Lembre-se de Jesus Cristo, ressuscitado dos mortos, descendente de Davi, conforme o meu evangelho, pelo qual sofro e até estou preso como criminoso; contudo a palavra de Deus não está presa. (2 Timóteo 2.8-9)
Há um Deus, e nós somos sua criação. Sem dúvida, ele não é apenas um poder metafísico, mas também uma inteligência pessoal. Os cristãos pensam sobre Deus com uma ênfase sobre o fato que ele é uma pessoa, mas frequentemente pensar nele apenas parcialmente como um poder. Eles o chamam de poderoso, e até mesmo dizem que ele é onipotente, mas batem na própria boca – e na face de Deus – quando tentam distanciá-lo de ser a direta, total e única causa metafísica de todo o mal. A implicação é que há outro poder metafísico que constantemente rearranja o universo sem o controle imediato de Deus. É dito que esse poder funciona pela permissão de Deus, mas isso é o máximo até onde vão em termos de seu envolvimento.
O resultado é uma forma de dualismo, a visão que existem duas forças supremas – uma boa e uma má – que controlam o universo, e que estão em constante conflito uma com a outra. Essa é uma heresia que os teólogos cristãos condenam, mas eles mesmos propagam uma forma dela. Admitidamente, essa forma de dualismo não diz que as duas forças são iguais, mas que a força má está sujeita à “vontade permissiva” da força boa, e é a força boa que faz “decretos permissivos” para governar todas as operações da força má. Todavia, a força boa não exercita controle direto sobre tudo da criação, e por alguma razão não explicada, embora a força boa apenas “permita” a força má causar o mal, a força má é estúpida o suficiente para cumprir a agenda da força boa realizando o mal preciso da maneira e grau precisamente permitidos. Em nenhum instante a força má se abstém, só com o intuito de desafiar a força boa.
Sem dúvida, a teoria toda é absurda, mas é afirmada em alguma forma por muitos estudiosos de teologia, incluindo quase todas as versões de calvinismo, que alegam honrar a soberania absoluta de Deus. Mas essa forma popular de calvinismo fracassa inteiramente, e deve recuar em paradoxos e auto-contradições. Seus inimigos zombam corretamente dessa construção ridícula, embora geralmente tenham uma visão ainda mais debilitada da soberania de Deus. A única visão que é verdadeira à revelação bíblica e à razão necessária, e que evita o dualismo, é aquela que diz Deus exercer completo, ativo, direto e causativo (não permissivo) controle metafísico sobre tudo da criação, incluindo todas as ocorrências do mal. Deus é o autor do pecado e do mal. Não há nenhum problema nessa vida, pois não existe nenhuma lei divina declarando que Deus não deve ser o autor do pecado e do mal, e Deus é a própria definição de justiça; portanto, é algo justo que Deus seja o autor do pecado e do mal.
Embora os teólogos pensem em Deus como uma pessoa, eles falham em pensar nele como um poder total, a única força que pode criar algo, sustentar algo, e fazer qualquer mudança em qualquer coisa no universo, enquanto nós suas criaturas não podemos sequer tornar preto ou branco um cabelo da nossa cabeça (Mateus 5.36). Eles pensam nele não como um poder total que é também uma pessoa total, mas como nada mais que uma pessoa extremamente poderosa. Dessa forma, eles facilmente aplicam a ética humana sobre Deus, e o julgam por um padrão que eles julgam a si mesmos – eles negam que ele seja Deus. Em todo caso, se Deus não é esse poder total, então temos o dualismo. Mas se Deus é deveras esse poder total, e se existe mal no universo, então por necessidade lógica e metafísica, Deus deve ser o autor do pecado e do mal. Não há escapatória dessa conclusão. Qualquer coisa aquém disso é blasfêmia contra a natureza e majestade do Altíssimo. Essa blasfêmia é a tradição querida de quase toda a cristandade.
