O mundo declara a glória da “habitação mútua” de Deus
A Bíblia fala algumas coisas estranhas sobre a vida da Trindade. Por exemplo, o Pai habita no Filho e ao mesmo tempo o Filho habita no Pai. O Pai é lar do Filho, enquanto o Filho é lar do Pai. Como o teólogo do século IV, Hilário de Poitiers, colocou, o Pai e o Filho se envelopam e são simultaneamente envelopados um pelo outro.
Desde os primeiros séculos da igreja, os teólogos cristãos têm usado a palavra pericorese para descrever essa realidade. O termo, que significa “habitação mútua”, tem sido usado quase exclusivamente para descrever o relacionamento entre as pessoas divinas na Trindade e o entrelaçamento das duas naturezas na pessoa una de Jesus Cristo. Para Hilário, a pericorese era misteriosa demais para ser nada menos do que divina.
Recentemente alguns teólogos têm estendido o conceito a realidades criadas. Outros teólogos, porém, se preocupam pensando que tal extensão está indo longe demais. Quando a ideia é usada fora de seus contextos tradicionais, ela perde o seu sentido, argumentam. Uma das principais preocupações é que a aplicação borra a distinção entre Criador e criação. O teólogo de Princeton, Bruce McCormack, por exemplo, diagnostica um caso de “pericorese galopante”, o que parece ser uma doença bem grave.
Bem, eu fui infectado por essa doença. Mas eu peguei ela do Novo Testamento, que emprega o conceito de habitação mútua de maneira bem expansiva. Embora o termo nunca seja usado na Escritura, o conceito aparece mais frequentemente do que normalmente percebemos, especialmente no Evangelho de João. Quando Jesus fala sobre a habitação mútua, ele enfatiza as semelhanças, ao invés de as dessemelhanças, entre o relacionamento do Pai e do Filho, o relacionamento da igreja entre ele e o Pai e as relações dos cristãos entre si. Tudo isso nos ajuda a entender não só o Deus que adoramos, mas também quem somos e o que experimentamos cotidianamente.
O nosso relacionamento no/no
Jesus pede ao pai para que todos os seus discípulos “sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós” (Jo 17.21). O Filho está “no” Pai. Ao mesmo tempo, o Pai está “no” Filho. E Jesus ora para que a unidade dos seus discípulos possa ser como — “como … também” — a unidade entre o Pai e o Filho. Os cristãos formam uma imagem terrena da comunhão trinitária. Jesus ora para que os discípulos sejam trazidos para a comunhão pericorética do Pai e do Filho. A nossa unidade com o Pai e o Filho também é um relacionamento “no/no”. Por um lado, os discípulos estão no Pai e no Filho. Por outro, Jesus está nos discípulos e o Pai está no Filho. Os discípulos de Jesus são trazidos para a comunhão do Pai e do Filho no Espírito e, ao serem trazidos a essa comunhão divina, eles são levados à habitação mútua um no outro.
Embora Cristo seja um lar para os crentes, os crentes são igualmente uma habitação para Cristo. “Estou crucificado com Cristo”, diz Paulo, e “Cristo vive em mim” (Gl 2.20). O mistério que Paulo prega é “Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1.27). Em outro lugar, Paulo diz que o Espírito, não Cristo, habita em nós (2Co 1.22; Rm 5.5). Isso forma o pano de fundo para as alegações de Paulo de que os crentes são “templos”, habitações, de Deus no Espírito (1Co 3.16; 6.19).
Os crentes estão em Cristo. Cristo está neles. O Espírito está neles e eles estão no Espírito. Os crentes habitam em e são habitados por, envelopando o Espírito que habita neles ao mesmo tempo que eles são envelopados pelo Espírito em quem eles têm todas as bençãos. É claro, humanos não viram Deus. A relação dos discípulos para com o Pai e o Filho não é idêntica à relação do Pai e do Filho. Mas, novamente, Jesus enfatiza as semelhanças, o que eu acho que nos dá motivo para usar o termo pericorético para descrever essas relações.
A autocomunicação de Deus
As objeções para estender o conceito de habitação mútua não emergem primariamente de dentro da teologia trinitária em si. Elas têm a ver com o nosso entendimento da criação, como usamos a linguagem humana para falar sobre Deus e o que significa Deus se revelar para nós.
Muitas das descrições de Deus nas Escrituras são aplicações de realidades criadas a Deus: Deus é Rocha (Sl 18.2), Luz (1Jo 1.5), Sol (Sl 84.11) e Escudo (Pv 30.5). E a sua relação para com a humanidade é descritível em termos de relações humanas: ele é Rei (Sl 47.7), Pai (Is 63.16), Senhor (Dt 6.4) e Marido (Is 54.5).
