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Fermento na farinha

Esta é a terceira de quatro partes sobre o tema da escravidão americana e das relações raciais modernas. Estou chegando à minha conclusão, na qual reafirmarei e expandirei uma variação do pedido de perdão estendido ao Thabiti no decorrer de nossas interações. Mas por que toda essa preparação de antemão? Bem, se eu pedir perdão por x, e se alguém me ouvir pedindo perdão por x, y e z, então estarei em apuros (apenas algumas semanas depois) se eu reincidir reafirmando y e z novamente. Portanto, considere este artigo e o anterior como uma reafirmação preliminar de y e z.

O que eu quero fazer aqui é apresentar, de forma resumida, uma declaração sobre o que eu realmente acredito em relação ao ensino do Novo Testamento sobre a escravidão. Quero fazer isso como se fosse a primeira vez que digo algo sobre o assunto. Não considero isso uma peculiaridade pessoal minha, mas sim como o ensino das Escrituras, ordenado a todos nós — vermelho e amarelo, preto e branco. Acredito que a exegese cuidadosa exija isso.

A doutrina da suficiência das Escrituras é abstrata se nunca fundamentarmos o que estamos dizendo no texto. Então, em minha mente, o cerne de todo esse debate diz respeito à ela. É fácil proclamar a doutrina da suficiência, até que ela o coloque em apuros e, geralmente, eles surgem quando se chega ao ponto de aplicações contestadas.

Agora, a Escritura só pode ser suficiente para cada contingência se for o próprio sopro de Deus. Mas se acreditamos que ela é inspirada dessa maneira, então, devemos estar determinados, como cristãos, a viver e morrer por ela. Quando estamos em situações que nos parecem absolutamente intratáveis, sejam elas individuais ou culturais, devemos recorrer à Bíblia para obter instruções sobre como devemos responder. Como então viveremos?

Há muitas direções que essa discussão poderia tomar, e não me importo de lidar com elas no momento apropriado. Mas há apenas uma questão realmente essencial. O que dizemos quando abordamos essa questão determinará se uma discussão mais aprofundada será produtiva.

Essa questão essencial não nos obriga a comparar as condições históricas do cotidiano dos escravos romanos e americanos. Por acaso, acredito que a escravidão americana (tal como era juridicamente estruturada) era pior em certos aspectos-chave, e que a escravidão romana (tal como era juridicamente estruturada) era pior noutros. Como exemplo do primeiro, considere as condições horríveis sofridas pelos escravos na passagem do meio[1]. Considere a autoridade absoluta dos paterfamilias como um exemplo do segundo — os proprietários de escravos americanos eram juridicamente constrangidos de maneiras que os romanos não eram. Mas tais comparações detalhadas não são realmente necessárias para o meu argumento — tal comparação só seria relevante se qualquer um dos sistemas exigisse o abuso de escravos.

Como o abuso não era obrigatório (em Roma ou na América), era possível que um cristão dono de escravos desse atenção às instruções atenuantes apresentadas pelo apóstolo Paulo. Em ambos os sistemas, os donos de escravos tinham a liberdade de tratar bem seus escravos. Isso obviamente incluiria tratá-los conforme seus líderes na igreja exigiam. A obediência no meio de um sistema corrupto e caído foi, portanto, possível em 50 d.C. e em 1850 d.C.

Se não fosse possível, os apóstolos não teriam dito a ninguém para fazê-lo. Isso significa que era possível que um homem na Carolina do Sul tratasse seu escravo exatamente da mesma maneira que Paulo exigiu que Filemom tratasse Onésimo. E a única pessoa a quem eu estaria disposto a defender e apoiar é quem estivesse disposto a fazer isso.

Além disso, não há razões para se exigir que aceitar a obediência em circunstâncias como estas seja uma aprovação de toda a desobediência circundante. Dizer que a obediência era justa não é dizer que a desobediência também era justa.

Assim, os apóstolos foram confrontados com uma circunstância em que escravos e proprietários de escravos eram membros de suas igrejas. Quando isso aconteceu, o que eles disseram a todos para fazer? Como eles lidaram com isso? Este era um problema tão comum que foi explicitamente abordado em pelo menos sete livros do Novo Testamento. Aqui está em resumo:

Foi você chamado sendo escravo [doulos]? Não se incomode com isso. Mas, se você puder conseguir a liberdade, consiga-a. Pois aquele que, sendo escravo [doulos], foi chamado pelo Senhor, é liberto e pertence ao Senhor; semelhantemente, aquele que era livre quando foi chamado, é escravo de Cristo. Vocês foram comprados por alto preço; não se tornem escravos [doulos] de homens. Irmãos, cada um deve permanecer diante de Deus na condição em que foi chamado (1Co 7.21-24).

Escravos [doulos], obedeçam a seus senhores [kyrios] terrenos com respeito e temor, com sinceridade de coração, como a Cristo. Obedeçam-lhes não apenas para agradá-los quando eles os observam… (Ef 6.5-6a).

Vocês, senhores [kyrios], tratem seus escravos da mesma forma. Não os ameacem, uma vez que vocês sabem que o Senhor deles e de vocês está nos céus, e ele não faz diferença entre as pessoas (Ef 6.9).

