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Imaginando um secularismo “aberto” (Charles Taylor com James K. A. Smith) A intersecção entre ideias e vida pública para entender a nossa “era secular”

O que significa dizer que vivemos numa “era secular”? Essa é a questão chave do livro amplamente debatido, Uma Era Secular,1 um tomo de 900 páginas que às vezes faz com que o Capital de Thomas Piketty pareça uma leitura de praia. Para entender o nosso presente, Taylor enfatiza, precisamos entender o nosso passado. Como chegamos a esse ponto no Ocidente? Como saímos de um mundo em 1550 onde era virtualmente impossível não crer em Deus para um mundo em 2014 onde, em certos influente enclaves de elite, é virtualmente impossível crer em Deus? O que mudou? E quais foram as implicações para a sociedade?

O interesse de Taylor não é só antiquário, e ele não aproxima tais questões como charadas meramente acadêmicas. Há implicações existenciais e políticas para como nós organizamos a nossa vida juntos, incluindo como (ou se!) damos espaço para a expressão religiosa e as comunidades religiosas em sociedades “seculares”. Então Taylor, um professor de longa data da Universidade McGill em Montreal, também tem se envolvido pesadamente em debates no Canadá, no Quebec mais especificamente, sobre o lugar da fé religiosa na esfera pública. Nosso editor [da Revista Cardus], James K. A. Smith, cujo livro, How (Not) To Be Secular: Reading Charles Taylor [a ser publicado pela Editora Monergismo], foi publicado ainda este ano [em 2014], gozou da oportunidade de sentar com o Professor Taylor e discutir a intersecção entre ideias e vida pública quando se trata de entender a nossa “era secular”.

***

James K. A. Smith: Ao mesmo tempo em que você estava provavelmente refinando este livro [Uma Era Secular], depois de ter empregado o seu material nas Gifford Lectures, você recebeu outra convocação do governo de Quebec para ser parte da La Commission de consultation sur les pratiques d’accommodement reliées aux différences culturelles (Comissão para consulta sobre as práticas de acomodação relacionadas a diferenças culturais).

Charles Taylor: Isso aconteceu imediatamente depois de Uma Era Secular ser finalizado.

JS: Isso foi parte do motivo pelo qual você foi chamado [para ser copresidente da Comissão]?

CT: Não. Eu fui chamado porque eu sou o tipo de cara que já foi bem envolvido com política aqui [no Quebec] e o Premier estava encurralado porque havia um partido minoritário que estava começando a se aproveitar desse mal-estar cultural dentre muitos quebequenses com relação a essas outras religiões O Premier é o Premier do Partido Liberal, que, por sua própria natureza, é diverso demais para tomar esse tipo de coisas em suas mãos, certo? Mas ele seria ultrapassado por esse outro partido nessa questão.

Então ele tomou a atitude mais estratégica politicamente: ele disse à oposição: “não discutam isso na eleição. Teremos uma comissão de especialistas”. A comissão de especialistas tinha de ter, politicamente, um independentista e um não-independentista. Então tinha esse sociólogo/historiador muito bem-conhecido, Gérard Bouchard, irmão do Premier anterior. Então tinha eu mesmo, que tinha certo prestígio como um filósofo e pensador e que era politicamente ativo, eu tinha concorrido para o Parlamento e assim por diante.

Então, politicamente, parecia ser um movimento bem inteligente e Gérard e eu vimos como um movimento inteligente. Dissemos: “estamos sendo usados, mas que bom!” [risada] Eles provavelmente não vão ouvir o relatório, mas vamos colocar ali um certo número de princípios, o que vai ser divulgado. E é claro que quando a questão finalmente foi levantada novamente ano passado [por causa da proposta da “Carta de Valores de Quebec”], o nosso relatório ajudou. Pois pelo menos nós éramos convidados o tempo todo pela mídia, então nós realmente podíamos bater essa Carta horrorosa. Não vencemos; eles se derrotaram!

