmada por todos os milagres que outrora foram realizados por Cristo e pelos apóstolos. Em comparação conosco, eles têm o estranho poder de confirmar sua fé mediante constantes milagres até hoje. Contudo, o fato é que estão, antes, invocando milagres que servem para perturbar o espírito, de outra sorte inteiramente sereno; a tal ponto são eles frívolos e ridículos, ou fúteis e hipócritas. Todavia, mesmo se esses alegados milagres fossem muito prodigiosos, certamente não deveriam ter força contra a verdade de Deus, pois o nome de Deus deve ser santificado por toda parte e a todo tempo, quer por meio de prodígios, quer mediante a ordem natural das coisas.

Talvez o engano fosse mais evidente se a Escritura nos advertisse quanto ao legítimo propósito e uso dos milagres. Ora, os sinais que acompanharam a pregação dos apóstolos, segundo Marcos [16.20], foram operados para a confirmação deles. De igual modo, Lucas também narra que o Senhor deu testemunho da palavra de sua graça quando foram operados sinais e prodígios pelas mãos dos apóstolos [At 14.13]. Muito semelhante é esta palavra do Apóstolo: Anunciado o evangelho, a salvação foi confirmada, testemunhando juntamente com eles o Senhor, mediante sinais, prodígios e muitos atos de poder [Hb 2.4; Rm 15.18-19].

Quando, pois, ouvimos que os milagres são marcas do evangelho, porventura os converteremos em destruição da autoridade do evangelho? Quando ouvimos que foram destinados simplesmente à autenticação da verdade, porventura os acomodaremos à confirmação de mentiras? Portanto, é conveniente examinar e investigar, em primeiro lugar, a doutrina, a qual o evangelista diz ter precedência sobre os milagres; doutrina que, se for aprovada, só então deve, por fim, corretamente receber a confirmação dos milagres.

Entretanto, a marca distintiva da boa doutrina, da qual o autor é Cristo, é esta: ela não se inclina a buscar a glória dos homens, mas a de Deus [Jo 7.18; 8.50]. Uma vez que Cristo declara que essa é a comprovação da doutrina, erroneamente são avaliados os milagres, sendo conduzidos a outro propósito que não o de glorificar o nome do Deus único. E convém que tenhamos sempre em mente que Satanás tem seus milagres, os quais, embora sejam truques enganosos e não genuínos prodígios, entretanto, são de tal natureza que podem seduzir os desavisados e simplórios [2Ts 2.9-10]. Mágicos e encantadores sempre se destacaram por seus milagres; a idolatria sempre foi nutrida por milagres de causar espanto. Contudo, eles não legitimam para nós a superstição dos magos nem dos idólatras.

E com esse artifício, os donatistas, outrora, abusavam da simplicidade da população, alegando que eram poderosos em milagres. Portanto, agora respondemos a nossos adversários o mesmo que Agostinho respondeu outrora aos donatistas: o Senhor nos acautelou contra esses milagreiros quando predisse que viriam falsos profetas, os quais, em virtude de sinais mentirosos e prodígios diversos, induziriam os eleitos ao erro, se fosse possível [Mt 24.24]. E Paulo advertiu que o reino do Anticristo haverá de vir com todo poder, e sinais, e prodígios enganosos [2Ts 2.9].

Mas, insistem eles, esses milagres não são operados por ídolos, nem por encantadores, nem por falsos profetas, mas pelos santos. Como se, na verdade, não soubéssemos que esta é a artimanha de Satanás: transformar-se em anjo de luz [2Co 11.14]. Em tempos passados, os egípcios cultuaram a Jeremias, sepultado em seu meio, com sacrifícios e outras honras divinas. Porventura, não estavam eles abusando do santo profeta de Deus para os fins de sua idolatria? E, no entanto, com tamanha veneração de sua sepultura chegavam ao ponto de pensar que, como justa recompensa por isso, eram curados da picada de serpentes. Que diremos, senão que sempre foi esta, e haverá de sempre ser, a mui justa punição de Deus: enviar a eficácia do erro àqueles que não têm recebido o amor da verdade, para que creiam na mentira [2Ts 2.11]?

Portanto, de modo nenhum nos faltam milagres, e esses não são passíveis de dúvida, nem suscetíveis a zombarias. Aqueles, porém, aos quais eles apelam em seu auxílio, são meros embustes de Satanás, uma vez que desviam o povo do verdadeiro culto a seu Deus para o engano.