Ninguém acredita que Deus seja literalmente uma rocha. Ninguém acha que dizer que “Deus é luz” sugere que ele tem uma velocidade constante de 300.000 km/s. Ninguém atribui todo aspecto da paternidade humana a Deus o Pai. O ensinamento cristão reconhece que essas expressões são figuradas. E quando aplicamos palavras como existir a Deus, temos de reconhecer que ele existe de uma forma diferente da forma com que existimos. Deus existe como Criador e fonte de existência, enquanto que a existência humana é criada e dependente.
Ainda, os escritores bíblicos não demonstram ansiedade em usar figuras e analogias da criação. Em nenhum lugar encontramos sugestão alguma de que expressões figuradas são incapazes de falar a verdade sobre Deus. É claro, a Bíblia descreve Deus em termos criados porque a Bíblia foi criada para e por criaturas. Mas isso não sugere que essas descrições são uma acomodação inadequada à patética fraqueza humana. Pelo contrário, a Escritura alega que muitos desses termos são autodescrições de Deus (Gn 15.1) e supõe que a linguagem humana pode falar sobre, nomear e descrever Deus corretamente.
Por que, então, a Escritura está tão despreocupada com os problemas que têm preocupado muitos teólogos por muitos séculos? Talvez os escritores bíblicos sejam ingênuos teologicamente. Talvez eles não tinham reconhecido plenamente a transcendência de Deus, então eles não perceberam que a sua linguagem bruta era menos adequada do que as categorias refinadas da filosofia. A Escritura parece sugerir o contrário.
O mesmo Isaías que treme em assombro diante da majestade de Deus o descreve sem embaraço como um Senhor que senta num trono usando um robe bem longo (Is 6.1). Aqui encontramos a transcendência e a descrição figurada lado a lado. Tanto a transcendência quanto o robe parecem ser importantes para Isaías.
Eu acredito que a Bíblia não é muito autoconsciente sobre a sua linguagem teológica porque ela assumia certa visão da criação e da natureza humana e, portanto, da linguagem humana. Todas as coisas criadas foram feitas por Deus, planejadas segundo a sua sabedoria. Toda a criação é uma comunicação de Deus sobre Deus (Sl 19). Deus fez rochas e pretendia que elas exibissem aspectos da sua glória. Deus criou humanos à sua imagem para serem ícones adequados do seu caráter. Deus supervisionou a formação de famílias e políticas humanas para que “pais” e “reis” descrevessem de várias formas como Deus se relaciona com a sua criação, com os seres humanos e com o seu povo. Ele planejou o mundo para que pais e filhos apontassem para o Pai eterno que ama o seu Filho eterno. Deus criou tudo para comunicar sobre si.
Se as coisas criadas foram intencionalmente feitas para comunicar algo sobre Deus e se Deus é o Criador que conhece e governa o seu universo, então não é inadequado chamar Deus de Rocha, Sol e Pai, ou sugerir que há analogias entre as relações pai-filho e a relação eterna do Pai e do Filho. Não há impedimento para sugerir que as relações divinas são refletidas em relações humanas, que o casamento é uma figura viva da aliança entre Cristo e a sua igreja ou que poderia haver uma analogia entre a amizade e a habitação mútua divina. Descrições bíblicas de Deus atribuem qualidades criadas a Deus porque o mundo e os humanos refletem quem ele é.
A vida de Deus exibida
Tudo isso abre a possibilidade de podermos encontrar impressões digitais pericoréticas, vestígios da Trindade, por toda a criação. Somos livres para imaginar o mundo em termos de relações de interpenetração e habitação mútua. Depois dos nossos olhos serem abertos, nós as veremos em todo lugar. Isso pode significar que a “pericorese galopante” infecta os olhos, antes de tudo. Pode significar, contudo, que estamos vendo a marca da vida de Deus em sua criação, que é o que esperaríamos se ele é o Criador que criou a sua criação como uma expressão da sua glória eterna.
Vamos começar com algo básico: o meu relacionamento com o mundo fora de mim. Eu não sou o mundo e o mundo não sou eu, mas nem o meu mundo existe independentemente do outro. O mundo e o eu não são só mutuamente dependentes, mas eles são mutuamente dependentes de uma forma peculiar. Eu estou no meu mundo, movendo, agindo, mudando, mas eu posso estar no mundo só se pedaços comestíveis, bebíveis e respiráveis do mundo entrarem em mim. A minha vida no mundo é sustentável somente se o mundo vem para estar em mim, só se há um intercâmbio contínuo entre ambos. O que é verdade para a vida física é verdade também para a vida intelectual e emocional. Eu aprendo quando o que está fora entra, quando eu vejo e ouço e cheiro e toco, quando eu recebo de professores e tradições e livros.