JS: Então, na verdade, isso foi uma maravilhosa oportunidade providencial (como um calvinista diria!), você ser convidado para esta comissão, logo após você terminar todo esse trabalho teórico. Você viu dessa forma também, como uma oportunidade?

CT: Absolutamente sim

JS: Você se surpreendeu então sobre quão rapidamente após emitir o seu relatório algo de tão curta duração quanto a Carta de Quebec foi apresentada?

CT: Não, porque nós já tínhamos previsto na época. Sabe, a Parti Québécois [o partido separatista no Quebec] começou com René Levésque, que eu conhecia e era meu amigo, com uma visão totalmente diferente. Até o ponto das pessoas falarem a ele: “Olha, o nacionalismo dos Québécois é estreito demais em alguns pontos; você não está piorando as coisas?” Seu argumento era: “não, se nós realmente o expressamos nesse projeto político, podemos ir além de toda essa estreiteza”. Eu nunca pensei que fosse necessariamente funcionar, mas era isso que ele queria.

Sob [Lucien] Bouchard, o irmão de [Gerard] Bouchard, isso foi reafirmado de uma maneira muito forte. Mas sempre houve um movimento no partido que queria funcionar num nacionalismo cultural. Isso é realmente o que compensa! E então aquele partido minoritário, o ADQ, seguiu essa agenda e na eleição subsequente eles se tornaram a Oposição, e a Parti Québécois ficou em terceiro lugar. A Madame Marois, a líder naquela época, disse: “Nunca mais! Vamos seguir essa agenda agora!”

Podíamos esperar por isso. Quando vimos a Madame Marois e outros diante de nós na Comissão, ficou bem claro que ela não estava gostando.

JS: Nesse relatório você defende o que chama de “secularismo aberto”. Qual é o termo contrastante então? É o secularismo “fechado”?

CT: Bem, é isso que queríamos que ficasse sugerido às pessoas. Mas os outros caras queriam chamar a alternativa de secularismo real!

JS: Porque o secularismo aberto afirma os princípios da neutralidade estatal, da separação entre igreja e Estado, mas não é o que, eu acho, você antes chamou de secularismo “radical”. Não é um secularismo “fechado” porque ele realmente está tentando ser verdadeiramente neutro. Então ele não é antirreligioso.

CT: Certo.

JS: A Carta de Quebec seria o secularismo “fechado”?

CT: Sim, embora tenha algo sorrateiro nisso porque você não pode apresentar abertamente as motivações reais que fizeram a Carta popular. Na verdade, a motivação real foi o desconforto cultural. Mas você não pode só falar assim no mundo real: “você me deixa desconfortável, então por favor pare e vá embora”. Você precisa citar uma razão aceitável e violar as condições da sociedade moderna ao rejeitar o secularismo é uma razão tranquila para condenar alguém, então você se agarra nisso.

Mas para fazer isso você precisa redefinir o secularismo de uma forma indefensável. Ao invés de ser o regime que defende a liberdade de consciência de todo mundo, quer religioso quer não (o que eu chamo de secularismo “aberto”), ele se torna um secularismo preocupado com a religião e sempre disposto a colocar limites à ela. A ausência de religião se torna o princípio comum, embora você tolere a religião se ela permanecer no lugar dela.

JS: E você a privatiza.

CT: Você a privatiza e quando ela não aparece muito ela pode continuar, mas o vínculo comum é que estamos dedicados a algo que é incompatível com a religião, como “razão” ou “emancipação” ou qualquer outra coisa.

Mas no outro tipo de laïcité ou secularismo [isto é, o secularismo “aberto”] você realmente precisa tratar igualmente todos os tipos de religião e todos os tipos de não-religião; a religião e a sua ausência são tratadas da mesma forma.

JS: Então você ficou na verdade encorajado pela resposta a, e o fracasso da, Carta de Valores? Isso nos diz algo sobre a população? Isso nos diz algo sobre uma concepção mais popular desse assunto?

