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Meditações sobre mediações: escapando a imediaticidade do pornográfico (Alastair Roberts)

Nos últimos dias, eu tive o privilégio de descobrir o álbum recente de Andrew Gregory, The Song of Songs (disponível para download gratuito aqui). Mais conhecido por ser um membro da Gregory Brothers, a família por trás do fenômeno do Youtube, Autotune the News, foi uma surpresa agradável descobrir que Andrew tem o segundo emprego de ser um compositor-cantor sério, que se conecta com Sufjan Stevens e o Welcome Wagon. A sua última oferta é uma interpretação moderna rica e orquestrada de Cantares de Salomão, uma obra feita em cinco anos e com amor. Andrew descreve ter escrito inteiramente Cantares de Salomão, colocando códigos no formato de cores para partes que ele já tinha completado, partes que precisava desenvolver mais e partes que iria deixar de fora. Qualquer um familiarizado com o texto bíblico ficará impressionado com a clareza de sua voz na obra final de Andrew.

Cantares de Salomão por muito tempo me foi particularmente fascinante. Todavia, ouvir uma apresentação sensível das palavras do texto bíblico dentro de uma linguagem musical contemporânea adicionou uma nova dimensão às minhas experiências anteriores do texto. Eu fiquei chocado, num grau maior do que antes, pelos fortes contrastes que existem entre os amantes e seu mundo dentro de Cantares e os agentes do pornográfico. Talvez esse contraste não seja evidente em nenhum outro lugar mais do que na preferência da imaginação pornográfica pelo imediato acima do mediato.

A seguir, eu falarei do “pornográfico” como denotando uma forma particular de percepção, apropriação e representação do corpo, o outro e o mundo. Enquanto mais claramente epitomizada na mídia sexualmente explícita que comumente nos referimos como pornográfica, mídia que servirá como o material mais proeminente de comparação, espero que fique evidente que também é um termo apropriado para uma forma mais abrangente de se relacionar, com uma relevância que vai além de seu referente mais óbvio.

A erradicação da mediação

… os seus lábios são lírios que gotejam mirra preciosa.

Ótica pornográfica, retórica profana

O pornográfico busca erradicar toda a distância e apreender seu objeto imediatamente. Não é, portanto, acidental que o pornográfico tenha se tornado especialmente associado com a mídia visual moderna. O olho ocupa uma posição elevada dentro do sensório ocidental. A visão é a nossa metáfora primária para o pensamento (“cosmovisão”, “iluminismo”, “iluminação”, “visão”, “o olho da mente”, “teoria”, etc.) e é o órgão do domínio, juízo e controle. Nós supervisionamos, investigamos, observamos, vigiamos, vistoriamos e averiguamos. A extensão do controle do olho sobre o seu mundo e considerar toda a realidade como uma imagem sob seu controle são impulsos primários da modernidade. O pornográfico está em continuidade com essa forma de ótica.

Como o crítico de arte John Berger tem argumentado, a tecnologia moderna tem empoderado o olho na sua busca de considerar tudo como uma imagem e tudo sujeitar a seu controle. A câmera nos capacitar a “capturar” a realidade como uma imagem manipulável, como algo que pode ser recortado, retocado, redimensionado, reenquadrado, ressituado e recontextualizado à vontade. A imagem da câmera é perfeitamente portátil e reproduzível e não mais coloca as mesmas demandas sobre o observador de adotar certas posturais corporais relativas a uma representação física singular a fim de poder apreendê-la. Com a internet e os nossos aparelhos modernos conectaos, a imagem pode ser acessada e consumida de forma privada. As exigências que a imagem tem sobre o observador são mínimas: facilitado pela mídia visual moderna, o poder controlador do olhar do observador não tem limites.

Justamente o fato de que o trabalho da câmera torna o ato de olhar do observador algo que não requer esforço ou atividade aparentemente absolve o observador da responsabilidade por seu olhar: a câmera é a parte ativa no olhar e o observador só está recebendo passivamente as suas imagens. À medida que a realidade é assimilada e especializada na imagem, a própria mediação desaparece.