O meu intercâmbio com o mundo das outras pessoas tem um formato semelhante. Eu comecei a vida vivendo dentro de outro ser humano e esse outro ser humano me penetrou também: a comida, bebida, ar, nutrientes e sangue da mamãe eram meus. Mesmo depois de eu me separar da mamãe, eu ainda ocupava a vida dela e ela, a minha. A minha identidade, os meus instintos emocionais, os meus hábitos verbais e físicos, os meus desejos mais profundos foram estimulados de fora, não só pela minha mãe, mas também pelo meu pai, meus irmãos e vários outros. As coisas que me fazem ser eu não vem do eu. Eu sou quem eu sou porque outros se derramaram em palavra e amizade de forma que passaram a viver em mim. Ao mesmo tempo, a minha mãe era a mulher que ela era parcialmente porque ela era mãe do meu eu. Eu era interno à identidade dela como mãe.
O tempo exibe essa forma. Passado, presente e futuro são distintos, mas não há tempo experimentado sem eles se dobrarem e fluírem entre si. Eventos passados reverberam no presente; objetos feitos no passado ocupam o meu mundo agora. Se o passado não ocupasse o presente, não haveria presente. Os meus compromissos futuros determinam o que eu faço hoje. Eu não experimentaria nada do tempo se essa curvatura cessasse, se eu ficasse somente com uma sucessão de presentes desconectados. Eu não seria capaz nem mesmo de reconhecer a mudança se eu não tivesse alguma memória do que era, para comparar com o que é. O tempo é pericorético ou não é o tempo como o conhecemos.
A linguagem é um entrelaçamento complexo entre palavra e mundo. A linguagem é uma ferramenta humana para entender e agir no mundo e, logo que falamos ou escrevemos, traduzimos o mundo em palavras. Dizer “cisne” traz aquela coisa elegante com asas e penas, de pés pretos, à linguagem. O mundo ocupa a palavra. As palavras existem só porque o sentido penetra som e signo e porque o signo e o som fazem seus lares em ideias com significado. As palavras ocupam o mundo. Sequências de palavras só fazem sentido porque cada palavra dá espaço a palavras que se seguem e porque as palavras faladas no passado continuam a habitar no presente. Textos literários são o que são em virtude da habitação de outros textos literários neles por meio de citações, alusões e ecos.
O som e a música são talvez a ilustração mais clara do padrão que eu estou descrevendo. O som existe bem literalmente dentro de outros sons. Uma única nota no piano é “habitada” por seus sobretons e, ao mesmo tempo, ressoa por meio desses sobretons. Cada tom de um acorde fornece um cenário para todos os outros e numa linha melódica cada nota, como uma palavra num poema, se silencia para dar espaço para a próxima, mas esse silenciar-se perdura na memória e no ar. Quando cantamos, formamos uma comunidade de som, com cada voz cantando a mesma música, o soprano fornecendo o contexto para o baixo ao mesmo tempo que o baixo molda o soprano. Quando cantamos, cada cantor canta por meio dos outros, literalmente vibrando a carne dos outros que estão mais perto. A música é talvez a dica mais elaborada, e mais amável, da natureza do universo e das esperanças da sociedade humana.
A doutrina clássica da Trindade ilumina o mundo em que vivemos, nos ajudando a descobrir dicas da vida trinitária dentro da criação. Mas não para aí: uma imaginação pericorética do mundo e da existência humana se desenvolve numa ética verdadeiramente cristã. Outros habitam as nossas vidas, portanto, devemos abrir as nossas vidas em hospitalidade para com eles. Nós habitamos as vidas dos outros, portanto, devemos ver os outros não como obstáculos para nossos enredos e projetos, mas como lares potenciais em que podemos habitar juntos. Um mundo de interpenetração mútua implica uma ética da hospitalidade, das boas-vindas, do convite, da camaradagem, centrada numa mesa comum. O mundo criado pelo Deus trino é um mundo organizado pelo e para o amor.
E quando chegamos a esse ponto, a oração de Jesus retorna para o foco: Jesus nos chama para sermos um assim como o Pai é no Filho e o Filho é no Pai, para viver como humanos de uma forma que exibe a vida do próprio Deus.
Peter J. Leithart, presidente do Theopolis Institute, e professor adjunto sênior de Teologia e Literatura no New Saint Andrews College, é o autor do livro Vestígios da Trindade (Editora Monergismo, 2018, compre aqui), a partir do qual este artigo foi adaptado, conforme publicado na Christianity Today.
Traduzido por Guilherme Cordeiro.
Livros sobre o assunto:
«Deleitando-se na trindade» do Michael Reeves
«Vestígios da trindade» Peter Leithart