CT: Sim. Bem, ele nos conta algo que já sabíamos, mas foi mais longe: que as pessoas que possuem experiências reais com esses imigrantes, como as pessoas mais jovens em Montreal, como os meus netos que vão para uma escola francesa com pessoas do mundo todo e eles me dizem: “Vô, o que está acontecendo? Essas pessoas são malucas! Eu tenho um amigo chamado Ali … como eles podem se incomodar com isso?” Então são as pessoas de certa idade ou que vivem em certas partes do país onde eles nunca se encontraram com alguém que é diferente. Então essa emoção tem um prazo de validade e ele está ficando cada vez menor.

Foi realmente providencial. Eles se derrotaram com essa corrida maluca por um referendo. Fez com que a posição deles ficasse radioativa por um tempo. Quando eles voltarem a isso, eu creio, eu espero, estaremos prontos. Dedicamo-nos para isso. Eu sou parte de um grupo chamado de Québec Inclusif e nós nos dedicamos a trabalhar nisso, ir para a zona rural e acelerar o desenvolvimento de uma atitude mais aberta.

JS: Algumas pessoas podem se confundir com a noção de um secularismo aberto, porque eles identificam o secularismo com o tipo fechado, radical, agressivo. Mas o secularismo aberto é na realidade um respeito pela diferença que dá espaço para comunidades religiosas e expressão religiosa na esfera pública também.

CT: Veja, o problema é que o secularismo não é uma tradução totalmente perfeita de laïcité , certo? Laïcité tinha essa referência muito forte ao cenário francês. Agora, mesmo em 1904-1905 havia duas tendências muito fortes no cenário francês. Um deles era do tipo mais estrito, onde você quer expulsar todas as ordens religiosas e mais. A outra disse: “a coisa importante é liberdade de consciência. Isso é realmente a coisa principal”.

Estávamos trabalhando com base nessa [última] tradição porque é isso com o que as pessoas aqui estão familiarizadas e então prosseguimos, Jocelyn MacLure e eu, para desenvolver como expor isso. E o nosso ponto foi: haverá regimes diferentes em situações diferentes, mas o que é comum a seus princípios básicos é a igualdade estatal e o máximo de liberté de consciência. Vamos ver como faremos isso.

JS: Alguém pode se preocupar com que o modelo de liberdade de consciência já tenha em si um tipo de concepção individualista de fé?

CT: Bem, só se você ainda estiver preso em certo auto-entendimento, um bem comum, de que essas religiões devam ser vividas por sociedades inteiras e devam ser a base da unidade de toda a sociedade.

Agora, isso é bem compreensível. Os Estados Unidos são um pouco diferentes nisso porque ele em vez de ter uma denominação particular procura ser uma nação cristã para algumas pessoas. Mas se você for para o cenário europeu, tanto católico quanto protestante, você vai ver sociedades totalmente diferentes: sociedades totalmente calvinistas, sociedades totalmente católicas. Toda a ideia sobre o que era estar nessas posições de fé era de ser parte disso, de pertencer.

JS: Era, de certa forma, inerentemente comunitarista, certo? Ou pelo menos…

CT: Eu não me importo que seja “comunitarista” porque a vida da igreja é ela própria uma vida comunitarista. Mas nesses contextos europeus isso estava ligado à sociedade política. Esse é exatamente o problema com o secularismo mais estrito: secularistas estritos como os jacobinos não podiam visualizar qualquer outra estrutura. Então eles tiveram que trocar uma sociedade total por outra. Jogue fora a religião e coloque les droits de l’homme em seu lugar! Isso é o que constitui o secularismo estrito: como podemos funcionar enquanto sociedade se não concordarmos nesses pontos fundamentais?

JS: Você quer dizer que o secularismo estrito está normalmente fadado ao fracasso de não apreciar a robustez da sociedade civil fora do Estado?

CT: Isso pode ser injusto. Pelo contrário, é um jeito de pensar que o próprio Estado não pode funcionar da maneira correta a não ser que tenha essa ética a ele subjacente. Eu tirei boa parte disso de Jean Baubérot, um dos grandes historiadores franceses da laïcité. Na verdade, ele próprio é protestante, ele é da Eglise Reformeé e ele escreveu coisas brilhantes sobre as diferentes tendências. Ele ressalta que as pessoas pensam nisso como a religião civil: isso é o que nos une, isso é o que subjaz a ética política.

O ponto é, isso não é fácil, especialmente no contexto ocidental,m nós entendemos que precisamos de uma ética comum, nós precisamos de um conjunto comum de princípios, mas eles não podem ser coloridos quer por uma posição crente, quer por uma posição incrédula. Temos de deixar isso em aberto. Essa é a transição do secularismo fechado para o secularismo aberto. Em certo sentido, o secularismo fechado ainda está na mentalidade dos estados confessionais, só que com uma confissão diferente.

JS: Quais são os limites do secularismo aberto? No relatório de Acomodações, por exemplo, você diz: “igualdade de gênero é um princípio que é inegociável”. Podemos tentar pensar sobre um contexto americano, por um momento?

CT: Claro.

JS: Um secularismo aberto poderia dar espaço para comunidades religiosas, por exemplo, que ainda condenam o casamento entre pessoas do mesmo sexo?

CT: Ele deve, desde que não se negative as pessoas homossexuais. Mas a questão é que há outro princípio muito importante, que eu acho que não enfatizamos no relatório, mas que desde então se tornou muito importante de dizer, e eu o coloco como contra-argumento a Carta. Que não deveria existir um delit d’opinion. (Desculpa, estou suando exemplos franceses de novo!) Isso quer dizer que a sua opinião nunca deveria ser um crime, como foi durante a Revolução Francesa. Isso é algo que precisamos evitar.

Agora isso produz dilemas imediatamente. Então você tem esses casos nos Estados Unidos onde as pessoas se recusam a fazer certo tipo de negócio. Esses são bem difíceis de julgar. Eu não tenho uma chave geral para julgá-los, mas você precisa permitir ambos. Se um médico diz: “eu não posso realizar um aborto”, deve ser possível dizer: “Tudo bem, você chamou a atenção. Você ficou de fora daquela vez”. Outra coisa muito importante, e eu acho que não falamos dela o suficiente no relatória, mas que eu creio muito fortemente é que a vida política, a vida moral está meio que cheia de dilemas e você não para de ter dilemas só porque você tem a melhor fórmula para a uniformidade. Haverá dilemas onde houver esta fronteira entre a liberdade de consciência e permitindo os direitos dessas pessoas.

JS: Uma das edições mais recentes da Revista Comment foi dedicada ao tema do “comprometimento fiel”, que é um conceito quase incompreensível, mas quando eu ouço você dizer: “Olha, a vida política está cheia de dilemas”, também quer dizer que a vida política compartilhada está constantemente chegando a comprometimentos. Ela tenta discernir: como será que cada comunidade é livre para ser fiel no meio desses comprometimenos: Eu acho que o que preocupa algumas pessoas, e eu só agora estou ficando mais familiarizado com o contexto americano, é que os secularistas estritos estão cada vez menos dispostos a tolerar a diferença, ironicamente. Há na verdade menos respeito pela diferença e menos espaço para ter uma opinião errônea e nesse sentido o secularismo aberto na realidade estaria os chamando a terem uma visão mais generosa sobre a situação.

Você acha que há algo sobre o secularismo estrito, um tipo de secularismo agressivo, que está ficando mais militante justamente porque ele sente que está se tornando menos viável?

CT: Sim, eu acho que esse é um insight importante. Quer dizer, ei acho que pessoas como [Richard] Dawkins me lembram um pouco os bispos do século XIX desafiando Darwin. Por quê? Porque as pessoas carregam em suas sensibilidades inteiras alguma ideia sobre aonde estamos indo. Então naquele contexto do século XIX, onde havia uma ideia de que o Cristianismo estava se espalhando por todo o mundo, também estava se tornando mais razoável, porque mais protestante, e porque ele está associado à democracia e estamos chegando a níveis mais elevados.

Então chegou este torpedo. O Darwin foi um grande torpedo porque eu acho que esse tipo de fé cristã se associou com a ideia de design. Foi um design providencial arranjado por Deus para nós e isso que está acontecendo agora está obviamente o colocando em risco. Então essa ideia de design providencial é muito questionada pela natureza “revestida de vermelho, com unhas e dentes” {trecho do poema do inglês Tennyson “Tho’ Nature, red in tooth and claw”} e assim por diante.

E eu acho que isso é verdade para muitos secularistas hoje, pessoas como o Dawkins. “Achávamos que a religião estava desaparecendo e isso é ótimo. É exatamente o que precisávamos!” Então quando ela “retorna”, eles ficam tipo: “Isso é totalmente primitivo! O que vocês estão fazendo?!”

JS: Eles se tornam mais esganiçados, quase como que num último suspiro. O que você acha? Você acha que é mais ou menos, não sei se é o melhor termo, um secularismo “fundamentalista” ou algo do tipo, você acha que isso é um relato cada vez mais minoritário?

CT: Bem, depende, porque, veja, acontece que isso é um dos piores desenvolvimentos possíveis que sempre encaramos é uma polarização em que cada lado se comporta desse jeito. Então boa parte da Direita Cristã nos Estados Unidos estão nesse relacionamento polarizado, assim como uma boa parte dos muçulmanos islamistas estão num relacionamento polarizado com outros tipos de muçulmanos. Quando você tem esse tipo de polarização onde as pessoas realmente fazem coisas terríveis umas as outras, é bem difícil sair dele. As coisas poderiam piorar.

Por outro lado, há outro cenário, e eu não acho que um é mais provável do que o outro. O outro cenário é um tipo de mutação em nosso entendimento do lugar do espiritual na vida humana (que é o que eu realmente estou tratando nesse livro), onde vamos totalmente além do que chamamos de “Cristandade”, que é a ideia de que precisa ser a sociedade inteira e nós vemos que a fé cristã andando num mundo em que há grandes diferenças, mas há também algo a se respeitar nelas, há algo a se aprender delas. Mas acima de tudo devemos ser nós mesmos. Temos de viver a nossa própria fé.

O foco não deveria estar na crença porque, embora a crença seja importante, ela é secundária. Sabe, a razão pela qual ou qualquer outra pessoa é cristã é porque eu vejo um caminho aqui nos levando até Deus. Isso é o que importa.

Eu também acho que precisamos reabilitar um entendimento anterior de fé como uma jornada. Você tem isso em Gregório de Nissa e em Agostinho e assim em diante. Então nós não conhecemos realmente a Deus! Nós não conhecemos realmente, então por que você está pegando essas fórmulas e socando elas nas cabeças da pessoas? Não, viva a sua fé! Tente fazê-la frutificar na sua vida e nas vidas daqueles perto de você.

JS: Há tantas visões diferentes, quase jornalísticas, sobre o seu momento atual, não é? Quase depende dos pressupostos que as pessoas trazem, mas você consegue imaginar um Cristianismo que desistiu desse tipo de projeto de Cristandade axiomática ainda tendo atração renovada na nossa era contemporânea?

CT: Definitivamente. Sabe, eu estou vendo isso ao meu redor.

JS: Você está vendo isso?

CT: Ó, sim! Absolutamente! Sabe, eu pertenço a esse movimento, Meditação Cristã, que remonta a John Main e eu recebo suas newsletters. Está se espalhando como fogo em palha por todo o mundo em todo tipo de país. Mas aqui no Quebec … veja, você tinha essa igreja bem, bem autoritária até os anos 60 quando ela racha. A geração do que chamamos de “Revolução Silenciosa” fez essa ruptura … bem, alguns deles, você não consegue nem falar com eles. “La religion c’est la tyrannie!” , eles reclamam.

Mas então você vai mais embaixo …

JS: … para a próxima geração?

CT: Sim, e eles não estão se libertando da Curé (risos). Não há Curé no caso deles, então eles não podem se libertar. Mas eles estão procurando por algo.

JS: E a liberação deles pode na verdade se parecer com procurar algo que os guia.

CT: Sim, exatamente!