8. O testemunho dos Pais da Igreja

Além disso, caluniosamente colocam contra nós os antigos Pais (refiro-me aos escritores antigos e, além disso, de uma era melhor da Igreja), como se os tivessem por apoiadores de sua impiedade. Se a questão fosse resolvida pela Patrística, a vitória – falando modestamente – seria nossa.

De fato, ainda que muitas coisas tenham sido escritas pelos Pais da Igreja com admirada perspicácia e reconhecida excelência, em certos casos, contudo, tem acontecido o que comumente costuma ocorrer aos homens: destes piedosos filhos, dotados com agudeza de espírito, de discernimento e de compreensão, só lhes são cultuados os lapsos e erros. Aquilo, entretanto, que com acerto disseram, não o observam, ou o dissimulam, ou o deturpam. Pode-se dizer que sua única preocupação tem sido catar esterco em meio ao ouro.

Então, contra nós investem com ímpios brados como sendo nós desprezadores e inimigos dos antigos Pais da Igreja. Nós, porém, tão longe estamos de desprezá-los que, se fosse esse o nosso presente propósito, dificilmente me seria possível comprovar-lhes com as minhas próprias opiniões a maior parte daquilo que estamos hoje afirmando. Contudo, somos tão versados em seus escritos que temos de ter sempre isto em mente [1Co 3.21-23]: tudo é nosso para servir-nos, não para dominar sobre nós, e nós somos de um, Cristo, a quem se deve, sem exceção, em tudo obedecer. Quem não observa essa distinção nada terá de sólido em sua fé, visto que, como esses santos homens eram ignorantes em tantos assuntos, não raro divergem entre si e por vezes até se contradizem.

Não sem razão, eles destacam que somos admoestados por Salomão [Pv 22.28] a não ultrapassarmos os marcos antigos que nossos pais estabeleceram. Mas a norma não é a mesma em se tratando de limites de terras e em questão de obediência da fé, que deve ser tal que o fiel “esqueça o seu povo e a casa de seu pai” [Sl 45.10]. Se, porém, com tanto ardor se regozijam em fazer alegorias, por que não tomam por Pais os apóstolos, antes que a quaisquer outros, cujos termos prescritos não é lícito remover? Ora, assim interpretou Jerônimo, cujas palavras inseriram em seus cânones. E se querem que sejam fixos os limites desses a quem entendem por Pais, por que eles próprios tão impiedosamente os ultrapassam, quando isso lhes é conveniente?

Foi um dos Pais quem disse que nosso Deus não come nem bebe, por isso não tem necessidade de cálices nem de pratos; outro, que os ritos sagrados não requerem ouro, nem com ouro se fazem aceitáveis as coisas que com ouro não se compram. Ultrapassam, portanto, esse limite, quando em seus cerimoniais tão efusivamente se deleitam com o ouro, a prata, o marfim, o mármore, as pedras preciosas, as sedas. Pensam que Deus só é devidamente adorado se o for por meio de tudo o que seja cercado de requintado esplendor, ou melhor, de extravagante pompa.

Foi um dos Pais quem disse que comia carne no dia em que os demais dela se abstinham porque era cristão. Desse modo, eles ultrapassam os limites quando, com terríveis repreensões, amaldiçoam a alma que tenha provado carne durante a quaresma.

Houve dois Pais, dos quais um declarou que o monge que não trabalhasse com as próprias mãos devia ser considerado como um salteador ou, se preferirdes, um ladrão. O outro disse que não é legítimo os monges viverem dos bens dos outros, mesmo que sejam assíduos nas contemplações, nas orações, nos estudos. Também este limite eles têm violado, quando encerram em prostíbulos e bordéis os ociosos e bojudos ventres dos monges, para que se abarrotem com bens alheios.

Foi um dos Pais quem afirmou ser horrenda abominação ver pintada em templos cristãos a imagem, seja de Cristo, seja de qualquer santo. Tampouco foi isso pronunciado pela voz de um único homem, mas até decretado por um concílio eclesiástico: que não se pinte em paredes o que se adora. Muito longe estão de se manterem dentro desses limites, quando não deixam sequer um canto vazio de imagens.

Outro dos Pais aconselhou que, após havermos cumprido o dever de humanidade para com os mortos, sepultando-os, os deixássemos descansar. Eles rompem totalmente esses limites quando incutem a perpétua assistência aos mortos.

Dentre os Pais está aquele que testificou que, na Santa Ceia, a substância do pão e do vinho permanece e não muda, assim como, em Cristo, o Senhor, a substância e natureza humana permanecem unidas à natureza divina. Desse modo, ultrapassam o limite quantos imaginam que, recitadas as palavras do Senhor, cessa a substância do pão e do vinho, para que se transubstanciem em corpo e sangue.