A pornografia é o meio pelo qual podemos transformar e consumir o sexo como imagem ao extraí-lo do processo de mediação, das cautelosas e sutis negociações que ele demanda. Em suma, a pornografia satura o sexo com a imediaticidade do hiper-real. Ao nos permitir elidir a mediação, ela colapsa a distância entre nós e o outro, convencendo-nos de que podemos, e que talvez deveríamos poder, apreender, isto é, objetificar, o outro sem as intervenções de linguagem, tempo ou energia, fazendo, assim, o sexo parecer algo fácil e efêmero.

Mesmo quando a linguagem está presente dentro da visão pornográfica, ela também tenta erradicar traços de mediação. A pornografia expõe seu caráter essencial no uso de linguagem torpe, uma forma de linguagem que avilta as coisas ao desconectá-las de qualquer relacionamento a qualquer coisa além de si mesmas ou de qualquer mediação com um sentido superior. Dessa forma, a torpeza linguística e a obscenidade visual conspiram juntas para eclipsar o corpo, tornando-o somente um objeto sobre o qual agir e, ao fazê-lo, possuir.

O discurso pornográfico é assim caracterizado por sua resistência à linguagem na medida em que ela afasta e mantém distância, por ser um mediador. Os sujeitos pornográficos somente falam diante um do outro, mas não um ao outro, ou mesmo um com o outro. Até quando alguém se dirige ostensivamente ao outro, a forma de linguagem empregada revela hostilidade ao padrão de livre discurso e resposta da linguagem que media e sustenta as relações sociais. A linguagem cessa de ser um meio de relacionalidade e comunicação e, ao invés disso, torna-se meio de auto-presença do sujeito, excluindo o outro, ao invés de atraí-lo. Finalmente, a linguagem pornográfica objetiva o expletivo: trata de imediaticidade e intensidade, não de significado. O expletivo é a forma fragmentada que a linguagem assume quando se tranca no presente, cessando de ter qualquer relacionamento com um discurso que ou estrutura ou se desenvolve a partir da força dos sentimentos do momento.

Uma retórica da distância

Muitos leitores de Cantares podem se impressionar com suas figuras e metáforas floridas e surpreendentes. Vemos cabelos comparados a rebanho de cabras, dentes a ovelhas e seios a crias de gazela. Embora o significado exato de algumas dessas metáforas nos escapem, eu gostaria de ressaltar aqui a sua forma retórica em Cantares. Michael Fox argumenta que essas metáforas arrebatadoras dependem, para ter seu sentido pleno, “não só da extensão do terreno comum, mas também da ‘distância metafórica’ entre a imagem e o referente: isto é, no grau de imprevisibilidade ou incongruência entre os elementos justapostos e a magnitude da dissonância de supresa que produz”. Uma “distância metafórica” maior, então, serve para excitar o desejo e o “prazer estético”.

Enquanto o pornográfico busca assimilar tudo à hegemonia da imagem, dentro da retórica de Cantares testemunhamos o estabelecimento de uma distância expansiva e lúdica. O leitor contemporâneo pode rir da comparação entre o ventre da Sulamita com um “monte de trigo, cercado de lírios” (Ct 7.2). A distância entre os dois termos metafóricos parece precluir alguma conexão significativa. Todavia, tais metáforas não dependem de uma conexão sensorial direta entre os dois termos, nem funcionam as metáforas como substituições eufemísticas para serem decodificadas. Ao invés disso, as metáforas servem para criar associações ousadas, associações que ensejam o engajamento da imaginação, expondo a fecundidade e plenitude de sentido. O monte de trigo é associado com a abundância e o sustente, com fertilidade e vitalidade. Também convida o ouvinte a explorar a possibilidade de um relacionamento com várias outras conexões do trigo nas Escrituras, tal como as associações sexuais do cereal e do trigo (p. ex., Rt 3.6-7; Jó 31.10) e o templo como o lugar do trigo e da eira (1Cr 21.18-30; 2Cr 3.1). O lírio, que aparece diversas vezes em Cantares (2.1, 2, 16; 4.5; 5.13; 6.2, 3), sugere beleza, mas também evoca toda a imagem de jardim em Cantares (4.12-15; 6.2-3) e obliquamente aponta na direção do uso bíblico mais amplo da imagem do jardim em conexão com os lugares de encontro amoroso do Éden e do templo, onde lírios também aparecem (1Rs 7.19, 22, 26; 2Cr 4.5).

