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Fator Melquisedeque? por Daniel Strange

Fator Melquisedeque?

 

Retornamos ao encontro de Abrão com Melquisedeque em Gênesis 14. Ninguém menos do que Von Rad nota que “tal avaliação positiva e tolerante de um culto cananeu fora de Israel não tem paralelos no Antigo Testamento”.[1] Eu lidei em algum detalhe com essa passagem em outro lugar, especialmente na medida em que este exemplo do “santo pagão” por excelência do Antigo Testamento é usado por evangélicos como Clark Pinnock como uma forte evidência para apoiar o inclusivismo religioso.[2] Embora não proponham um inclusivismo tão forte quanto o de um Pinnock, há uma série do que podem ser chamadas de leituras “provisionalistas” deste encontro,[3] leituras que compartilham a visão de que Deus deu uma provisão para a adoração genuína de Melquisedeque (sob o nome de uma divindade cananinta), ainda que a aceitação de Deus desse culto fosse provisória.[4]

O que devemos responder a essas leituras provisionalistas e ao encontro misterioso em si? Ao invés de isolar o incidente, é importante vê-lo em seu contexto circundante, tanto em Gênesis quanto dentro do cânon, e como parte da narrativa contínua da história redentiva. Quando isso é feito, então as leituras mais provisionalistas se revelam cada vez mais improváveis.

Primeiro, embora vejamos Abrão cooperando com reis pagãos a fim de resgatar Ló, e logo após se juntando a um culto feito por um sacerdote estrangeiro, há um contraste bem mais óbvio e impressionante dentro desta estória (Gn 14.17-24). Depois da batalha, o rei de Sodoma se aproxima a Abrão (v. 17). Antes de sabermos de suas intenções, Melquisedeque aparece (v. 18), identificado como um sacerdote estrangeiro. Abrão participa de uma refeição (o auge da comunhão), aceita a benção de Melquisedeque e, ao ouvir que é o Deus de Melquisedeque (El Elyon) que deu vitória a Abrão, ele não discute sobre ou atribui vitória a Yahweh, mas sim dizima aos cofres deste Deus estrangeiro (v. 18-20). Quando o rei de Sodoma, não um sacerdote, apresenta a sua oferta e deseja meramente dividir os espólios (o que poderia ser chamado de uma atividade secular segura), Abrão se recusa sem maiores explicações. Abrão agora mostra que ele não estava participando de um culto inter-religioso, mas identifica o Deus de Melquisedeque com o seu Deus, Yahweh. A benção de Melquisedeque e a declaração de Abrão enfatizam que Abrão está copiando a fórmula de Melquisedeque ao pé da letra. Não poderia ser mais claro: Melquisedeque adora El Elyon, o Deus Altíssimo, o criador dos céus e da terra, e Abrão nos diz que este Deus é Yahweh, El Elyon, o Deus Altíssimo, o criador dos céus e da terra, a quem Abrão faz juramentos. E qual é o conteúdo desse juramento? Aceitar nada do rei pagão de Sodoma. Temos aqui o javismo exclusivo em sua forma mais dura. Ademais, Abrão copiar a fórmula de Melquisedeque questiona a afirmação de “que Abrão e o próprio Gênesis reconhecem que Malkisedeq [sic] (e presumivelmente outras pessoas em Canaã que adoravam El sob uma manifestação ou outra) servem ao Deus verdadeiro, mas não conhecem tudo que poderia ser conhecido sobre esse Deus”.[5]

Em segundo lugar, parece haver uma conexão intencional que pode e deve ser estabelecida entre o nome dado a Yahweh por Abrão e Melquisedeque, “Criador dos céus e da terra” (14.19, 22), e a terra de Canaã que foi prometida a Abraão por Yahweh no capítulo anterior (13.15, 17). É a terra de Yahweh: ele, e não outro deus rival em Canaã, a possui. Se essa conexão for feita, então pareceria perverso que, logo após receber essa promessa, e o que ela ensina a Abrão sobre a soberania de Yahweh, Abrão agora aceitasse o culto de Melquisedeque ao El cananeu sob o título explícito de “Criador do céu e da terra”.

Em terceiro lugar, e a nível de contexto canônico, precisamos entender o incidente em termos do que eu já afirmei metodologicamente no que diz respeito à unidade da Escritura, incluindo adotar uma versão do sensus plenior. Escrito num período “seguramente” reconhecido como exclusivamente javista, o Salmo 110 confere ao Rei prometido (que posteriormente é revelado como sendo Jesus Cristo; Mt 22.44-45; At 2.34-36) o sacerdócio eterno segundo a ordem de Melquisedeque. Pareceria totalmente contrário a essa exclusividade e “pureza” javista que tal promessa paradigmática fosse vista pela comunidade pactual como “contaminada” pelas associações cananeias.[6] Isso por acaso implica que a comunidade reconhecia o javismo autêntico de Melquisedeque? Semelhantemente, indo para o Novo Testamento, o fato de o sacerdócio de Jesus ser reconhecido como o que traz a “perfeição” (Hb 7.11) não quer dizer que os critérios estabelecidos com Melquisedeque (um rei-sacerdote com a aparência de eternidade, superior a Abrão, fora do sacerdócio de Levi) necessitam teologicamente que o seu sacerdócio seja propriamente javista?

Retornando a Gênesis 14 em si, o incidente Melquisedeque é novamente uma instanciação e um antegosto do princípio universalista de que Abraão seria uma benção às nações.[7] Isso destaca novamente que, se é para explicarmos a diferença entre as administrações patriarcal e a mosaica, ao invés de localizarmos essa diferença no relaxamento da antítese fundamental entre a descendência da mulher e a descendência da serpente, precisamos focar na delimitação geográfica mais ampla da primeira, que posteriormente seria confirmada e cumprida na vinda de Cristo:

A história dos patriarcas é mais universalista do que a do período mosaico. Quando o povo se organizou numa base nacional e se isolou das outras nações pelas estritas regras isolacionistas da lei, o desígnio universalista foi forçado de certa forma para o pano de fundo. Aliás, por meio do conflito entre o Egito e os hebreus, a relação real com o mundo externo se tornou conflituosa. No período patriarcal, o oposto era verdadeiro. Pouco era feito para tornar a vida do povo de Deus, mesmo num sentido religioso externo, diferente da vida do ambiente.  Nenhum sistema cerimonial de larga escala foi estabelecido para enfatizar essa distinção. A circuncisão era o único rito instituído, e já que também foi praticada pelas tribos circunvizinhas, até ela não diferenciava realmente. E positivamente também, os princípios com que Deus lidava com os patriarcas eram de uma natureza altamente espiritual, de forma que isso os faria universalmente aplicáveis. O raciocínio [Gl 3.15] é substancialmente o seguinte: por meio da diatheke com Abraão a relação entre Deus e Israel foi posta no fundamento da promessa e da graça; isso não pode ser mudado subsequentemente, porque o arranjo mais antigo continua vigente para as instituições posteriores [v. 15] e a lei tinha nada menos do que 430 anos a menos do que o berith abraâmico. A religião revelada do Antigo Testamento nesse aspecto se assemelha a uma árvore cujo sistema de raízes e cuja copa se estende para longe, enquanto que o tronco da árvore confina a seiva a certa distância dentro de um canal estreito. O período patriarcal corresponde ao crescimento da raiz; a copa que se expande livremente à revelação do Novo Testamento; e a forma relativamente restrita do tronco da árvore ao período de Moisés até Cristo.[8]

É correto ter cautela quando se especula sobre o pano de fundo de Melquisedeque, dado não só o que eu já disse sobre tentar “ir por detrás” ou “ir além do” texto da Escritura,[9] mas também considerando a importância teológica de seu caráter enigmático em Hebreus 7.3. Todavia, ao invés de especular sobre e depois sublinhar o pano de fundo pagão de Melquisedeque e assim o “endosso” de Abraão de sua religião em sua combinação de “Yahweh, El Elyon”, outra explicação, que é igualmente plausível, creio eu, novamente leva em consideração o contexto religioso de Gênesis 1—11. Podemos notar tanto a natureza revelada dessa descrição divina conjuntamente com um reconhecimento de que, nesse estágio na história humana, o conhecimento de Deus, criação, queda e dilúvio ainda estava fresco em certas camadas da humanidade. Levando isso em conta, podemos dizer que, embora Melquisedeque não estivesse “no círculo recém-formado da eleição”, ainda assim ele “era um representante de um conhecimento anterior, pré-abraâmico de Deus. Sua religião, ainda que imperfeita, não era de forma alguma identificada com o paganismo médio das tribos”.[10] Calvino diz que “em meio às corrupções do mundo, somente ele era, naquela terra, um cultivador e guardião reto e sincero da religião”.[11] Melquisedeque, portanto, não é um recipiente meramente da revelação geral, mas da revelação especial “remanescente” possivelmente passada adiante por transmissão oral.[12] Alternativamente, num tempo onde a revelação direta de Deus era normativa e recebida por vários canais, Melquisedeque pode ter recebido algum tipo de revelação que o levou a começar a adorar a Yahweh, assim como foi o caso de Abrão (Gn 12.1). Nenhuma dessas opções pode ser provada de forma conclusiva, mas nem merecem elas ser descartadas a priori, e, no contexto de Gênesis e do cânon, elas certamente fazem mais sentido teologicamente.

O saque a pilhagem dos outros reis por Abrão, conjuntamente a sua comunhão com Melquisedeque, apontam para o status especial desse rei-sacerdote. Dada a relevância teológica posterior concedida a Melquisedeque na história da redenção, seria bem mais plausível que o seu pano de fundo não fosse pagão e politeísta, mas sim que ele legitimamente adorava o único Deus verdadeiro sob o título e descrição legítimos e revelados de El Elyon, Deus Altíssimo.[13]

(Trecho do livro de Daniel Strange, A rocha deles não é como a nossa Rocha: uma teologia das religiões, p. 196-202, o qual será publicado pela Editora Monergismo em 2018)

Traduzido por Guilherme Cordeiro.

 

[1] Gerhard von Rad, Genesis: A Commentary (London: SCM, 1961), p. 175.

[2] Daniel Strange, The Possibility of Salvation Among the Unevangelised: An Analysis of Inclusivism in Recent Evangelical Theology (Carlisle: Paternoster, 2001), pp. 179–189. Mais recentemente, tratando do incidente Melquisedeque, temos o teólogo pentecostal inclusivista Amos Yong: “Uma vez que Melquisedeque era sacerdote de El ‘Elyon, pode também se dizer que ele era ‘o Sumo-sacerdote da religião cósmica’ e que dessa forma ele representou e antecipou como os anseios religiosos e talvez até crenças e práticas de todos os povos estão orientados para Deus? Será que podemos ir mais e longe e sugerir que o ‘sacerdócio eterno [de Melquisedeque]’, consumado no ministério de Cristo, está por detrás do chamado da igreja como comunidade-testemunha dentre e por, não contra, outras comunidades-testemunha”? Será que Melquisedeque pode simbolizar o estrangeiro com quem temos mais afinidade do que percebemos, e que a sua religião pode ser a religião do estrangeiro que é preservada, ainda que obliquamente, na sabedoria de culturas e tradições do antigo Oriente Próximo e que antecipa a religião de Cristo testemunhada em muitas línguas do Espírito?” (Amos Yong, Hospitality and the Other: Pentecost, Christian Practices, and the Neighbor [New York: Orbis, 2008], p. 117).

[3] Devo esse termo e alguns comentários a seguir a Nathan Weston. Embora não sejam de forma alguma monolíticos, os seguintes podem ser citados como parte dessa categoria: Goldingay, Genesis for Everyone; Goldingay e Wright, ‘Yahweh Our God’; Gerald R. McDermott, Can Evangelicals Learn from World Religions? Jesus, Revelation and Religious Traditions (Downers Grove: InterVarsity Press, 2000); Don Richardson, Eternity in Their Hearts, 2ª ed. rev. (Ventura: Regal, 1981).

[4] A trajetória missiológica aqui (aplicada com níveis variados de certeza) é que esse incidente é ilustrativo, análogo e até paradigmática para aqueles que não entraram em contato com o cristianismo ao longo da história, “um ponto de partida estabelecido por Deus para reconhecer que o ato e revelação definitivos de Deus são encontrados na estória de Israel que chega a seu clímax em Jesus” (Goldingay and Wright, ‘Yahweh Our God’, p. 43). No mínimo, muitas dessas leituras buscam demonstrar como Gn 14 evidencia que um encontro inter-religioso pode ser um processo bilateral. Assim como Deus acomodou o seu trato com os patriarcas em nomes e formas de divindade conhecidos em seu contexto cultural, da mesma forma “deve-se esperar que a igreja continue a crescer em entendimento … talvez auxiliada pelas revelações que Deus deu fora da igreja” (McDermott, Can Evangelicals Learn?, p. 117).

[5] Goldingay and Wright, ‘Yahweh Our God’, p. 48.

[6] Embora a sua solução seja completamente insatisfatória, Hermann Gunkel nota que “é bem improvável que a comunidade posterior, oposta a tudo que é pagão … buscasse o padrão para o sumo-sacerdócio num cananeu” (Hermann Gunkel, Genesis [Macon: Mercer University Press, 1997], p. 280).