Assim, Deus é tanto um poder total como uma pessoa total, e uma pessoa com uma natureza moral. Ele faz distinção entre bem e mal, e define-os ao homem por seus preceitos e mandamentos. Mas o homem transgrediu esses preceitos e mandamentos, e isso é chamado pecado. A Bíblia diz que a culpa – isto é, não o sentimento subjetivo de culpa, embora isso possa ser verdadeiro também, mas a condenação objetiva – do primeiro homem foi imputada a todos os seus descendentes, a toda pessoa humana. Deus é um Deus de justiça, e ele está inclinado a punir todos os pecadores num lado de fogo por uma duração sem fim. Mas ele é também um Deus de misericórdia, de forma que mesmo antes de criar a humanidade, ele já tinha selecionado indivíduos específicos que ele resgataria do fogo do inferno. Ele realizaria isso enviando Deus o Filho para tomar uma natureza humana, para morrer nesta natureza humana pelos pecados desses escolhidos, e então ressuscitar dentre os mortos para a justificação deles diante de Deus. Esses indivíduos, então, seriam transformados de pecados a santos por meio do dom da fé e pelo poder do Espírito Santo.
Eles não sofrerão castigo pelos seus pecados, visto que Deus na carne, Jesus Cristo, pagou a penalidade deles. Como disse Deus por meio do profeta Isaías, “sou eu, eu mesmo, aquele que apaga suas transgressões, por amor de mim, e que não se lembra mais de seus pecados” (43.25). E disse por Jeremias, “porque eu lhes perdoarei a maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados” (31.34). Quão terrível é perceber a verdade que temos pecado, e que não há nada que possamos fazer para nos salvar. Mas então quão maravilhoso é aprender que Deus nos resgatou da penalidade que merecíamos tomando uma natureza humana e sofrendo o castigo em sua própria carne! É Deus quem concede fé e arrependimento, pois ninguém pode vir até que Deus o tenha escolhido e movido-o a vir. Se iremos a Deus por meio da fé em Jesus Cristo, então estamos numerados entre aqueles que foram salvos, salvos do fogo do inferno e destinados à glória celestial.
Esses versículos dizem que Deus não mais “lembrará” dos nossos pecados. De acordo com um pastor em Hong Kong, isso significa que Deus pega os nossos pecados e lança para trás dele, e quando Deus lança algo, isso continua em movimento para sempre. Mas a física newtoniana se aplica ao poder de Deus e aos nossos pecados? O pastor é agora o líder de uma seita. Então, um pregador carismático disse que nossos pecados são lançados no “oceano do esquecimento” quando Deus os perdoa. Mas quem se esquece? Deus? Desde então tenho descoberto que muitos evangélicos sustentam essa visão. Talvez eles deveriam se unir àquela seita em Hong Kong.
Como de costume, é necessário um teólogo reformado para refinar essa blasfêmia. Talvez isso seja injusto – a teologia reformada popular já está carregada com blasfêmias e contradições suficientes. Em todo caso, esse teólogo escreveu que embora o homem não possa por um ato de sua vontade esquecer o que ele fez, Deus é todo-poderoso e é capaz de fazer isso. Ele pode infligir amnésia sobre si mesmo. E por causa de sua graça, ele está disposto a fazê-lo. Ele pode literalmente perdoar e esquecer. Mas o idiota – quero dizer o teólogo, não o Deus com amnésia – esqueceu que isso contradiz a onisciência de Deus. Para ele, Deus deve ser misericordioso, e isso necessariamente significa amnésia, e Deus deve ser onipotente, e isso também significa amnésia. Mas ele não precisa permanecer onipotente. Ou talvez ele seja onisciente, pelo menos quando não estamos falando sobre perdão. Podemos afirmar tanto a onisciência como a amnésia divina? Maravilha, outra antinomia!
Lembrar frequentemente significa mais do que chamar à mente a mera existência de um objeto, mas também chamar à mente sua importância, e algumas vezes implica também tomar alguma ação que corresponda a essa importância. Eu posso lembrar que alguém me deve dinheiro no sentido que o fato está presente em minha mente, mas eu não preciso observar sua importância ou agir com base na importância desse fato. Eu não preciso exigir que ele me pague. Eu posso até mesmo esquecer a dívida, mas a menos que eu tenha amnésia, eu ainda lembrarei dela. Ou, alguém pode me pagar o dinheiro no lugar dele, de forma que ele não mais me deva, mas ainda assim eu lembrarei que ele uma vez me deveu dinheiro. Não haverá, contudo, nenhuma base para eu reforçar a importância da dívida, visto que ela já foi paga.