Os Pais exibiam a toda a Igreja uma só Eucaristia, e excluíam dela os ímpios e os criminosos. Assim, drasticamente condenavam a todos aqueles que, presentes, dela não participassem. Para quão longe eles removeram esses limites quando, não apenas os templos, mas até as casas particulares, enchem com suas missas, a cuja participação a todo mundo admitem, por mais vis e degenerados que sejam, e a cada um é admitido com tanto maior prazer quanto maior é a gorjeta? A ninguém convidam à fé em Cristo e à genuína comunhão dos sacramentos, antes, vendem sua própria obra como sendo a graça e o mérito de Cristo!

Há dois Pais, dos quais um decretou que fossem de todo excluídos da participação da Santa Ceia de Cristo todos que, satisfeitos em tomarem um dos elementos, do outro se abstivessem; o outro contendeu acirradamente que não se deve negar o sangue de seu Senhor ao povo cristão, que, ao confessá-lo, está declarando derramar seu próprio sangue. Eles subverteram também esses limites, quando, em virtude de lei inviolável, determinaram exatamente o mesmo que aquele punia com excomunhão, e este, com válida razão, condenava.

Foi um dos Pais que afirmou que é precipitação, ao examinar matéria obscura, decidir por uma ou outra das partes sem testemunhos claros e evidentes da Escritura. Eles se esqueceram desse limite quando, à parte de qualquer palavra de Deus, promulgaram tantas constituições, tantos cânones, tantas determinações magisteriais.

Foi um dos Pais que, dentre outras heresias, reprovou a Montano por ter sido o primeiro a impor leis acerca de jejuns. Também a esse limite excederam em muito quando, mediante leis extremamente estritas, sancionaram os jejuns.

Foi um dos Pais que sustentou que não se deve proibir o matrimônio aos ministros da Igreja e declarou ser castidade a coabitação com a própria esposa. E outros Pais concordaram com sua opinião. Desses limites eles se distanciaram quando, com extremo rigor, impuseram a seus sacerdotes o celibato.

Foi um dos Pais que afirmou que se deve ouvir a um só, Cristo, de quem foi dito: “A ele ouvi” [Mt 17.5]; e que não se deve atentar para o que, antes de nós, outros disseram ou fizeram, mas para o que Cristo ordenou, que é de todos o primeiro. Quando colocam sobre si mesmos e sobre outros qualquer outro mestre, senão Cristo, não se mantêm dentro desses limites nem permitem que outros se mantenham.

Foi um dos Pais que argumentou que a Igreja não deve se colocar acima de Cristo, visto que ele sempre julga segundo a verdade dos fatos, mas os juízes eclesiásticos, como os demais homens, se equivocam na maior parte das vezes. Rompido totalmente também esse limite, não hesitam em afirmar que toda a autoridade da Escritura depende do arbítrio da Igreja.

Todos os Pais, em unânime consenso, abominaram e a uma voz repudiaram a contaminação da santa Palavra de Deus com as sutilezas dos sofistas e seu envolvimento nas disputas dos dialéticos. Porventura, eles se contêm dentro desses limites quando, em toda a vida, não engendram outra coisa senão envolver e obscurecer a simplicidade da Escritura com infindas discussões e lamúrias piores que as dos sofistas? Se os Pais voltassem agora à vida e ouvissem esse tipo de debate, a que chamam de teologia especulativa, certamente não suporiam que essas pessoas estão discutindo acerca de Deus.

Na verdade, meu discurso teria de se estender para além de seus justos limites, se eu quisesse revisar quão petulantemente esses sacodem de sobre si o jugo dos Pais, de quem desejam parecer filhos obedientes. Não me seriam suficientes meses, realmente nem mesmo anos.

E, não obstante, eles são tão covardes e deploravelmente impudentes que ousam nos reprovar dizendo que não hesitamos em transgredir os limites antigos!

9. O valor do costume

Ora, ao apelarem ao costume, certamente nada conseguem. Constranger-nos a adotar o costume seria muito injusto. Sem dúvida que, se os juízes dos homens fossem retos, seria necessário buscar o costume dos bons. Contudo, muitas vezes costuma acontecer de modo bem diferente, pois o que é praticado por muitos, logo adquire a força de costume. Além disso, dificilmente em algum momento as coisas humanas estarão tão bem que o melhor agrade à maioria. Portanto, o erro público quase sempre resultou dos vícios particulares de muitos, ou melhor, o consenso comum dos vícios, que agora esses bons homens querem que seja tido por lei.