[7] Esse é o entendimento de Vos, como é o de John Owen, que crê que Melquisedeque era descendente de Jafé: “Esta noticiosa prefiguração de Cristo às nações do mundo, ao mesmo tempo em que Abraão recebeu a promessa para ele e a sua posteridade, avalizou um chamado futuro para os gentios para um interesse e participação nele” (John Owen, An Exposition of Hebrews, 4 vols. [Marshallton, Del.: National Foundation for Christian Education, 1969], vol. 3, p. 300). No mesmo sentido, John Sailhamer nota que tanto Melquisedeque quanto Jetro (sacerdotes fora da comunidade pactual) se encontram respectivamente com Abrão e Moisés antes de Deus estabelecer a sua aliança com eles, cumprindo assim os seus propósitos por meio de uma revelação pactual especial (e não geral): “a referência de Melquisedeque ao ‘Deus Altíssimo’ da criação mostra que o autor do Pentateuco quer traçar o plano de Deus para as nações a partir do plano de Deus para a criação. Essa é a primeira ligação real entre criação e pacto ou criação e redenção no pacto do Pentateuco … as palavras de Melquisedeque a Abraão revelam o seu entendimento da benção criacional que Abraão está prestes a herdar. Melquisedeque reintroduz no Pentateuco a noção de que Deus usará as nações do mundo para promover os seus planos de benção por meio da ‘descendência’ de Abraão. Nesse planejamento, a intenção de Deus é de abençoar ‘todas as nações’ (Gn 12.1-3)” (Sailhamer, Meaning of the Pentateuch, p. 372).

[8] Vos, Biblical Theology, p. 79.

[9] Como nota Meeter: “É importante notar a brevidade do relato. Nada nos é dito, quer aqui quer em outro lugar, sobre sua história prévia ou seguinte. Nada sabemos sobre o seu nascimento, ou sobre outros incidentes na sua vida, ou sobre a sua morte. Como uma figura no antigo diorama, a figura de Melquisedeque em Gênesis vem do que não é visto, ocupa a atenção do olho por um momento, só para ser passada adiante para a região do que não é visto” (H. H. Meeter, The Heavenly High Prieshood of Christ: An ExegeticoDogmatic Study [Grand Rapids: Eerdmans, 1915], p. 57).

[10] Vos, Biblical Theology, p. 77.

[11] Calvin, Genesis, p. 130.

[12] Essa também é a posição de Carson quando comenta sobre Wright e Goldingay: “Quando a passagem sobre Melquisedeque é colocada dentro da narrativa progressiva do livro de Gênesis, não se pode mais pensar da emergência do monoteísmo somente após lutas sem fim com o politeísmo pagão. É bem mais natural supor na leitura do relato que ainda há pessoas que criam no único Deus verdadeiro, pessoas que preservaram algumas memórias da autorrevelação graciosa de Deus a Noé, pessoas que reverenciavam a memória da severa lição de Babel. Melquisedeque designar ‘Deus Altíssimo’ como ‘Criador dos céus e da terra’ aponta na mesma direção: ele era ou monoteísta ou henoteísta. É claro, Abrão ainda era quem recebeu o chamado especial de seguir a Deus e encabeçar a raça que se tornaria uma benção para todas as nações da terra. Mas isso não significa que ele era o único que acreditava no único Deus verdadeiro” (Carson, Gagging of God, p. 250). Ver também aqui o comentador judeu Nahum Sarna: “Ele [Melquisedeque] é patentemente considerado um monoteísta, um dos poucos e seletos indivíduos não israelitas que, na visão escriturística, preservaram o monoteísmo original da raça humana diante da degeneração em direção ao paganismo que, de outra forma, seria universal” (Nahum M. Sarna, Genesis, JPSTC [New York: Jewish Publication Society, 1989], p. 109).

[13] Sendo El o apelativo comum para “deus” e o adjetivo “altíssimo” sendo usado em outro lugar do AT, seu sentido reforça o que eu disse anteriormente sobre a singularidade transcendente de Yahweh. Deve se notar que, embora alguns sejam rápidos para equacionar El Elyon como o cabeça do panteão cananeu, a frase “El Elyon” não aparece fora de Gn 14 quer no AT quer na literatura cananeia. Ver Bruce K. Waltke, Genesis: A Commentary (Grand Rapids: Zondervan, 2001), p. 233 [Edição em português: Gênesis. São Paulo: Cultura Cristã, 2010].