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Em louvor dos livros

Tout existe pour aboutir dans un livre.
Mallarmé

Não experimento nenhuma atração pelo livro em si, à semelhança de D. Pedro II que dizia amá-lo com os cinco sentidos, nenhum interesse me desperta ele materialmente — diz-me um amigo. Aprecio-o apenas pelo conteúdo, pelo que sua leitura me faculta..

Confesso não compreender num intelectual esse desinteresse tão completo pelo livro como objeto, pois quem ama a essência não pode deixar de amar, ao menos um pouco, o frasco que a contém. Naturalmente o encanto pelo frasco deve ser limitado e jamais igualar-se ao que nos desperta a essência, pois então teríamos a bibliografia estéril, o livro puro ornamento de residências faustosas, o livro transformado em enfeite, abastardando-se nesse realce material seu grande papel espiritual. Causa pena ver estantes de luxo, com frisos artísticos, repletas de volumes admiravelmente encadernados, com lombadas douradas, numa imobilidade humilhante, servindo apenas de adorno, sem que ninguém os retire do lugar senão para mostrar às visitas.

— “Veja que bela encadernação! Tenho a coleção completa desse autor.” E o livro, folheado ligeiramente, para deslumbramento do visitante, que não regateia elogios ao bom gosto do amigo, volta inexplorado à estante, reduzido às suas restritas proporções materiais.

Não; a isso eu chamaria a servidão do livro.

Mas o extremo oposto também me revolta. Como pode alguém manusear com desleixo e rudeza um objeto do qual retiramos tudo quanto de belo e bom nos enriquece?

Uma das recordações mais enternecidas da minha adolescência era o esforço que empregava para restaurar, por vezes, determinados volumes da minha exígua biblioteca, adquiridos geralmente com grande sacrifício, à força de economia de preciosos tostões. Sempre que um livro me agradava, gostava de tê-lo belo, limpo e perfeito, tanto quanto possível em estado de novo. Mas vai que um caderno mal costurado, por maiores que fossem os cuidados, certo dia se despregava: o deslocamento afetava outro caderno, e era para mim a ameaça de todo o livro desconjuntar-se; uma coisa preciosa e querida que se mutilava. Então solícito, com carinhos extremos, ia eu, colando aqui e ali as folhas, acertando os cadernos, sempre torturado pela ideia de que apesar de todos os esforços, jamais conseguiria devolver ao volume o aspecto primitivo de coisa perfeita. E era-me penoso ver assim, materialmente lesado, o instrumento dos meus sonhos, o talismã que me abria a porta de mundos encantados.

Muito conhecida e citada a frase de Montesquieu: “Não há desgosto que resista a meia hora de leitura”. No entanto, surpreende-me ver, com frequência, pessoas habituadas ao convívio dos livros não perceberem essa verdade rudimentar, parecendo ignorar o papel orgânico que a leitura pode ter em nossa existência. Eu lhes diria: — De bem pouco nos serviriam os livros se não nos ajudassem eles a viver, a suportar os males da existência; se não tivessem a propriedade de suprir o muito que a sorte não nos deu. Nenhuma ideia, pois, lhes exprime melhor a função do que a de arrimo, de consolo, de remédio.

Os egípcios costumavam escrever à entrada de suas bibliotecas: “Farmácia das almas”. Eis o que é propriamente um livro, meus amigos, um remédio e não um jogo, como imagina muita gente. Remédio doce e suave que cura sem constranger.

Tudo está em saber usá-lo com acerto. Nas horas de dor, devemos auscultar a nossa alma e ver primeiro o que ela solicita. O romance? A poesia? A ciência? A filosofia? Reportando-me à experiência própria, direi: já houve ocasião em que encontrei o necessário lenitivo em romances de segunda categoria, até mesmo medíocres. Por quê? Simplesmente porque figuravam situações idênticas à minha, nas quais eu sublimava os meus pesares, numa operação psicológica semelhante ao transfert da técnica freudiana.

Em outras ocasiões, tratava-se de obras superiores, nas quais se reproduziam situações bem diversas da que me atormentava; o efeito vinha então do gozo artístico e da grandeza humana refletida no romance. Nenhuma identidade entre mim e os personagens, entre as minhas mágoas e as deles; mas o que encarnavam de humanidade me exaltava o espírito, infundindo-me um ânimo novo.

Em outras ocasiões, ainda, o efeito sedativo vinha do puro esquecimento, do mergulho em mundos ignorados, através de histórias fantásticas ou aventuras mirabolantes.

Muitos leitores, não habituados a pedir tanto dos livros e particularmente dos romances, replicarão: — “Histórias inventadas, capazes de distrair-nos precisamente quando não estamos atormentados por uma grande mágoa, quando o desgosto não é profundo. A realidade da vida difere da dos livros…”.

Eis o que tenho escutado inúmeras vezes e contra o que não me canso de insurgir. Não, meu amigo, a realidade da vida não é diferente da dos livros, e mais particularmente, da dos romances. Se tal se desse, os livros de nada nos valiam e os romances nem mesmo teriam a faculdade de conseguir essa coisa que você chama de distrair-nos.

Histórias inventadas? Certo, mas construídas com material da realidade, pois fora daí não teríamos nenhum dado para arquitetar histórias. Fantasias? Já ouviu falar nas demonstrações, em matemática, por falsa posição? As fantasias não são outra coisa, senão isto: a demonstração de verdades da vida por falsa posição. Uma mudança de perspectiva caprichosa, a fim de melhor desvendar certos aspectos. Nunca fugimos propriamente da vida: apenas a viramos de cabeça para baixo, sem com isso lhe perder o contato. E a simples imagem deformada da existência pode, muitas vezes, oferecer corretivo aos males causados em nosso espírito pela existência real.

Farmácia das almas! Sim, os livros nos consolam e nos ajudam a viver, porque nasceram da necessidade da solução para os conflitos e os problemas humanos. Surgiram de um apelo fremente de nossos anseios, nossas falhas e nossas insuficiências. O destino das angústias, depois de haverem latejado no peito do homem, tem sido, frequentemente, o de concretizar-se num punhado de páginas impressas.

Mallarmé dizia: “Tudo existe para terminar num livro”. É este, pois, no fundo, uma síntese da existência, o denominador comum de todos os mistérios. Assim devemos procurá-lo nas horas de mortificações e incertezas. Como um instrumento vital e não como um tabuleiro de jogo de damas.

Fonte: A Gazeta, 29/11/1952