JS: Que os canaliza.

CT: É isso aí, que é contra jogar tudo fora. Então você tem algo muito interessante … Sabe, eu sou convidado por muitos grupos de jovens católicos para falar sobre esse tipo de coisas e eles estão muito imersos nessa onda. A sociedade moderna é uma sociedade bem diversificada em que há muitas pessoas buscando algum direcionamento espiritual e elas são diferentes, mas não vamos começar a brigar por causa disso, vamos começar a conversar sobre e até ajudar e encorajar uns aos outros.

JS: Isso é porque você acha a comunidade Taizé tão intrigante também.

CT: Sim, Taizé já era isso.

JS: No coração de uma Europa “secularizada”, certo?

CT: Sim. Veja, eu tenho algumas crianças que foram a Taizé e trabalharam ali por um tempo. Certa vez eu visitei a minha filha em 1988 e fiquei chocado. Sabe, eu já tinha muita admiração pelo Irmão Roger e tudo mais, mas ir para lá me deixou chocado com tudo. Eu pensei: “esse é o modelo”.

JS: Em Uma era secular você diz: “Olha, não tem volta”. O mundo está desencantado. Mesmo se reencantarmos o mundo, não podemos desfazer o fato de termos passado por esse desencanto. Eu estou pensando que, por um lado, você, menos do que qualquer um, gostaria de ter uma narrativa de declínio linear severo sobre isso. Então você consegue imaginar que … será que podemos até esperar que o humanismo exclusivo vai se provar insuficiente?

CT: Ó, sim, o tempo todo! Sabe, tem muita gente que não se conecta e as pessoas que se conectam, se vão ter alguma profundidade, descobrem que elas vão ter que desenvolver ele melhor.

JS: Não queremos fazer prognósticos, mas nada preclui o que seria uma renovação notável numa cultura que sentiu a claustrofobia de um giro fechado em nossa estrutura imanente, certo?

CT: Sim, absolutamente. Mas é difícil prever também porque, bem, aprendi muito com José Casanova aqui, eles são tão diferentes! Você tem a Alemanha Oriental onde a maioria das pessoas se declaram ateístas; mas então você também tem os Estados Unidos ou o Brasil! Eu visitei muitos desses lugares e conversei com as pessoas e você pode ver que coisas muito diferentes estão acontecendo.

Ou considere a Ucrânia. Agora, é claro que você tem por um lado essa reação terrível, que eu acho bem ruim por parte de alguns patriarcados como o de Moscou, que sabemos que martelaram: “Esta é a nossa tradição, isso é o que significa ser russo e se você não é assim, vocês não são realmente russos!” e assim por diante.

JS: Bem, eles sim precisam de um pouco de secularização!

CT: (Risos) É verdade.

Então você tem Ucrânia. Há três sucessores possíveis para a imagem da “Rus Kievana” [ou Principado de Kiev] de Vladimir batizando todo mundo no Dnieper. Há três possíveis: um é o patriarcado de Moscou; o outro é um tipo de patriarcado de Kiev, seria ucraniano. E o terceiro é a Igreja Católica Ucraniana. Agora, várias pessoas de todos esses três decidiram a coisa mais criativa sobre isso: “vamos viver juntos”. Então você tem o fenômeno bem extraordinário de que todas as três comunidades estão crescendo e elas estão crescendo por todo canto! Sabe, isso vai surpreender as pessoas à luz dos desenvolvimentos recentes: até a Igreja Católica está fazendo novas paróquias no Oriente. Agora, eu não sei o que está acontecendo com as pessoas que estão atirando, mas há um crescimento real, e isso se aplica a fés não-cristãs também. A sede por algum tipo de espiritualidade está crescendo sem obstáculos. Eu acho que tem um obstáculo na sociedade que teve um consenso de Cristandade bem poderoso e que foi quebrado, mas que é totalmente desacreditado como uma opção possível, então as opções parecem ser todas não-religiosas porque você não tem nenhuma outra opção de fé além dessa e isso não está certo.