Aqueles que têm olhos veem que não apenas um oceano de males tem inundado a terra, que numerosas pestes ameaçadoras a têm invadido, que tudo se precipita à ruína, de tal sorte que, ou se desesperará inteiramente quanto à situação humana ou fará frente a tão grandes males, às vezes aplicando a força. E o remédio é rejeitado não por outra razão, mas porque há muito tempo já nos acostumamos aos males.

Ainda que o erro público tenha lugar na sociedade dos homens, no reino de Deus, contudo, somente sua verdade deve ser ouvida e obedecida, verdade que não pode ser determinada pela extensão de tempo, por um costume bem estabelecido ou pela conspiração dos homens. Assim, outrora, ensinava Isaías aos eleitos de Deus que não dissessem “conspiração” a tudo o que o povo chamava de conspiração. Isto é, que eles não conspirassem em compartilhar do ímpio sentimento do povo e não temerem o que o povo temia, mas, ao contrário, que santificassem ao Senhor dos Exércitos e que ele fosse o seu temor e espanto [Is 8.12-13].

Agora, pois, que lancem eles exemplos diante de nós, como queiram, não apenas de séculos passados, mas ainda dos tempos atuais. Se santificarmos o Senhor dos Exércitos, não seremos grandemente espantados. Ora, ainda que muitos séculos tenham aceitado a mesma impiedade, poderoso é aquele que exerce vingança até a terceira e quarta geração [Êx 20.5; Nm 14.18; Dt 5.9]. Ainda que, a um só tempo, a terra inteira conspire na mesma maldade perversa, ele nos ensinou, pela experiência, qual é o fim daqueles que transgridem com a multidão. Ele nos ensinou isso quando a todo o gênero humano destruiu pelo dilúvio, preservando apenas Noé com sua reduzida família, o qual, por sua fé, a fé de um só homem, condenou o mundo todo [Hb 11.7; Gn 7.1].

Afinal, o mau costume nada mais é do que como uma peste pública, em que tantos homens sucumbem quantos tombam na multidão. Além do mais, nossos oponentes deviam ter ponderado o que em certo lugar diz Cipriano: aqueles que pecam por ignorância, embora não possam ser eximidos de toda culpa, podem parecer, de certo modo, desculpáveis. Aqueles, porém, que obstinadamente rejeitam a verdade oferecida pela benevolência de Deus, nada têm que possam alegar em seu favor.

10. Concepções errôneas quanto à natureza da Igreja

Com seu dilema, eles não nos apertam tão urgentemente a ponto de nos forçar a confessar ou que a Igreja esteve por algum tempo semimorta, ou que agora estejamos nós em conflito com a Igreja. A Igreja de Cristo certamente tem estado viva, e viva continuará por quanto tempo Cristo reinar à destra do Pai, por cuja mão ela é sustentada, por cuja proteção é guardada, por cujo poder retém sua segurança. Pois ele cumprirá, sem dúvida, o que uma vez prometeu, a saber, que estará com os seus até a consumação do mundo [Mt 28.20]. Contra ela não sustentamos nenhuma luta, uma vez que, em pleno consenso com todo o corpo dos fiéis, cultuamos e adoramos ao Deus único e a Cristo, o Senhor [1Co 8.6], da maneira em que tem sido sempre adorado por todos os piedosos. Entretanto, eles se desviam muito da verdade quando não reconhecem nenhuma Igreja senão a que veem com seus próprios olhos e tentam mantê-la dentro de limites a que, de modo algum, pode ser ela confinada.

A controvérsia gira nestes eixos: primeiro, argumentam dizendo que a forma da Igreja é sempre concreta e visível; segundo, identificam sua própria forma com a sé da Igreja Romana e a ordem de seus prelados. Nós afirmamos, pelo contrário, não só que a Igreja pode subsistir sem nenhuma expressão visível e que sua aparência não está contida nesse esplendor externo que admiram de modo insensato, mas em marca bem diferente, a saber, na pregação pura da Palavra de Deus e na legítima administração dos sacramentos.