Deus sempre permanecerá onisciente. Por essa razão, ele sempre lembrará de todos os nossos pecados nos mínimos detalhes. Mas porque a dívida já foi paga por Jesus Cristo, Deus não nos condenará por eles, quer verbalmente acusando-nos deles, ou castigando-nos com o fogo eterno ou outro meios. Não há mais dívida a ser paga, mas a memória da dívida não pode ser apagada. De fato, seria desastroso Deus esquecer nossos pecados no sentido de ter amnésia. Isso abalaria todo o universo. E isso devido ao fato da encarnação, crucificação, ressurreição e ascensão de Jesus Cristo serem todos partes do plano da salvação, e salvação pressupõe pecado. A Deidade, ou pelo menos Deus o Pai, estaria desesperadamente confusa se esquecesse um dos passos cruciais que levam da criação à consumação. Imagine um Pai assustando que vê o Filho à sua destra e pergunta: “O que você está fazendo aqui? E por quê você tem um corpo? Por quanto tempo eu dormi?” Não há necessidade de continuar essa estupidez. Deus não se esquece. Ele lembra dos nossos pecados, mas não no sentido de agir com base na importância deles, visto que aqueles que creem em Cristo foram perdoados e justificados por seu sacrifício e justiça perfeita.
Quando Jesus instruiu seus discípulos a partir o pão em memória dele, ele não quis dizer que eles deveriam chamar à mente sua mera existência, mas antes a importância de seu sacrifício, simbolizado pelo partir do pão. Quando o homem que foi crucificado perto de Jesus pediu para o Senhor lembrar-se dele, ele não estava pedindo para Jesus chamar à mente sua mera existência como alguém que foi crucificado próximo dele. Antes, ele estava pedindo para Jesus chamar à mente o fato que ele confessou que Jesus era um homem inocente e que creu que Jesus possuiria o reino, e que Jesus deveria agir com base na importância dessa confissão. Jesus prometeu levar esse homem ao paraíso naquele mesmo dia.
Dessa forma, quando Paulo diz para lembrar-se de Jesus Cristo, ele não está sugerindo que Timóteo deveria chamar à mente sua mera existência. Embora seja provavelmente necessário lembrar aos cristãos de hoje que existe um Jesus Cristo, Timóteo não era dessa espiritualidade falida. Antes, a instrução de Paulo é para chamar à mente a importância de Jesus Cristo. Essa importância é explicada na mensagem do evangelho. Contrário a como algumas pessoas usam a palavra, o “evangelho” não é um mínimo extraído de todo o corpo de doutrinas bíblicas. O uso do Novo Testamento de fato parece focar-se sobre os eventos e ações redentivas associadas com Jesus Cristo, mas isso não sugere um mínimo.
Paulo insiste que ele declara aos seus ouvintes todo o conselho de Deus, ou a fé cristã completa. Algumas vezes ele mencionará um aspecto da fé para representar o todo, isto é, para focar a atenção sobre uma questão especialmente relevante ou para empregá-la como uma abreviatura, referindo a uma parte para representar o todo. Por exemplo, ele escreve o seguinte sobre a sua pregação aos coríntios: “Pois decidi nada saber entre vocês, a não ser Jesus Cristo, e este, crucificado” (1 Coríntios 2.2). Muitas pessoas, especialmente aquelas com preconceito anti-intelectual , interpretam isso como significando que Paulo não pregou um corpo inteiro de doutrinas bíblicas, e que ele não estava interessado em teologia ou em argumentos intelectuais, mas que ele pregava apenas o “evangelho”. Igualmente, não deveríamos estar tão interessados em doutrinas, mas somente em pregar o evangelho – ou para colocar isso em termos levemente pejorativos, pregar informação apenas o suficiente para empurrar as pessoas para o céu. Novamente, tal uso representa incorretamente o que o Novo Testamento quer dizer por “evangelho”.
