Pular para o conteúdo

Escravidão e educação

Alguns de vocês têm conhecimento de que houve mais um episódio da controvérsia sobre a escravidão na Cary Christian School, na Carolina do Norte. Um cavalheiro participante dessa controvérsia me enviou algumas perguntas relacionadas a uma declaração da posição (bíblica) que a Cary Christian School havia publicado em seu site. A declaração está destacada em negrito, os comentários e perguntas do cavalheiro em itálico e minhas respostas não estão em destaque.

Introdução

Esta declaração tem o objetivo de fornecer orientação a qualquer professor da Association of Classical Christian Schools [Associação de escolas clássicas cristãs] (ACCS) que, no decorrer de suas funções, aborde o tema da escravidão. No decorrer da discussão em sala de aula, gostaríamos que os professores levassem os alunos às seguintes conclusões.

Comentário: Achei que a ACCS queria expor os alunos a várias visões de um tópico para permitir que eles formassem suas próprias conclusões. O que aconteceu?

D.W.: Uma educação ponderada não é a mesma coisa que relativismo. Chesterton comentou certa vez que o propósito de uma mente aberta era o mesmo que o de uma boca aberta: ela deve se fechar em alguma coisa. Pesar os dois lados de um problema não é inconsistente com chegar a uma conclusão. No ano passado, um palestrante convidado (um microbiologista) em nossa faculdade cristã clássica (New St. Andrews) perguntou quantos alunos haviam lido A origem das espécies, de Darwin. Praticamente todas as mãos se levantaram, pois ele faz parte do nosso currículo. Não somos evolucionistas e não ensinamos a evolução — mas os alunos leem Darwin. O palestrante, professor de uma universidade secular, ficou impressionado com isso, porque onde ele leciona praticamente nenhum dos alunos havia lido Darwin. Lá ele foi aceito sem ser lido; em nossa faculdade ele é lido, mas não aceito.

Objetivo

Os alunos devem ser ensinados que se manter fiel ao ensino das Escrituras é a razão para abordar esse tema. Ao reconhecer que a obediência às Escrituras poderia ter preservado nossos antepassados (tanto do Norte quanto do Sul) de uma guerra custosa e sangrenta, caso tivessem simplesmente obedecido, podemos enfatizar a importância de nos submetermos às Escrituras em relação às nossas controvérsias (por exemplo, aborto, homossexualidade), independentemente do que o mundo incrédulo possa dizer sobre elas.

Pergunta: Se a escravidão é reconhecida como uma instituição pecaminosa, por que os alunos precisam estudar um livro que a descreva de forma positiva? Que livros são usados para mostrar o lado positivo do aborto, da homossexualidade e de outros comportamentos considerados repulsivos e pecaminosos no mundo?

D.W.: Você interpretou mal o livreto. Nele, a escravidão não é representada de forma positiva, ponto final. A escravidão é representada como sendo muito mais benigna do que os abolicionistas diziam que era. Sendo esse o caso, era uma condição do pecado humano normal, não um mal apocalíptico, e, portanto, os requisitos do Novo Testamento se aplicavam a ela. Isso se deve ao fato de que a condição dos escravos no Império Romano, embora consideravelmente mais desfavorável do que a dos escravos negros no Sul, era igualmente uma instituição que precisava ser confrontada pela reforma, em vez de por meio de uma revolução. Como São Paulo diria, para que a Palavra de Deus não seja blasfemada (v. 1Tm 6.1-2).

Tráfico de escravos

Os estudantes devem aprender que o comércio de escravos era uma abominação, e que os evangélicos na Inglaterra que lideraram a batalha contra essa prática são devidamente reconhecidos como heróis da fé. A Bíblia rejeita claramente a prática do comércio de escravos (1Tm 1.10; Êx 21.16). Em uma ordem social justa, o comércio de escravos poderia ser justamente punido com a morte.

Comentário: Sério!? Então Abraham Lincoln não teve nada a ver com isso.

D.W.: Não, Abraham Lincoln não teve nada a ver com o fim do comércio de escravos. O tráfico de escravos foi proibido pela Constituição dos Estados Confederados. Talvez você esteja confundindo o comércio de escravos com a própria escravidão. Quando Lincoln finalmente emitiu a Proclamação de Emancipação (alguns anos após o início da guerra), ela se aplicava apenas aos territórios que não estavam sob controle do exército da união. Noutras palavras, ele optou por não emancipar os escravos em áreas onde detinha o poder para fazê-lo, enquanto proclamava a liberdade de todos os escravos em territórios onde não exercia controle.

Escravidão hebraica e pagã

Os estudantes devem reconhecer a diferença entre a escravidão regulamentada pela lei mosaica, caracterizada como uma forma de servidão contratual, e a escravidão que existia em um império pagão, como Roma. No antigo Israel, era dever dos cristãos que viviam naquele sistema seguir cuidadosamente as instruções bíblicas para que a Palavra de Deus não fosse blasfemada (1Tm 6.1).

Pergunta: Qual é o propósito dessa distinção no contexto do estudo da escravidão? Como isso se relaciona com a escravidão praticada nos Estados Unidos? Ela seguiu o modelo pagão ou hebraico? Como essa distinção complexa está relacionada aos estudantes do ensino médio?