Eles se enfurecem se não podem, sempre, apontar com o dedo a Igreja. Quão frequentemente, porém, ela ficou tão deformada entre o povo judeu a tal ponto de não poder ser distinguida por nenhuma aparência? Que forma pensamos haver ela exibido quando Elias reclamou por ter ficado sozinho? [1Rs 19.14]. Quanto tempo, desde a vinda de Cristo, ela ficou obscura e sem forma? Quantas vezes, desde essa época, ela foi de tal modo oprimida por guerras, por revoltas, por heresias, de forma que em parte alguma resplandecesse? Se, porventura, tivessem vivido nesse tempo, teriam crido existir então alguma Igreja? Elias, porém, ouviu que foram conservados 7 mil homens que não tinham dobrado os joelhos diante de Baal [1Rs 19.18]. Tampouco deve haver alguma dúvida de que Cristo sempre reinou na terra, desde que subiu ao céu. Com efeito, se, então, os piedosos tivessem requerido alguma forma perceptível aos olhos, porventura não teriam prontamente cedido ao desânimo?

Aliás, já em seu próprio tempo, Hilário tinha considerado ser um grande mal que, tomados de tola admiração pela dignidade episcopal, não percebessem que uma hidra mortal espreitava por debaixo dessa máscara. Pois ele assim fala [contra Auxêncio]: “De uma coisa vos advirto: Guardai-vos do Anticristo! Pois é mal que de vós se tenha apoderado o amor às paredes, é mal que venereis a Igreja de Deus em tetos e edifícios, é mal que sob essas coisas introduzis o nome de paz. Porventura, há alguma dúvida de que nesses o Anticristo haverá de assentar-se? Para mim, mais seguros são as montanhas, as florestas, os lagos, os cárceres e as catacumbas. Pois neles profetiza o profeta, habitando ou sendo lançado ali”.

Entretanto, o que hoje o mundo venera em seus bispos curvados, senão a fantasia de serem santos prelados da religião aqueles a quem vê presidirem às cidades de maior renome?

Fora, portanto, com admiração tão tola! Antes, pelo contrário, uma vez que só ele sabe quem são os seus [2Tm 2.19], permitamos ao Senhor isto: às vezes ele até mesmo priva a visão dos homens da percepção exterior de sua Igreja. Confesso ser este um duro castigo de Deus sobre a terra. Mas se a impiedade humana merece isso, por que nos esforçamos para nos opormos à justa vingança de Deus? Dessa forma, o Senhor puniu em tempos idos a ingratidão dos homens. Ora, visto que não quiseram obedecer-lhe à verdade e sua luz extinguiram, quis ele que, tornando-se cegos em seu entendimento, não fossem somente enganados por falsidades absurdas, mas ainda imersos em trevas profundas, de tal sorte que não se evidenciasse nenhuma expressão exterior da verdadeira Igreja. Contudo, ele preservou, a todo tempo, seus filhos da extinção, ainda que não estivessem apenas dispersos, mas até mesmo escondidos em meio aos erros e às trevas. Nem é de admirar, pois, que soube preservá-los tanto na própria confusão de Babilônia quanto na chama da fornalha ardente.

Uma vez, porém, que é perigoso o desejo de julgarem a forma da Igreja por meio de uma ostentação vã, para que não prolongue demais minha exposição, o farei em poucas palavras, ao invés de fazer uma longa consideração.

Eles insistem que o pontífice de Roma, que ocupa a sé apostólica, e quantos foram ungidos e consagrados sacerdotes por ele – desde que sejam distinguidos por suas mitras e báculos –, representam a Igreja e devem ser tidos como a Igreja. Por isso, não podem errar. Por quê? Porque são pastores da Igreja e consagrados pelo Senhor.

E, porventura, Arão e os demais guias de Israel não eram pastores? Contudo, Arão e seus filhos, já investidos sacerdotes, erraram quando forjaram o bezerro [Êx 32.4]. Segundo esse raciocínio, por que não teriam representado a Igreja aqueles 400 profetas que mentiam a Acabe? [1Rs 22.11-12]. A Igreja, porém, estava do lado de Micaías, certamente, um homem sozinho e desprezível, de cuja boca, entretanto, procedia a verdade.

Porventura os profetas não levavam diante de si não só o nome, como também a forma da Igreja, quando à uma se insurgiram contra Jeremias e, ameaçadores, orgulhavam-se de que não era possível que a lei perecesse ao sacerdote, o conselho ao sábio, a palavra ao profeta? [Jr 18.18]. Jeremias foi enviado sozinho contra toda essa horda de profetas para que, da parte do Senhor, denunciasse que a lei perecerá ao sacerdote, o conselho ao sábio, a palavra ao profeta [Jr 4.9].

Por acaso não brilhava tal esplendor naquela assembleia que os sacerdotes, os escribas e os fariseus reuniram a fim de buscar ideias acerca de como tirariam a vida de Cristo? [Mt 26.3-4; Jo 11.47-53; 12.10]. Eles que se vão agora e se apeguem à máscara exterior, fazendo, assim, de Cristo e todos os profetas de Deus cismáticos e, consequentemente, dos ministros de Satanás órgãos do Espírito Santo.