Mas a Igreja Ucraniana poderia, a longo prazo, ser o futuro. Como aconteceu na Tchecoslováquia.

JS: Você precisaria desse espaço generacional como você tem agora no Quebec, de forma que a animosidade contra o regime anterior seja esquecida.

CT: Talvez mais de um espaço generacional! Para superar a ideia de que a fé cristã (ou qualquer outro tipo de fé, mas vamos dizer que seja a fé cristã), está de alguma forma intrinsecamente ligada com aquela situação particular e um regime muito poderoso de cima para baixo.

JS: Isso faz parte do testemunho comovente do Papa Francisco, conseguir dialogar com esse tipo de sede?

CT: Sim, é isso que parece estar acontencendo.

JS: Talvez uma das razões pelas quais as pessoas … Quer dizer, eu espero bem menos descontinuidade entre Bento e Francisco do que a mídia predominante tende a sugerir às vezes, mas eu suponho que uma diferença talvez é menor fixação por, como você disse antes, por crenças, crenças, e essa atenção ao i e ao til, e mais nesse tipo de experiência de Cristo, de jornada, de peregrinação.

CT: Sim, mas também o que vemos em Mateus 25: mais ênfase em fazer, mesmo se você não tiver a fé, você vai fazer e nós vamos lidar com isso. Isso, penso eu, é ótimo.

Mas para colocar em outros termos … Sabe, eu tenho muita admiração por Bento como um teólogo, não tem como evitar. Mas ele não entendeu de verdade o mundo em que ele estava, então ele tinha essa visão completamente reativa. Ele vê essa divisão de caminhos espirituais diferentes como relativismo e isso não é relativismo. Tem algo bem, potencialmente, fértil aí que a igreja cristã precisa levar em conta. Mas ele ficou tão envolvido com a ideia de que há inimigo está nos portões, invadindo, e que precisamos nos defender.

JS: Enquanto que Francisco talvez esteja tocando em algo que você mencionou antes, que é certa honestidade sobre o caráter provisório. O que soa como uma dádiva, se antes você experimentou a fé como uma experiência muito estreita e reprimida.

CT: Nós na Igreja Católica precisamos superar o nosso jogo de poder secular acerca do magistério, mas o papado em particular e talvez o Francisco nos ajude com isso.

JS: Me surpreende que, apesar de ser você quem cartografou o que nos levou à era secular, você parece esperançoso.

CT: Ó, sim!

JS: Qual é a fonte disso? Quais são os recursos para essa esperança? Qual é a forma dela?

CT: Bem, não sei. Sabe, eu tenho esperança … Eu tenho as minhas dúvidas e desesperos como qualquer um, mas eu também tenho essa fonte de esperança. Talvez seja … não sei se é, mas eu tenho muita sorte de ter nascido em 1931, de forma que eu tinha 20 anos em 1951, e ao mesmo tempo os teólogos que estavam preparando o Vaticano II, que eram principalmente franceses, e eu estou pensando particularmente no [Yves] Congar e no [Henri] de Lubac, a mensagem deles estava se espalhando e ela estava se espalhando no mundo francófano em particular, e se espalhando por meio das Ordens, num caso os jesuítas (de Lubac) e no outro caso a dominicana (Congar). Então eles chegaram ao Quebec, em grupos pequenos, sabe. Você sabe que Pierre Trudeau pertencia a Cité Libre, e nesses dias a Cité Libre era o ramo quebecano do Esprit. Vela, não sei se as pessoas sabem disso.

JS: Não! [risos] Eu, pelo menos, não sei!

CT: Então eu li Congar quando eu tinha 20 anos, eu li de Lubac quando eu tinha 21. Agora, eu nunca fui a favor do tipo de autoritarianismo que existia na igreja aqui. Eu ficava decepcionado com isso, mas subitamente eu estava vendo uma figura totalmente diferente do que a fé poderia ser.

JS: E você não teve que passar pela fase pródiga para chegar aí?

CT: Sim. Mas eu também não tinha nada em jogo naquela estrutura, que depois ruiu.

JS: Foi muito encorajador para mim ver teólogos da nouvelle théologie tendo atenção por todo o espectro, dos protestantes também.

CT: Parte do grande segredo da nouvelle théologie é que eles foram para trás. Veja, o contexto particular foi essa palavra horrível, o “modernismo” [risos], contra o qual todo mundo deveria se opor. Mas eles não viram que o anti-modernismo era ele próprio um tipo de modernismo.

JS: Sim, assim como o fundamentalismo protestante era o seu próprio modernismo, certo?

CT: Certo. Eles diziam que iam retornar aos pais, então ressourcée, e então nós voltamos e olhamos pro nosso caso. Cultivou um ponto de vista em que você é quase um contemporâneo de toda a história cristã. É claro que você não sabe de tudo, então você é contemporâneo só dos pedacinhos que você conhece. Agora, tem um lado místico disso que não entendemos completamente, mas essas vidas foram vividas em algum lugar por ali, impactando-nos. Mas em termos do que fomos influenciados a acreditar, somos contemporâneos de toda a história cristã. Então Gregório de Nissa é tão importante quanto o bispo local, tanto faz.

Agora, se você realmente consegue se fazer sentir isso, você não tem o mesmo senso de que tudo vive e morre aqui. Mas isso exige, e eu estou trabalhando nisso e ainda estou confuso sobre, isso exige outro entendimento da construção do reino na história. Veja, eu acho que tínhamos certo entendimento na era da cristandade, como era no seu fim, que se tornou um pouco fundida com a estória de progresso secular. Isso é o que eu estava dizendo antes: a noção de que o mundo está se tornando mais e mais cristão, mais democrático e tudo vai nesse sentido … Isso é o que construir o reino veio a significar, certo?

Enquanto que se você olhar para a parábola do grão de mostarda, é bem diferente. Quer dizer, o grão de mostarda é plantado e ele cresce e há grãos de mostarda diferentes por toda parte e eles não se encaixam num único movimento, e eles não impõem uma direção linear às coisas.

Então, num sentido, viver todos esses períodos é viver em todos esses grãos de mostarda em crescimento que você vê na história.

Então, você fica um pouco livre da ideia de que, aqui e agora, nós estamos fazendo toda a diferença e a preocupação é: “ó, se deixarmos esses caras passarem, então tudo vai por água abaixo!” [risos]

JS: Então, isso é provavelmente a diferença entre o que é uma esperança cristã verdadeiramente autêntica versus uma versão cristianizada de uma narrativa de progresso triunfalista, certo? Não são a mesma coisa. Se você acha que está participando da narrativa de progresso triunfalista, então tudo gira em torno do agora e sobre nós defendermos os portões neste momento.

CT: É verdade.

JS: Enquanto que no outro modelo que você está sugerindo, você dá um passo para trás e você percebe que Deus é fiel em todos esses lugares diferentes, de todas essas formas diferentes.

Eu gastei muito tempo ultimamente em investigar a Cidade de Deus, de Agostinho, e ele cultiva esse tipo notável de ambivalência santificada sobre o império. Por um lado, ele está olhando e vendo os lugares onde o Espírito está trabalhando. Por outro, ele não acha que o reino fica de pé ou cai com Roma. Há um certo afastamento que na verdade é libertadora nesse sentido.

CT: Então você se conecta com todas elas … quer dizer, os grãos de mostarda são como momentos em que alguém faz alguma coisa: “estava nu e vós me vestistes” e assim por diante. Eu acho que o que Francisco está falando sobre é plantar grãos de msotarda, de forma que você vive de acordo com aquelas que você conhece e você de alguma forma as traz para a sua vida. Essa é a esperança. Como tudo isso vai acontecer? Como eu vou saber! [Risos].

JS: Certo. Tudo que sabemos é que tem mais do que isso: há o venha o teu reino! Isso é belo e é um belo lugar para terminarmos. Muito obrigado por uma conversa tão rica.

CT: Bem, obrigado!

1Versão em português: Uma era secular. Trad. de Nélio Schneider e Luiza Araújo. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2010.