O meio escolhido de Cantares é o véu da linguagem. Véus simultaneamente nos permitem nos aproximar, enquanto também mantêm a separação e a diferença. Eles negam o acesso imediato, apresentando-nos o desejo como uma realidade que implica coinerência radical de presença e ausência. O pornográfico, contudo, rasga esse véu. O caráter circunlocutório da escrita erótica no Cântico dos Cânticos direciona a nossa mente para o ato sexual de uma forma que enseja o deslumbramento. Suas metáforas surpreendentes, como mencionadas acima, são características de uma retórica do desejo, que relaciona termos aparentemente distantes a fim de nos desacelerar e nos permitir saborear a dança erótica de ausência e presença, erguendo a tensão estética que é característica do desejo verdadeiro. A diferença profunda numa relação lúdica, inadmissível numa lógica do Mesmo, é a característica chave que é da essência do desejo.

Em contraste à imagem pornográfica, então, Cantares é uma celebração da distância e da mediação como constitutivas do desejo. O livro emprega uma forma retórica que indica para uma incompletude ontológica, uma abertura e uma ordem incircunscritível. Ele celebra as pausas carregadas dentro da música da realidade de Deus. Ele sugere a necessidade da peregrinação do self por meio do outro e a travessia da diferença por meio do autossacrifício e do amor. Desse modo, Cantares sustenta a diferença, permitindo o outro a resistir a subjetivação à maestria da imagem imediata em seus esforços de erradicar toda a diferença.

O corpo ausente

Para onde foi o teu amado, ó mais formosa entre as mulheres?

O corpo pornográfico

Em Putting Liberalism in its Place [Colocando o liberalismo no seu lugar], o professor da cadeira Robert W. Wimmer de Direito e Humanidades de Yale, Paul Kahn, argumenta que “a única condição temporal [do corpo pornográfico] é o presente”.1 É um corpo que está livre da morte, do trabalho, das consequências procriativas do sexo, de relacionamentos duradouros, da família, da sociedade, do Estado, da economia, da história e do futuro. O corpo pornográfico é uma presença indiluída na imediaticidade do agora, uma rejeição do jogo de presença e ausência que se exige do corpo histórico.

Arrancado da relacionalidade e considerado uma realização destilada e puramente pontual de uma vontade autônoma, o corpo pornográfico é anonimizado, roubado de seu caráter pessoal. O ato sexual é despojado de sua intencionalidade interpessoal, por meio de sua exposição a uma visão objetificante na terceira pessoa. Nas palavras de Roger Scruton, “o obsceno é a representação ou exibição do ato sexual de tal forma a ameaçar ou ridicularizar sua intencionalidade individualizante, ao colocar o corpo predominantemente no pensamento …”, não como a presença do amado, mas como mera “carne” sexualizada.2 A imediaticidade dos corpos pornográficos implica a erradicação da corporeidade pessoal que precisa, para não ser objetificada, mediada.

Com a expectativa de ser completamente conformada à vontade do observador, o corpo pornográfico assume sua posição dentro da moldura fantástica do voyeur, uma moldura que não deve ser perturbada. Essa forma de exibir o corpo não apresenta uma alteridade real, colocando-se completamente à disposição do voyeur.

O corpo do amado

Enquanto o corpo pornográfico é anonimizado e sujeitado ao olhar voyeurístico, os corpos de Cantares sempre são sempre corporeidades pessoais, fatores ternamente traçados na linguagem poética do amor, mediações tecidas em mediações. Os corpos de Cantares são tipos e símbolos, janelas que se abrem para outros mundos. Exegetas judeus e cristãos têm encontrado neste livro ao longo da história uma representação alegórica ou tipológica do relacionamento de Deus com o seu povo ou o relacionamento de Cristo com a Igreja. Ao considerar os corpos dos amantes, o nosso olhar não foca em mera carne bruta, mas é levado a descobrir em sua união uma beleza transcendente e uma realidade divina que ultrapassa a imediaticidade do referente físico. No chamado sem resposta de Salomão e no bater da porta da Sulamita (5.2-8), por exemplo, o leitor cristão também pode ouvir a voz e o bater de Cristo na porta da sua Igreja (Ap 3.20), buscando comunhão.