Ora, se estão falando sério, respondam-me de boa-fé: entre que pessoas e lugares pensam vocês que a Igreja reside depois que, por decreto do Concílio de Basileia, Eugênio foi deposto e rejeitado do pontificado e Amadeu foi investido em seu lugar? Ainda que se arrebentem, não podem negar que, no que tange à exterioridade, esse Concílio foi legítimo e, além de tudo, convocado não apenas por um pontífice, mas por dois. Ali, Eugênio foi condenado por cisma, rebelião e desobediência, juntamente com todo o grupo de cardeais e bispos que havia planejado, com ele, a dissolução do Concílio. Entretanto, mais tarde, apoiado pelo favor dos príncipes, recuperou integralmente o pontificado. A eleição de Amadeu, outrora solenemente consumada pela autoridade de um sínodo geral e sacrossanto, se desfez em fumaça, exceto pelo fato de que Amadeu foi abrandado em virtude de um chapéu de cardeal, como um cão que late e se cala quando lhe é atirado um pedaço de carne. Dessa agremiação de hereges rebeldes e obstinados procedeu tudo quanto, posteriormente, tem havido de papas, cardeais, bispos, abades, padres.

Neste ponto, é vital agarrá-los e imobilizá-los. Pois a qual das duas facções conferirão o nome de Igreja? Porventura negarão que foi esse um Concílio Geral, de nada faltando quanto à majestade exterior, já que, na verdade, foi solenemente convocado por duas bulas, consagrado mediante o legado da sé romana, que o presidiu, em todas as coisas devidamente conformado às normas regulamentares e tendo preservada a mesma dignidade até o fim? Declararão Eugênio cismático, com toda a sua corte, pela qual foram todos consagrados?

Portanto, ou definam a forma da Igreja em outros termos ou, por mais numerosos que sejam, serão tidos por nós como cismáticos todos quantos, cônscia e deliberadamente, foram ordenados por hereges.

E se antes nunca tivesse ficado claro que a Igreja não se prende a pompas externas, eles próprios podem ser prova abundante disso para nós, visto que, sob esse pomposo nome de Igreja, por tanto tempo se apregoaram ao mundo com orgulho, quando, entretanto, não passavam de pestes mortíferas à Igreja. E não estou me referindo a seus costumes e àqueles atos hediondos que manifestam em todo o seu viver, quando dizem ser como os fariseus, que devem ser ouvidos, e não imitados [Mt 23.3]. Se dedicares um pouco de teu lazer a ler estas nossas ponderações, sem sombra de dúvida reconhecereis que a própria, sim, a própria doutrina, com base na qual alegam ser a Igreja, não passa de mortífero matadouro de almas, tocha incendiária, ruína e destruição da Igreja.

11. Alegam que os tumultos resultam da pregação reformada

Finalmente, eles agem com muita malícia quando, com despeitada virulência, rememoram quão grandes perturbações da ordem, tumultos e contendas tem a pregação de nossa doutrina trazido consigo e que frutos está produzindo em muitos. Ora, injustamente atribui-se a ela a culpa desses males, culpa que se deveria lançar à maldade de Satanás. Esta é, por assim dizer, uma característica da divina Palavra: ela jamais vem à tona sem que Satanás se desperte e se enfureça. Eis aqui a mais segura marca, e particularmente fiel, para distingui-la das falsas doutrinas, que se divulgam com facilidade enquanto são recebidas por todos com ouvidos atenciosos e são ouvidas por um mundo que as aplaude.

Desse modo, por alguns séculos, durante os quais todas as coisas estiveram submersas em profundas trevas, quase todos os mortais foram o passatempo e divertimento desse senhor do mundo que, em coisa alguma diferindo de algum Sardanápalo,10 repousava e se deliciava em completa tranquilidade. Afinal de contas, que outra coisa havia a fazer, senão folgar e divertir-se na serena e imperturbada posse de seu reino? Quando, porém, reluzindo das alturas, a luz dissipou bastante as trevas, quando aquele valente [Lc 11.22] lhe perturbou e abalou o reino, então, na verdade, ele começou a sacudir seu costumeiro torpor e a correr às armas.