Escravos [doulos], obedeçam em tudo a seus senhores [kyrios] terrenos, não somente para agradar os homens quando eles estão observando, mas com sinceridade de coração, pelo fato de vocês temerem ao Senhor (Cl 3.22).

Senhores [kyrios], dêem aos seus escravos [doulos] o que é justo e direito, sabendo que vocês também têm um Senhor no céu (Cl 4.1).

Todos os que estão sob o jugo da escravidão [doulos] devem considerar seus senhores [despotes] como dignos de todo o respeito, para que o nome de Deus e o nosso ensino não sejam blasfemados. Os que têm senhores [despotes] crentes não devem ter por eles menos respeito, pelo fato de serem irmãos; pelo contrário, devem servi-los ainda melhor, porque os que se beneficiam do seu serviço são fiéis e amados. Ensine e recomende essas coisas (1Tm 6.1-2).

Ensine os escravos [doulos] a se submeterem em tudo a seus senhores [despotes], a procurarem agradá-los, a não serem respondões e a não roubá-los, mas a mostrarem que são inteiramente dignos de confiança, para que assim tornem atraente, em tudo, o ensino de Deus, nosso Salvador (Tt 2.9-10).

Talvez ele tenha sido separado de você por algum tempo, para que você o tivesse de volta para sempre, não mais como escravo [doulos], mas, acima de escravo [doulos], como irmão amado. Para mim ele é um irmão muito amado, e ainda mais para você, tanto como pessoa quanto como cristão (Fl 15, 16).

Escravos [oiketes], sujeitem-se a seus senhores com todo o respeito, não apenas aos bons e amáveis, mas também aos maus (1Pe 2.18).

Ora, existem três maneiras básicas de os crentes responderem a essas passagens. Uma delas é criar alguma versão de “isso foi naquele tempo, agora é diferente”. Isso é abandonar a suficiência das Escrituras, e não demorará muito para que os padrões bíblicos também sejam descartados em outras áreas. Eu só digo isso porque você pode ver esse tipo de coisa acontecendo praticamente em todos os lugares ao seu redor.

A segunda é a forma como muitos defensores da escravidão no Sul a interpretaram: argumentando que a escravidão foi designada por Deus como uma característica permanente nas relações humanas, mantendo, assim, tudo exatamente como estava (sem considerar qualquer ideia de gradualismo). Eles pegaram alguns trechos do filme e os analisaram minuciosamente, mas nunca assistiram o filme de fato.

A terceira maneira seria argumentar que a estratégia apostólica era na verdade um ataque subversivo à instituição da escravidão; um ataque por meio do gradualismo evangélico. Tudo o que pedimos, disseram os primeiros cristãos, é que seja permitido colocar o fermento aqui nessas três medidas de farinha.

Se você escolhesse essa terceira opção, então eu concordaria completamente e diria que é precisamente assim que tenho procurado aplicar essas passagens ao longo de toda essa controvérsia. Acredito que isso faz justiça ao sentido claro das palavras, ao mesmo tempo em que demonstra uma verdadeira confiança no poder e trajetória do evangelho para transformar todas as instituições humanas, inclusive aquelas que são verdadeiramente problemáticas.

E eu destacaria gentilmente que argumentar a favor de subverter pacificamente uma instituição até que ela seja completamente extinta — e graças a Deus por isso — não é a mesma coisa que defender essa instituição.

Em suma, quando se trata de escravidão na América, não há espécie de crueldade, indelicadeza, malícia, dureza de coração, insensibilidade, ganância, avareza, presunção, luxúria, maldade, arrogância ou orgulho que eu esteja disposto a defender ou explicar. A única coisa que pode lidar com tais pecados é o sangue de Jesus Cristo.

Mas sei que posso ser acusado de cumplicidade com tais pecados na história por causa do gradualismo, por conta do meu gradualismo evangélico. Na medida em que consegui ecoar o ensinamento dos apóstolos sobre esse ponto, estou disposto a ser incompreendido e representado de forma equivocada, assim como eles foram. Acredito que a Bíblia é a Palavra de Deus, e acredito que ela é suficiente para desfazer qualquer confusão.

Mas, na medida em que ofendi desnecessariamente os irmãos que não estavam envolvidos nos erros que tenho abordado — porque expliquei essas verdades de uma maneira que teria feito o apóstolo Paulo corar — quero ser “fácil de se conciliar”, como disse Tiago (Tg 3.17 TB), e quero estar pronto para corrigir o que é necessário. E como um pedido de perdão geralmente não é melhorado quando sobrecarregado com “explicações” adicionais, eu já expus antecipadamente o que precisava ser dito. E é por isso que meu próximo artigo será um sincero pedido público de perdão, apresentado e identificado como uma retratação.

Tradução: Isaias Lobão
Revisão: Thiago McHertt

Texto escrito originalmente em 2013: https://dougwils.com/books-and-culture/s7-engaging-the-culture/those-passages.html


[1] A “passagem do meio” se refere à fase central do comércio triangular atlântico durante os séculos XVI ao XIX. Nessa etapa, os navios europeus transportavam escravos africanos das costas africanas para as colônias nas Américas, formando o segundo segmento do triângulo de comércio que também incluía a Europa e a África. [N. do T.]