Robert Alter escreve:

… o mundo está constantemente abarcado exatamente no processo de imaginar o corpo. A paisagem natural, o ciclo das estações, a beleza da fauna e da flora, a profusão de bens negociados pelo comércio, a habilidade inventiva do artesão, a grandiosidade das cidades, são todos alegremente afirmados quando o amor é afirmado.3

O Cântico dos Cânticos é um cântico de desejo, um cântico de presenças alegres e ausências perturbantes, um cântico de anelo, anseio, espera e memória. Também é um cântico de sabor e de sede. O pornográfico, em contraste, é caracterizado por uma imediaticidade sufocante, que excluo uma dança do tão temporal desejo.4 Os amantes em Cantares nunca possuem completamente o corpo um do outro, mas se descrevem num deslumbramento mútuo. Os seus corpos são dádivas que continuamente chegam, fontes de vida e pilares de força um para o outro, sua graça se localizando em sua doação incessante. A Sulamita é como um jardim de frutos e ervas, cujo aroma se espalha com os ventos dos céus, um lugar a que Salomão sempre pode retornar para deleite e sustento (Ct 4.12—5.1; 6.2-3). Tal imagem sugere que Salomão nunca poderá circunscrever ou plenamente controlar essa dádiva, que flui de uma fonte que está fora do seu domínio.

Tal consentimento à mediação e a incapacidade de possuir e controlar é ainda mais pronunciado no caso do relacionamento entre o corpo de Cristo e a Igreja. Nos evangelhos vemos várias tentativas de enclausurar, de descobrir, de tocar ou de agarrar o corpo de ressurreição de Jesus. Entretanto, o corpo de Jesus pode consistentemente escapar da restrição, limitação e reconhecimento. Talvez se veja isso mais claramente na narrativa de Lucas do caminho de Emaús (Lc 24.13-35), onde o desconhecido companheiro de viagem dos discípulos só se revela como sendo Jesus no partir do pão. Como o teólogo católico francês Louis-Marie Chauvet expressa: os olhos dos discípulos “se abrem para um vazio, ‘ele desapareceu da presença deles’, mas um vazio cheio de uma presença”.5 O corpo do Cristo ressurrecto e assunto não pode ser considerado um “objeto disponível”, mas sempre é marcado por presença e ausência simultâneos num sítio de mediação simbólica, que escapa todas as tentativas de domínio ou circunscrição. Como escreve Chauvet:

Lucas pergunta, em efeito, a sua audiência: “então você quer saber se Jesus está realmente vivo, ele que não pode mais ser visto diante dos seus olhos? Então, desista do seu desejo de vê-lo, de tocá-lo, de encontrar o seu corpo físico, pois, agora, ele se permite ser encontrado somente por meio do corpo de sua palavra, na reapropriação constante que a Igreja faz da sua mensagem, as suas obras e sua própria forma de viver. Viva na Igreja! É ali que você vai descobri-lo e reconhecê-lo.6

É essencial que a Igreja seja reconhecida como um sítio de ausência não menos do que um sítio de presença: um Cristo sem ausência seria um cadáver. É na ausência de Cristo que se encontra o testemunho de sua liberdade e alteridade. Nesse sentido, a ênfase sobre uma imediaticidade desescatologizada da presença de Cristo à alma individual em boa parte do culto evangélico contemporâneo seria uma causa de preocupação. Tal culto arrisca negar a alteridade e liberdade pessoal de Cristo. Mediação, ausência e anseio precisam ser elementos constantes de qualquer forma fiel de culto.

De uma forma análoga, o corpo do amado sempre irá escapar a nossa possessão. A busca pelo amante ausente é uma tema chave na versão de Gregory do Cântico: quando eu acordei hoje de manhã, eu não pude encontrar o meu amor. Mesmo eu dormindo do lado dele, eu não pude encontrar o meu amor. A presença do amante nunca é dominada, mas é desejada e ansiada, procurada, descoberta, gozada e saboreada, mas nunca completamente possuída. A liberdade do outro exclui a possibilidade da imediaticidade da possessão do corpo e da presença do outro procurada pelo pornográfico.

Os corpos dos amantes em Cantares não são presenças circunscritíveis, mas são caracterizados por chegada e partida, presença e ausência, distância e proximidade, identidade e não identidade e, assim, por uma relação metafórica, familiar, política e social, sempre se vendo no vai-e-vem rodopiante de uma realidade mais profunda. Para cada amante, a corporeidade do outro é um convite à vida em toda sua fecundidade e vitalidade, um chamado para uma aventura numa nova narrativa e num novo mundo e para um futuro gracioso que acena para além da imediaticidade estultificante do presente.

O outro social

Em ti nos regozijaremos e nos alegraremos; do teu amor nos lembraremos, mais do que do vinho; os retos te amam [ARC]

A autonomia da pornografia

O pornográfico é uma negação e uma tentativa de escapar da mediação do outro social, da comunidade que testemunha do sentido, da instituição, dos filhos, da produção econômico e do domínio político. Nenhuma memória histórica é evocada, nenhuma reivindicação colocada sobre o futuro. Kahn vê o pornográfico como a rejeição do discurso e a tentativa de transcender a mediação (socialmente fundamentada) da linguagem. O corpo pornográfico “não se estende simbolicamente para o passado ou o futuro”.7 Ao invés disso, a pornografia tenta alcançar a liberdade ao pular fora do processo social, de buscar amor e sexo sem a intrusão de filhos, política, história, igreja e restrições externas. O corpo pornográfico produz os seus próprios significados e não se sujeita aos processos sociais contínuos ou abertos a terceiros.

Sem o outro social ou terceiros, o pornográfico naturalmente gravita em torno da objetificação. Ao apagar terceiros, a segunda pessoa também é apagada. Faltando um terceiro para servir como mediação do relacionamento, não há nada para prevenir a assimilação ou objetificação do outro à vontade e intencionalidade do um, assim, de uma forma característica da pornografia, objetificando os sexos. Onde deixa de existir uma ordem social em que a identidade pode ser articulada diferentemente, essa identidade será articulada somente em termos do relacionamento da primeira parte a eles, subordinando a segunda parte aos fins da primeira.

Dentro do pornográfico encontramos uma visão perversa da liberdade: uma liberdade da mediação social que considera a mediação uma imposição que previne a imediaticidade da autonomia pessoal.

Um cordão de três dobras

Num artigo de 2011 no First Things, Peter Leithart trata dos conceitos do pornográfico e do romântico, observando como ambos são caracterizados pela ausência de um terceiro. Sem o terceiro, Leithart argumenta, a segunda pessoa ou é objetificada ou é indiferenciada do self. Ele conclui:

As relações humanas precisam de um terceiro intrusivo se é para elas serem saudáveis. Como Jenson diz: “a amizade que é exclusiva demais ou murcha ou se torna destrutiva” e “uma confrontação puramente bipartite de entidades econômicas ou sociais está fadada ao conflito”. Mais especificamente, “Deus ordenou que a mutualidade do amor matrimonial, o paradigma inevitável da relacionalidade Eu-Tu, seja conquistada por atos cujo termo é o filho, um paradigma do terceiro intrusivo, cuja livre agência ou ausência sofrida é o vínculo final entre o casal.

Seguindo a obra de Robert Jenson, Leithart relaciona este padrão à vida da Trindade:

Uma teologia que minimiza o papel do Espírito não pode afirmar plenamente o amor entre o Pai e o Filho. Por meio de um terceiro intrusivo, o Espírito, o Pai é eternamente o que ele é, “o Pai disponível e amável”, para o Filho.

Cantares atesta esses vínculos. Por todo o Cântico, os terceiros estão presentes e o amor do casal é recontado a eles e testemunhado por eles. As diferentes vozes e discursos dentro de Cantares se impuseram a mim com uma força renovada quando ouvi o álbum de Andrew Gregory. O Cântico não é o cântico de uma só voz e do amor de uma só pessoa. Os dois amantes cantam um para o outro, sobre um e o outro, em uníssono um com o outro. Eles continuamente testificam do seu amor para uma audiência mais ampla, uma audiência que tem a sua própria voz. Em He is Radiant & He is Ruddy [Ele é radiante & Ele está corado], as filhas de Jerusalém respondem ao pedido da Sulamita em If You Find My Lover, Tell Him I am Faint with Love [se vocês encontrarem o meu amado, contem-no que desfaleço de amor] —“por que deveríamos ir contar ao seu amado? Ele é melhor do que outro qualquer?” Como um testemunho constante ao amor do casal um pelo outro, a comunidade liberta o casal para ser quem eles são um para o outro. Diferentemente da imagem romântica comum do casal que está absorto no olhar um do outro em oclusão a todo o resto do mundo, o casal em Cantares está continuamente relatando o seu amor para um público mais amplo. Diferentemente do terceiro voyeurístico do pornográfico, o observador em Cantares também é interlocutor, visitante ou amigo, envolvido numa relação persistente por meio da mediação do tempo.