E, de fato, primeiramente ele incitou o poder dos homens, por cuja instrumentalidade, de forma violenta, pudesse oprimir a verdade que aclarava. Nada tendo alcançado por esse meio, voltou-se para as ciladas. Assim, mediante seus catabatistas11 e outros prodígios de trapaceiros, divergências e contendas doutrinárias, agitou essa verdade, para obscurecê-la e, por fim, extingui-la. E agora teima em assediá-la com ambas táticas de guerra. Com efeito, não apenas tenta, pela força e pela mão dos homens, arrancar essa semente verdadeira, mas ainda, o quanto pode, se esforça por sufocá-la com suas ervas daninhas, para que não cresça e frutifique. Entretanto, tudo isso será em vão, se dermos ouvidos ao Senhor como nosso orientador, o qual, há muito, não só nos deu a conhecer suas artimanhas, para que não fôssemos pegos desprevenidos, mas ainda nos armou com defesas bastante sólidas contra todas as suas máquinas de guerra.

Além disso, quão desmedida é a perversidade de atribuir à própria Palavra de Deus o ódio, seja das sedições que contra ela atiçam os réprobos e rebeldes, seja das seitas produzidas por impostores! Todavia, isso não é novidade. Elias foi interrogado se, porventura, não era ele aquele que perturbava a Israel [1Rs 18.17]. Para os judeus, Cristo era um sedicioso [Lc 23.5; Jo 19.7]. Aos apóstolos atribuíram o crime de agitação do povo [At 24.5-9]. Que outra coisa estão fazendo aqueles que hoje atribuem a nós todos os distúrbios, tumultos e contendas que contra nós se multiplicam? Ora, Elias nos ensinou a resposta que se deve dar a tais acusadores [1Rs 18.17-18]: não somos nós que semeamos os erros ou incitamos os tumultos; ao contrário, são eles mesmos que lutam contra o poder de Deus!

Uma vez que, de fato, esta resposta basta para conter a imprudência deles, assim, por outro lado, ela será suficiente para corrigir a insensatez de outros, que geralmente se deixam abalar com tais escândalos e, assim, ficam perturbados e vacilantes. Portanto, para que com essa confusão eles não percam o ânimo e não sejam derrubados do pedestal em que se firmam, saibam esses que os apóstolos experimentaram em seu próprio tempo as mesmas coisas que hoje nos sobrevêm. Havia homens incultos e inconstantes que, para sua própria perdição, como diz Pedro [2Pe 3.16], corrompiam o que tinha sido divinamente escrito por Paulo. Havia desprezadores de Deus que, ao ouvirem que o pecado se tornou abundante para que a graça fosse superabundante, de imediato concluíam: “Permaneçamos no pecado para que a graça se enriqueça” [Rm 6.1]; ao ouvirem que os fiéis não estão debaixo da lei, de pronto alegavam: “Pequemos, porquanto não estamos debaixo da lei, mas sob a graça” [Rm 6.15]. Havia aqueles que o acusavam de instigador do mal. Infiltravam-se muitos falsos apóstolos para destruir as igrejas que ele edificara [1Co 1.10-13; 2Co 11.3-4,12-13; Gl 1.6-7]. Alguns pregavam o evangelho por inveja e porfia, não em sinceridade [Fp 1.15]; até mesmo por espírito de contenda, pensando agravar-lhe a pressão dos grilhões [Fp 1.17]. Em outros lugares, o progresso do evangelho não era muito. Todos buscavam o próprio proveito, não o de Jesus Cristo [Fp 2.21]. Outros voltavam atrás como cães a seu vômito e porcos à sua poça de lama [2Pe 2.22]. Muitos pervertiam a liberdade do Espírito em licença da carne [2Pe 2.18-19]. Falsos irmãos se insinuavam, pelos quais os piedosos eram expostos a perigos [2Co 11.3-4]. Entre os próprios irmãos surgiam várias contendas.

Nessas circunstâncias, o que os apóstolos deveriam fazer? Não deveriam ter, porventura, dissimulado por um tempo, ou, antes, ter deixado de lado e renegado esse evangelho que viam ser a sementeira de tantos litígios, motivo de tantos perigos, ocasião de tantos escândalos? Mas, em meio a tribulações dessa ordem, vinha-lhes à lembrança que Cristo era uma pedra de tropeço e rocha de escândalo [Rm 9.33; 1Pe 2.8; Is 8.14], posto para a queda e a elevação de muitos e como sinal de contradição a outros [Lc 2.34]. Armados desta certeza, avançavam ousadamente por entre todos os riscos de tumultos e ofensas.