D.W.: O livreto esclarece que a escravidão no Sul não se assemelhava à escravidão hebraica, e os maus-tratos aos negros no Sul precisavam ser enfrentados pelos cristãos da forma semelhante a que a fé cristã tratou a condição dos escravos no Império Romano. A razão de ensinar essas “sutilezas” aos alunos do ensino médio é para que, ao amadurecerem, eles sejam capazes de compreender um argumento e considerar cuidadosamente ambos os lados antes de gerar uma controvérsia nacional.

Racismo

Os alunos devem saber que, por uma questão de princípio bíblico, e como parte integrante de nossa posição oficial na escola, denunciamos todas as formas de racismo, animosidade ou vanglória racial. Deus criou o homem à sua própria imagem e de um só sangue fez todas as nações da terra (At 17.26). Cremos firmemente que no evangelho Deus reverteu a maldição de Babel, e que em Cristo não há judeu nem grego, homem ou mulher, escravo ou livre, preto ou branco, asiático ou hispânico (Gl 3.28).

Comentário: Lamentamos que isso não tenha sido esclarecido antes. Agora, existem pessoas até no Sudeste Asiático, do outro lado do mundo, que pensam que a Cary Christian School é um antro de racistas e neoconfederados.

D.W.: Isso foi esclarecido antes. O livreto apresentava uma rejeição inequívoca e direta ao racismo. Talvez aqueles que causaram essa controvérsia não tenham tido a vantagem de aprender essas “sutilezas” no ensino médio.

A escravidão como instituição

Cristo morreu na cruz para libertar todos os homens de seus pecados, e todas as formas de escravidão externa se edificam sobre o alicerce da escravidão ao pecado. Portanto, a lógica da Grande Comissão exige, no fim das contas, a extinção da escravidão como instituição em todos os lugares onde ela ainda possa existir. Enquanto os escravos cristãos foram ordenados a servirem aos seus senhores de boa vontade (Ef 6.5-8), eles também foram instruídos a aproveitar qualquer oportunidade legítima para obter a liberdade (1Co 7.20-24). Isso indica que a escravidão como instituição é inconsistente com a natureza do evangelho e, como tal, deve ser considerada uma instituição pecaminosa em geral, que atraiu o juízo de Deus.

Comentário: Leia o versículo em Coríntios novamente. Ele não diz “busque qualquer oportunidade legítima para obter a liberdade”. Diz apenas: “se você pode tornar-se livre, aproveite a oportunidade”.

D.W.: O termo “legítima” é necessário para manter o trecho em harmonia com o restante das Escrituras. Na sua leitura, São Paulo estaria em pecado ao enviar Onésimo de volta a Filemom. Onésimo havia conquistado sua liberdade, mas não de maneira legítima. Paulo desejava a liberdade de Onésimo, mas isso precisava ser feito de acordo com a vontade de Deus.

Reforma ou revolução

A revolução nunca é o padrão piedoso para a renovação social. O revolucionário insiste na ação imediata, por meios coercitivos, sangrentos e políticos. Em contraste, a obra do evangelho é feita tão silenciosamente quanto o fermento agindo no pão, e o resultado final é a libertação do pecado, o amor a Deus e ao próximo. Esse amor ao próximo exige o reconhecimento de que em Cristo não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, branco ou negro (Gl 3.28). Mas os revolucionários impacientes de espírito sempre recusam o ensino de Deus em tais assuntos. Eles são orgulhosos e ignorantes, amam discutir palavras, a inveja, a injúria e as disputas perversas (1Tm 6.3-5).

Comentário: Os cristãos favoráveis à escravidão tiveram mais de 200 anos para reformar e libertar sua sociedade dessa instituição. Ao que parece, Deus não estava satisfeito com o progresso lento deles e permitiu que uma guerra acontecesse como consequência. Por que você não deixa que o fermento aja em você e não abandona essa questão? Além disso, por que ouvimos falar que o livreto sobre escravidão será reimpresso, e talvez seja usado novamente, com notas de rodapé corrigidas etc.? Você está de brincadeira? Qual é o propósito?

D.W.: Este argumento foi apresentado no próprio livreto, que defende que a derrota do Sul na Guerra Civil foi juízo divino. Dito doutra forma, como um dos autores do livreto, afirmo que o Sul merecia perder a guerra. Creio que parte desse julgamento se deu por causa do tratamento dado pelo Sul a seus escravos. A quem muito é dado, muito é exigido. Robert E. Lee, um dos maiores homens que esta nação já produziu, expressou isso de forma eloquente ao afirmar que o Sul apelou ao Deus das batalhas, e este decidiu contra eles. Essa não é uma posição recém-formada, mas algo que expressei claramente nas páginas do livreto. Qual o objetivo em publicar uma versão revisada do livreto? Talvez agora ele seja escrito de forma a encorajá-lo a ler com mais cuidado.

———————

Tradução: Isaias Lobão

Revisão: Thiago McHertt

Texto publicado originalmente em dezembro de 2004: https://dougwils.com/books-and-culture/books/more-on-slavery.html