Os amantes também desejam um ao outro como aqueles que encontraram um lugar e uma identidade na sociedade mais ampla. Dentre outras razões, a Sulamita é desejada por causa de sua reputação:

Sessenta são as rainhas, oitenta, as concubinas, e as virgens, sem número. Mas uma só é a minha pomba, a minha imaculada, de sua mãe, a única, a predileta daquela que a deu à luz; viram-na as donzelas e lhe chamaram ditosa; viram-na as rainhas e as concubinas e a louvaram (Cantares 6.8-9)

A Sulamita se relaciona ao amado da mesma forma, desejando-o como alguém que ocupa um lugar particular na sociedade. Salomão é quem está cercado pelos valentes de Israel, quem é coroado como Rei de Israel (Ct 3.6-11). À medida que os amantes constantemente relatam seu amor a uma sociedade para além deles, o seu desejo é suscitado pela percepção do respectivo amado com um status e reputação públicos.

A mediação da sociedade expande os movimentos de amor, autodoação e desejo. Em sua união, o casal deseja se relacionar a um público mais amplo. A sua união cria discursos e produz sentidos, é um vínculo que se projeta no mundo. Em sua união, uma fonte é aberta, produzindo um córrego de vida que fluirá para além deles até aos outros.

A dádiva do outro

Venha o meu amado para o seu jardim…

Onde a ótica pornográfica da imediaticidade, do controle e da exposição completa buscam a dominação, Cantares celebra uma retórica do desejo de diferenças recíprocas, que aproxima o corpo do amado indireta, alusiva e poeticamente. A presença perfeita do corpo pornográfico é substituída pela presença efêmera do corpo icônico. Em oposição às afirmações totalizantes do corpo pornográfico perfeitamente presente, esta presença age como um microcosmo de e uma janela para o mundo mais amplo. Dessa forma, o corpo icônico, na medida em que ele constantemente chega e parte, estimula o desejo por meio de uma dialética de presença e ausência. Cantares supera a esterilidade do corpo pornográfico, como a união encarnada dos amantes floresce adiante no mundo, espalhando a sua vida. Ao introduzir a dialógica de um outro social no encontro erótico, Cantares evita a objetificação que resulta de uma dualidade fechada (por ser monológica).

Cantares é uma celebração da mediação. É uma celebração da dádiva que não pode ser contida, do cálice que transborda, da gratuidade e da extravagância. É uma celebração de uma criação irredutível à lógica estagnada e homogênea do Mesmo, mas que irrompe em diferenças cada vez mais gloriosas e surpreendentes e, portanto, difíceis, desafiadoras e inesperadas. É uma celebração do corpo como um sítio de presença e produção de sentido. É uma celebração de uma criação que excita o desejo através de suas diferenças e distâncias, onde as longas pausas sustentadas entre as partes em relação são o que servem como os meios da relação. É uma celebração da habitação mútua e inter-relação de pessoa, sociedade, mundo e corpo, onde, além de toda medida, possessão, controle ou domínio, a presença do outro rompe em vida como pura benevolência.

Traduzido por Guilherme Cordeiro.

Fonte: Mediations in Mediations: Escaping the Immediacy of the Pornographic publicado no blog Alastair’s Adversaria.

1 Paul W. Kahn, Putting Liberalism in Its Place (Princeton University Press, Princeton, NJ: 2005), p. 204.
2 Roger Scruton, Sexual Desire (Continuum, London: 2006), p. 32.
3 Ariel Bloch and Chana Bloch, The Song of Songs (University of California Press, London: 1995), p. 130.
4 Pode-se argumentar que há certas formas de culto cristão que sucumbem a essa imediaticidade doentia, a imediaticidade desescatologizada da presença de Cristo para a alma individual substituindo os véus mediadores da linguagem e a contenção cronometrada do desejo característica da erótica bíblica na liturgia e na celebração da Eucaristia como a abertura de nossos olhos para uma ausência cheia de presença.
5 Louis-Marie Chauvet, Symbol and Sacrament (The Liturgical Press, Collegeville, MN: 1995), p.170.
6 Ibid., p. 166.
7 Kahn, Putting Liberalism in Its Place, p. 206.