Convém que também nos fortaleçamos com o mesmo pensamento, uma vez que Paulo testifica ser este o perpétuo caráter do evangelho: ser aroma de morte para morte aos que perecem [2Co 2.16], embora nos tenha sido destinado a este propósito: ser aroma de vida para a vida e o poder de Deus para a salvação dos fiéis [Rm 1.16]. Isso mesmo é o que também certamente experimentaríamos, se não corrompêssemos com nossa ingratidão esta bênção de Deus tão singular, e para nossa ruína não pervertêssemos o que deveria ser para nós a nossa única garantia de salvação.

12. Conclusão

Mas, volto-me a ti, ó Rei. Em nada te movam essas vãs acusações com que nossos adversários se esforçam por infundir-te pavor, a saber, que, por esse novo evangelho – pois assim o chamam – não se procura nem se busca outra coisa, senão ocasião para tumultos e impunidade para todos os exageros. Pois nosso Deus não é autor de divisão, mas de paz [1Co 14.33]; e o Filho de Deus, que veio para destruir as obras do diabo [1Jo 3.8], não é ministro do pecado [Gl 2.17].

E nós estamos sendo imerecidamente acusados de tais intenções, das quais, certamente, jamais temos dado sequer a mínima razão de suspeita. Como poderia ser que nós premeditamos a subversão de reinos, nós, de quem nenhuma palavra facciosa jamais se ouviu e cuja vida, a todo tempo que vivíamos sob teu cetro, foi sempre conhecida como pacata e singela e que, ainda agora, escorraçados de nossos lares, não cessamos de suplicar em oração toda prosperidade a ti e a teu reino. Como poderia ser que buscamos, desenfreadamente, liberdade para toda sorte de pecados, nós que, embora muitas coisas possam ser censuradas em nossos comportamentos, nada há digno de tão veemente censura. Nem tão insatisfatório progresso temos experimentado no evangelho – pela graça de Deus – que a esses detratores nossa vida não possa ser exemplo de castidade, generosidade, misericórdia, moderação, paciência, sobriedade e de toda e qualquer virtude.

Que de fato tememos e adoramos a Deus com sinceridade é coisa de si mesma perfeitamente evidente, uma vez que buscamos que seu nome seja santificado, quer por meio de nossa vida, quer por meio de nossa morte [Fp 1.20]. E da inocência e da integridade cívica, o próprio ódio tem sido obrigado a dar testemunho em favor de alguns de nós, a quem a pena de morte foi imposta por motivos que deveriam despertar singular aprovação.

Ora, se há quem, sob pretexto do evangelho, promove distúrbio, até aqui não se verificou que estes existam em teu reino. Se há quem acoberte a permissividade de seus desregramentos com a liberdade da graça de Deus, muitíssimos dos quais conheço, há leis e penalidades legais com que devam ser severamente reprimidos, conforme o que merecem. Entretanto, de modo algum deve o evangelho de Deus ter mau nome por causa da maldade de homens degenerados.

Tens, ó Rei, exposta de modo abundante e detalhado, a virulenta iniquidade de nossos caluniadores, para que não te inclines às suas acusações com ouvido desmedidamente crédulo. Temo ter me estendido excessivamente, uma vez que este prefácio está quase do tamanho de uma apologia completa. Não tentei, no entanto, formular uma defesa, mas simplesmente predispor-te o espírito para que dês ouvidos à própria apresentação de nossa causa. Teu espírito, na verdade, agora está afastado e alienado de nós, até mesmo inflamado contra nós. Não obstante, confiamos poder recuperar teu favor, se com ânimo sereno e desapaixonado, leres esta nossa confissão, que desejamos que seja nossa defesa diante de tua majestade.

Se, ao contrário, a tal ponto os sussurros dos maus te enchem os ouvidos que nenhuma ocasião se dê aos acusados de falarem em seu próprio favor – além do mais, em acordo com a tua conivência, essas fúrias intratáveis estejam sempre a se levantar contra nós sua ira obstinada por meio de encarceramentos, flagelações, torturas, mutilações, fogueiras –, então, seremos reduzidos ao último extremo, como ovelhas destinadas ao matadouro [Is 53.7-8; At 8.33]. Todavia, em nossa paciência possuiremos nossa alma [Lc 21.19] e esperaremos na forte mão de Deus, mão que, sem dúvida, a seu tempo se manifestará e se estenderá armada, tanto para livrar aos pobres de sua aflição quanto para punir os desprezadores que agora estão exultando com tão segura confiança.

O Senhor, Rei dos Reis, firme o teu trono na justiça [Pv 25.5] e o teu cetro na equidade, ó Ilustríssimo Rei.

Em Basileia, 1º de agosto de 1536.

Fonte: Institutas da Religião Cristã

Tradução: Waldyr Carvalho Luz

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