Em todo caso, Paulo não menciona a ressurreição aqui em 1 Coríntios 2.2. De fato, embora ele mencione que Jesus foi crucificado, ele nem sequer diz que ele morreu como resultado disso. E nada é dito sobre Jesus morrendo por nossos pecados. Não são esses fatos partes necessárias do evangelho, mesmo como uma mensagem reduzida? Mais tarde na mesma carta, quando o contexto demanda isso, Paulo lembra aos coríntios que quando ele lhes pregou “o evangelho”, ele mencionou que Cristo morreu por nossos pecados, que ele foi sepultado, que ressuscitou ao terceiro dia, que apareceu a testemunhas, e assim por diante (veja 1 Coríntios 15.1-8).
Evidentemente, embora ele use “Jesus Cristo, e este, crucificado” como uma expressão que engloba tudo o que ele pregou aos coríntios (visto que ele diz ter resolvido não saber nada mais entre eles), isso é apenas uma representação (nem mesmo um resumo) do que ele pregou, quando o que ele pregou foi doutrinariamente muito mais extensivo do que a mera expressão por si só pode transmitir. Isto é, a expressão não tinha o intuito de ser entendida por si mesma, mas como uma representação de tudo o que foi pregado ao povo, que Paulo chama de “o evangelho”. A ideia de Jesus sobre pregação do evangelho é para o seus discípulos ensinar pessoas “a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei” (Mateus 28.20). Quando introduzindo a fé cristã aos incrédulos, e quando ensinando-a a crentes, deveríamos apresentar o máximo, e não o mínimo.
Aqui na carta a Timóteo, “meu evangelho” é representando, não resumido, por duas proposições que Jesus Cristo foi “ressuscitado dos mortos” e que ele era “descendente de Davi”.
Deus o Filho tomou sobre si a natureza humana, e essa natureza humana estava ligada à linhagem histórica de Davi, cumprindo as antigas profecias concernentes ao Messias. Então, homens o assassinaram. Ele foi morto fisicamente, e então sepultado. Mas Deus o ressuscitou dentre os mortos. Dessa forma, o evangelho é tanto histórico como sobrenatural. Visto Deus ser a causa metafísica de todos os eventos naturais e sobrenaturais, não existe nenhuma diferença essencial entre o natural e o sobrenatural. O sobrenatural designa apenas o extraordinário, isto é, não algo que seja metafisicamente diferente, mas algo que é incomum.
Em todo caso, se uma mensagem compromete o aspecto histórico ou o sobrenatural, ela não é mais o evangelho salvador de Jesus Cristo. Os fatos sobre ele não são mais anunciados. Não podemos dizer que Jesus de fato apareceu na história, mas que ele não realizou milagres e que ele não ressuscitou dentre os mortos. Nem podemos espiritualizar ou supernaturalizar todo o relato sobre Jesus e arrancá-lo da história. O histórico e o sobrenatural são um em Jesus Cristo. Rejeitar um é rejeitar o todo, e ser um incrédulo, sujeito ao castigo sem fim no fogo do inferno.
Essa mensagem não deixa lugar para os não cristãos discordarem. Porque alegamos tanto o histórico como o sobrenatural, eles não podem aceitar um e rejeitar o outro. Dizemos que existe conhecimento e moralidade absoluta. Existe um único relato correto do mundo, e uma revelação exclusiva e abrangente da parte de Deus. Uma é correta, e as outras erradas. Portanto, o conflito total é inevitável. Nosso evangelho faz com que os não cristãos parecem muito maus, e quando isso acontece, eles ficam muito loucos. E porque não podem triunfar na área do intelecto e argumento, eles recorrem à perseguição. Mas de alguma forma nós somos aqueles considerados como tolos, como obscurantistas, e até mesmo terroristas, como perturbadores da paz. Paulo foi preso como um criminoso.
Todavia, a palavra de Deus não pode ser aprisionada. Os não cristãos podem assassinar um pregador, mas não podem assassinar o evangelho. O que os homens podem fazer conosco, eles não podem fazer a Deus ou à sua palavra. A fé cristã continuará e triunfará.
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Fonte: Reflections on Second Timothy
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto