Buscando apresentar um panorama da produção teológica acadêmica ao longo de várias tradições, convidamos alguns leitores e especialistas para que recomendassem uma obra da área que tenha sido publicada ou republicada no ano de 2021.
O mundo e a pessoa de Romano Guardini (Academia Monergista, 222 páginas)
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Fabrício Tavares de Moraes, editor assistente da Monergismo — Nas décadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial, não raro, os teólogos das diversas tradições cristãs – levando em consideração as visões ideológicas e filosóficas acerca do homem das décadas precedentes, e buscando uma resposta ou ao menos uma linha de sentido que ajudasse as comunidades religiosas e mesmo humanistas a compreenderem o incontornável processo de desumanização dos totalitarismos – apresentaram propostas tímidas e apenas ensaiaram que se reconhecesse um humilde lugar para a visão cristã da personalidade dentre as demais antropologias filosóficas que então grassavam.
Muitos pensadores cristãos diziam, simplesmente, que o entendimento bíblico acerca do ser humano seria, se não um antídoto, ao menos um paliativo para os processos de despersonalização que haviam se iniciado nos nazifascismos e no comunismo – especialmente por meio da “propaganda” e da difusão de ideias parasitárias mediante os meios de comunicação em massa –, assim como para os ritmos antinaturais que as forças industriais e tecnocráticas então impunham aos seres humanos.
Poucos filósofos ou teólogos cristãos, no entanto, se dedicaram (arriscadamente) à retomada ou atualização de uma antropologia filosófica cristã, que afirmasse, a partir das Escrituras e da tradição, quem é o homem e qual é o fim de sua existência. É o caso de Romano Guardini, que, em 1939, ano de início da Segunda Guerra Mundial, publicou sua célebre obra O mundo e a pessoa: ensaios de uma teoria cristã do homem.
Para Guardini, as indagação acerca da natureza e finalidade humanas estariam evidentemente alicerçadas no ato de sua criação à imagem e semelhança de Deus, de modo que o ser humano sempre se constitui a partir de uma relação com sua Origem, seja por meio da submissão amorosa, da indiferença ou da revolta. Essa relação vertical com a Pessoa Absoluta, diz-nos ele, se refrata na comunhão horizontal com os semelhantes, pois “o destino pessoal apenas surge na relação ‘eu-tu’ em que os dois seres enfim desarmados estão abertos um ao outro — ou, então, na relação inacabada em que o apelo do ‘eu’ não encontra resposta”.
Ora, Guardini é um observador arguto do mundo moderno, e por isso rejeita, em sua argumentação sempre sofisticada, as enumerações prontas e fáceis dos vícios e virtudes de sua época. Pelo contrário, sua obra é, com efeito, uma teoria cristã, conduzida por um raciocínio que jamais repousa na imanência.
Nesse sentido, embora reconheça pontos positivos no ideal da liberdade e autonomia modernas, Guardini contrapõe-se à visão moderna do homem, que geralmente parte de uma autodeterminação radical e caprichosa e concebe a personalidade antes como projeto do que como lócus de reconciliação entre o visível e o invisível (e como polo de influxo da graça), e afirma peremptoriamente que “a soberania do homem sobre o mundo só é justificada, e, até, somente possível, graças à sua obediência em relação a Deus”. E mais: perante a imagem de um mundo que, na perspectiva secularista, aparentemente se desfaz, o teólogo nos relembra que “o criado só existe ‘perante ele [Deus]’, e subsiste ontologicamente ‘na obediência’. E é precisamente por isso que o mundo é o que é e que é real enquanto mundo… Só a partir de Deus pode o mundo constituir realmente o objeto de uma experiência”.
Recordações da minha fé de Mario de França Miranda (Paulinas, 216 páginas)
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Elton M. Quadros, professor — Fiquei imensamente feliz quando, em 2015, o teólogo e padre católico Mário de França Miranda recebeu o Prêmio Ratzinger de Teologia. Era o reconhecimento, em prêmio, de uma obra teológica consistente, comprometida com uma atualização permanente do pensamento sobre eclesiologia e isso tudo feito com o rigor intelectual típico dos jesuítas. Em Recordações da minha fé, publicado pela Paulinas neste ano de 2021, encontramos uma espécie de suma das principais ideias teológicas do teólogo, em um itinerário em que as reflexões sobre a fé são o centro de uma vida. Partindo de suas experiências, leituras e da realidade objetiva do quanto é dura a “vida do homem sobre a terra”, Mário de França Miranda pretende, com isso, levar o leitor, em sua própria experiência, a compreender mais profundamente a pessoa de Cristo Jesus, a ação do Espírito Santo na vida cotidiana, a importância da vida comunitária na Igreja e, de forma mais concreta, a perceber a face de Deus Misericordioso sem descurar da dimensão social e política da fé cristã. Considero Recordações da minha fé, de Mario de França Miranda, como minha melhor leitura teológica do ano, por poder ver, na maturidade de uma vida dedicada ao estudo teológico, a consonância entre o pensar sobre Deus, até mesmo academicamente associado a uma experiência da fé, ou seja, apesar de todas as complexidades da vida, Miranda segue em busca de uma fé que conjugue a razão, o coração e a solidariedade; nas palavras do autor: “Enquanto opção livre, enquanto acolhimento do mistério, enquanto se deixar por ele determinar, enquanto não é apenas fruto da inteligência, a opção de fé é um ato de confiança, de entrega, de amor, que goza de uma luminosidade própria no interior da própria opção, que leva a razão a ultrapassar a si mesma, chegando, assim, o ser humano à sua realização última, que não é apenas no conhecimento, mas no amor” (p. 19).
Exclusão e abraço: uma reflexão teológica sobre identidade, alteridade e reconciliação, de Miroslav Volf (Mundo Cristão, 448 páginas)
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Thiago Moreira, autor — A indicação de Exclusion and Embrace — obra publicada em português, neste ano de 2021, com o título de Exclusão e abraço — se dá em razão de um momento infelizmente não tão singular porém significativo de nossa história humana e, em especial, brasileira.
Miroslav Volf, autor de origem croata, partindo de sua experiência limite e ontologicamente significativa (embora também lastimável) ao longo da guerra que assolou a ex-Iugoslávia durante os anos de 1991 a 1995, traça reflexões como ponto de partida para uma análise mais cristã da história humana, das relações socioculturais, econômicas e políticas.
O autor expõe o medo, a dor e as questões que surgiram com a vivência numa guerra embebida de massacres étnicos, dissensões religiosas, políticas e culturais; chagas que beiram a permanência, tal como marca indelével de brasas, na memória coletiva. Trata-se de um livro sincero, de questões importantes que desafiam a Cristandade de há muito. É um livro que suscita boas perguntas e cujas respostas não são jamais simplórias; aliás, talvez nem mesmo seja possível encontrá-las todas, a contento, em seu texto (o que de forma nenhuma é demérito, no presente caso).
Nesse sentido, a base argumentativa do autor gira em torno da necessidade de construir-se uma percepção cristã que direcione relações sociais saudáveis de convívio e aprendizado mútuo em contextos nos quais a pluralidade e a diversidade são realidades inegáveis. A proposta de Volf, face à relação com o “outro” e com as demandas que surgem a partir de tal convivência, não é abandonar pressupostos básicos da fé cristã; pelo contrário, é questionar e reexaminar práticas que podem ter sido alijadas de tais pressupostos ao longo dos anos. É, portanto, estímulo à reflexão e produção de uma teologia do acolhimento e da hospitalidade.
Crise, oportunidade e o futuro cristão, de James B. Jordan (Editora Monergismo, 85 páginas)
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Davi Peixoto, pastor — Existem livros que nos levam a pensar mais que outros, desafiando-nos a sair da nossa zona de conforto intelectual e espiritual. É o caso do livro Crise, oportunidade e o futuro cristão, do teólogo norte-americano James B. Jordan, publicado pela editora Monergismo.
Numa época em que a igreja é refém de um pessimismo talvez inédito em sua história e é vista por grande parte dos crentes como uma instância de refúgio tão somente, este livreto de James B. Jordan lança um facho de luz e nos desafia a encarar a igreja de Deus como o lugar de onde deve fluir a verdadeira esperança de redenção do homem. Ora, a igreja vive e morre ao longo da história. Mas, acima de tudo, ela ressuscita, como seu Senhor. Este fluxo de nascimento, morte e ressurreição segue, como sombra, o modelo primaz, que é o Noivo. E, tal o qual o Noivo, ela vence a morte. E em cada época da história, a igreja está viva, ou parece prestes a morrer – como se dá em nossos dias, dias de morte e de ocaso para a igreja (ou pelo menos assim assoma aos olhos de muitos crentes).
Assim, Jordan está, de fato, ciente (como se vê num apêndice dessa sua obra) das situações críticas que a igreja, e em especial a tradição reformada, enfrenta em nossos dias. O autor novamente nos desafia ao tratar sobre o que chama de um estreitamento da mente calvinista, numa época mais recente. Curiosa e ironicamente, enquanto muitas vezes celebramos o crescimento do calvinismo entre os crentes, James B. Jordan, por sua vez, nos adverte sobre a perda de substância espiritual e intelectual do calvinismo contemporâneo (fato muitas vezes incontornável, infelizmente!).
De modo bastante objetivo, porém, o autor recupera a noção bíblica de catolicidade da igreja e, sobretudo, nos lembra que o curso vitorioso da igreja não depende, em última análise, da ação do homem, mas do plano de Deus em preparar, como dizíamos, uma Noiva imaculada e vitoriosa para o Noivo, cumprindo assim o propósito para o qual tudo foi criado! Segundo Jordan, vivemos a época mais desafiadora e prenhe de possibilidades para a igreja desde o século I – uma conclusão, no mínimo, desconcertante para uma época de crentes tão lamentavelmente pessimistas e com tendências escapistas.
Bento XVI: Servo de Deus e da humanidade de Elio Guerriero (Quadrante Editora, 832 páginas)
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Gabriel de Vitto, professor — A tradução da obra de Elio Guerriero, originalmente de 2016 e já traduzida a vários idiomas, é um grande ganho ao nosso mercado editorial. Bento XVI: Servo de Deus e da Humanidade, publicado pela Editora Quadrante, conta com um prefácio do Papa Francisco e a acurada apresentação e revisão de Rudy Assunção, estudioso do pensamento do Papa Emérito.
Ao longo dos anos, especialmente depois de sua renúncia, o pensamento de Joseph Ratzinger passou a ganhar maior atenção de um público culto mais amplo, por assim dizer. Busca-se o que o Ratzinger tem a dizer sobre metafísica, antropologia, política; não apenas suas brilhantes reflexões teológicas, mas o todo orgânico do pensamento ratzingeriano. Neste sentido, o livro de Guerriero é uma excelente introdução a um corpus intrincado de ideias intimamente relacionadas. Pode-se dizer que se trata de uma biografia intelectual em sentido autêntico, isto é, mostra o dinamismo e as tensões entre a vida e a inteligência de um dos “pensadores” mais profundos do século.
Particularmente, me chama a atenção o cuidado de Guerriero em mapear as esquecidas influências filosóficas dos anos de formação de Ratzinger. Surge a marca registrada de seu pensamento, com Santo Agostinho, Newman e a filosofia dialógica de Buber e Ebner, mas também algumas fontes insuspeitas aos olhos desatentos, tais como Kierkegaard, Heidegger, Jaspers e Nietzsche. No âmbito da teologia, destaca-se a centralidade da Sagrada Escritura, da Liturgia e do Anúncio. O desenrolar da obra acompanha a vida do Teólogo até hoje, já no Mosteiro Mater Ecclesiae.
Talvez seja interessante destacar algumas ideias luminosas que pululam da obra constantemente: a redescoberta do sentido boaventuriano de “razão seminal” e do sentido hermenêutico da “revelação”; as questões dos anos acalorados do Concílio Vaticano II e da relação de Ratzinger com Henri de Lubac e Hans Urs Von Balthasar; o vínculo “ineludível” entre pregação e Igreja etc.
Por fim, vale a pena diferenciar esta obra da também recém-lançada biografia de Ratzinger, Bento XVI: A Vida, escrita por Peter Seewald e publicada pela editora Paulus. Esta última é muito mais narrativa, preocupando-se em traçar um panorama completo dos feitos pessoais. Por outro lado, como já comentado, a obra de Guerriero centra-se na vida intelectual do biografado. Desse modo, temos a possibilidade de ter um quadro bastante completo do Teólogo a partir da leitura de ambas.
Tomás de Aquino e o conhecimento de Deus de Jonas Madureira (Vida Nova, 192 páginas)
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Igor Mendes da Incenção, seminarista —O livro Tomás de Aquino e o conhecimento de Deus: a imaginação a serviço da teologia, escrito por Jonas Madureira, trata-se de uma reflexão sobre o seguinte problema: como podemos conhecer a Deus verdadeiramente? Essa não é uma discussão nova nem para Madureira (que trata dessa questão desde a publicação de seu livro Inteligência humilhada) e nem na história do Ocidente. Pois a Introdução do livro apresenta como essa querela marcou o século XIII e como Tomás posicionou-se de forma distinta das demais, até então; posição explicitada principalmente no artigo 7 da questão 84 da primeira parte de sua Suma de Teologia.
Entre os extremos tanto de afirmar a possibilidade da visio Dei per essentiam como também negá-la, Tomás assume uma linha intermediária, na qual afirma expressamente que é possível conhecer a Deus em sua essência, resguardando a maior bem-aventurança que o ser humano (racional) pode alcançar. Porém, essa felicidade não se consuma no estado presente do ser humano, pois a atual condição da alma unida ao corpo exigiria um fantasma (imagem mental) de Deus para que fosse plenamente conhecido. Essa posição levanta outros dois problemas: (1) como podemos conhecer a Deus (ou seres incorpóreos em geral) no estado da vida presente? E (2) que tipo de conhecimento temos de Deus no estado da vida presente?
Para responder a primeira pergunta, Tomás se vale de Aristóteles e os capítulos 2 e 3 do livro são uma explanação da resposta tomasiana em uma estrutura tríplice. Primeiro, a tese de Tomás é apresentada: o estado da vida presente condiciona o intelecto à conversão aos fantasmas para conhecer qualquer coisa. Em segundo lugar, essa tese apresenta dois indícios de sua veracidade: (1) a dependência que o intelecto tem da imaginação e (2) os fantasmas a título de exemplo. Por fim, o que justifica a tese, a sua ratio, é o princípio de proporcionamento do cognoscente ao cognoscível.
Para responder a segunda pergunta, Tomás se vale da triplex via de (Pseudo-) Dionísio Areopagita e o capítulo 4 do livro apresenta como o conhecimento de Deus no estado da vida presente é essencialmente negativo, marcado tanto pela remoção de qualquer limitação nas perfeições encontradas nas criaturas, quanto pela eminência dessas perfeições, elevadas ao infinito por serem atribuídas a Deus; como também pela causalidade, que relaciona Deus como causa dessas perfeições nas criaturas.
Por fim, recomenda-se o livro para todos aqueles que, como Madureira, preocupam-se rigorosamente tanto com a pergunta (propriamente filosófica) quanto com a resposta (propriamente teológica) referente ao conhecimento de Deus. Para os que compartilham dessa inquietação, as reflexões de Tomás de Aquino são imprescindíveis. Nelas temos o já: o alento presente da possibilidade de conhecer a Deus. Porém, também temos o ainda não: a esperança de que essa possibilidade será plenamente efetivada no porvir.
Homem algum é uma ilha, de Thomas Merton (Editora Petra, 232 páginas)
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Sergio de Souza, catequista — Homem algum é uma ilha é um dos mais populares e um dos livros prediletos dos leitores de Thomas Merton. Publicado pela primeira vez em 1955, é formado de reflexões críticas sobre aspectos da vida espiritual. Merton as faz, como é de seu feitio, de maneira singularmente pessoal, oferecendo ao leitor insights preciosos sobre espiritualidade, amor, vocação, solidão, contemplação e silêncio.
O livro é um moderno tratado sobre a vida espiritual escrito por um monge muito peculiar, que, sendo um enclausurado, insistia no diálogo com o mundo e com o pensamento contemporâneo, sem abandonar as raízes tradicionais de sua comunidade trapista (uma das mais rígidas ordens monásticas católicas). Para mim, particularmente, Homem algum é uma ilha tem a importância capital de me ter esclarecido o Mistério da Recapitulação, apresentado pelo apóstolo Paulo de forma ousada e magistral em sua Carta aos Efésios. A leitura do livro foi conduzida pela percepção deste mistério. Thomas Merton é, pois, um marco para mim.
Paulo e a fidelidade de Deus, de N. T. Wright (Editora Paulus, 2536 páginas)
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Gutierres Siqueira, professor — Os protestantes amam Paulo. Não é à toa que a produção popular e acadêmica sobre os escritos do apóstolo dos gentios enche as prateleiras dos filhos da Reforma. De tempos em tempos, dentro do universo protestante, surgem alguns pensadores indispensáveis em teologia paulina. Nas décadas recentes alguns nomes despontaram, tais como Ed Parish Sanders, James Dunn (1939-2020), Gordon D. Fee, Scot McKnight, John M. G. Barclay e o anglicano N. T. Wright.
Graças ao Deus gracioso, expresso tão bem na teologia paulina, a obra magna de Wright sobre teologia paulina finalmente saiu em português. Trata-se da trilogia Paulo e a fidelidade de Deus, lançada em 2021 pela Editora Paulus em parceria com a Editora Academia Cristã. Aqueles que conhecem Wright apenas pelas suas obras populares — nas quais ele parece um tanto repetitivo — precisam agora conhecê-lo como exegeta e biblista — certamente, um dos melhores do nosso tempo.
The Sophiology of Death: Essays on Eschatology: Personal, Political, Universal, de Sergius Bulgakov (Cascade Books, 230 páginas)
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Diogo Rosas G., escritor — De tempos em tempos, um tema ou um autor no campo da teologia transbordam os limites acadêmicos e irrompem no discurso público e na consciência da população. Ainda que seja possível identificar um ou outro catalisador para esse transbordamento, no mais das vezes há algo de desconcertante, quase misterioso, no pipocar de doutrinas complexas, oriundas de línguas antigas ou fora do mainstream, em postagens de redes sociais.
Nos últimos anos, um renovado interesse na academia por Orígenes – incluindo aí sua abordagem da doutrina escatológica da “restauração universal” ou “apocatástasis”, geralmente contrastada com a punição eterna no inferno para os condenados no juízo final — cruzou-se com um renovado interesse pelo teólogo da idade de prata russa Sergius Bulgakov, um dos principais defensores modernos de tal doutrina. Por uma série de características que os dois autores calham em compartilhar – sobretudo uma obra vasta e complexa, além do fato de algumas de suas teses terem sido condenadas como heréticas pelas autoridades eclesiásticas — é difícil imaginá-los como “populares”. E, no entanto, em tempos recentes, certos espaços das redes sociais e do debate teológico encontram-se repletos de menções ao “universalismo” e à “apocatástasis”.
É nesse contexto que o professor Roberto de la Noval traz à luz The Sophiology of Death, uma coleção de ensaios de Bulgakov precisamente sobre temas de escatologia. Os estudos sobre a restauração universal ocupam o centro do volume, mas, como indicado em seu subtítulo (Essays on Eschatology: Personal, Political, Universal), há nele também um elemento político, informado pela experiência do jovem Bulgakov ao abandonar a criação religiosa de sua infância pela militância marxista revolucionária na Rússia, com um excelente ensaio sobre “A alma do socialismo”. Finalmente, os leitores devem ter em mente que a biografia de Bulgakov — marcada por diversos encontros com a morte – é um elemento central em sua trajetória teológica, e o último texto do livro são as instruções deixadas por ele para o próprio funeral. Como uma compilação feita após a morte do autor e composta de ensaios (todos traduzidos e editados por de la Noval) de diferentes gêneros literários (há até uma homilia do sacerdote Bulgakov) e de períodos distintos de sua vida, o livro não é propriamente uma apresentação orgânica do pensamento de Bulgakov, funcionando antes como amostragem de sua produção sobre um tema específico. Sua grande contribuição é, precisamente, embasar com textos traduzidos diretamente do original russo o debate recentemente avivado sobre uma corrente escatológica, a restauração universal, minoritária na teologia cristã.
Natural Theology in the Eastern Orthodox Tradition, de David Bradshaw, Richard Swinburne (IOTA Publications, 216 páginas)
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Gabriel Tossato — Falar entusiasticamente sobre teologia natural, ao menos sem uma dose de reserva crítica, é um tanto incomum em meios ortodoxos contemporâneos. No entanto, a abertura para a discussão quanto ao lugar dos argumentos históricos da disciplina e seus desenvolvimentos recentes, seja nos meios continentais quanto analíticos, é um dos espíritos que permeia a arqui-aguardada coletânea de artigos organizada por duas figuras muito diversas teoricamente: David Bradshaw, acadêmico norte-americano e escritor do paradigmático livro Aristotle East and West: Metaphysics and the Division of Christendom, e Richard Swinburne, professor emérito de filosofia da Universidade de Oxford e um dos mais influentes defensores atuais de argumentos clássicos para a existência de Deus.
O livro dispõe quase cronologicamente de conteúdos que exploram desde as características dos argumentos patrísticos, marcados pelo contexto apofático e pela primazia da contemplação natural (θεωρία φυσική), que é dependente da vida ascética e possibilitante do conhecimento direto de Deus, passando pela análise do pouco conhecido argumento a partir da sustentação, de autoria do hesicasta São Gregório Palamás, até a exposição das formas de teologia natural de inspiração pós-kantiana nas escolas russas do século XIX, seguida por dois artigos magistrais sobre a múltipla tradição crítica, formada pelos teólogos gregos da “geração dos sessenta”, e nomes como Dumitru Staniloae, Zizioulas, Yannaras, Lossky, Bulgakov e outros, que, em diferentes níveis e modos, rejeitam a teologia natural.
Por fim, o volume termina com Swinburne apresentando um sumário de seus argumentos e do caso cumulativo para o teísmo em diálogo com a tradição patrística. A obra merece atenção especial por trazer conteúdos inéditos em línguas ocidentais, como os estudos de Paul L. Gavrilyuk sobre autores russos nunca traduzidos, e pela abrangência de posturas analisadas, que vão desde críticas severas de Christos Yannaras ao projeto de mundo medieval latino e sua adoção de uma postura mais conciliativa com o espírito contemporâneo, até a teologia escatológica de Zizioulas e crítica à fenomenologia.
Santidade, de John Webster (Editora Fiel, 141 páginas).
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Felipe Sabino, editor — Santidade não é apenas mais um livro que aborda a necessidade de os cristãos se conformarem à ética do cristianismo, conforme prescrita nas Escrituras. A proposta do livro é muito mais abrangente e inovadora, já que propõe a articulação e defesa de duas propostas: a “maneira pela qual a teologia cristã realiza a tarefa de fornecer um relato sobre a santidade” e o “conteúdo material desse relato”.
John Webster, gigante teólogo anglicano falecido em 2016, afirma logo em sua introdução que “o que é oferecido aqui é um pequeno exercício de teologia dogmática, uma dogmática trinitária de santidade” (p. 8, grifos do autor). Diferente de muitas obras que abordagem essa questão vital, a saber, de nos conformarmos à imagem de Cristo, Webster não recorre a sentimentalismo, chavões ou a platitudes. Antes, ao longo deste pequeno mas denso livro, o autor analisa teologicamente a importância e o fundamento da santidade. É um relato inspirador, cativante e permeado de afirmações que são pequenas pérolas teológicas; resta ao leitor resistir à tentação de sublinhar todas as páginas do livro para posterior meditação.
É, com efeito, alentador ver um teólogo da envergadura de Webster não capitular à negligência ou indiferença em relação ao papel da Escritura e da Igreja no seu trabalho teológico. Afinal, “a teologia é um ofício da igreja” (p. 10) e, ademais, a “teologia não é pensamento ou expressão livres… Teologia não é liberdade de expressão, mas discurso sagrado… Somente quando trabalhamos sob a tutela, autoridade e proteção da Igreja é que a teologia e livre” (p. 11).
Essa teologia edifica os santos de Deus “ao testificar do evangelho como promessa e afirmação da verdade. No trabalho teológico da igreja, o evangelho é articulado como a norma de louvor, confissão e ação da igreja, e a base da compreensão da igreja sobre a natureza e a história humana” (p. 14). Essa teologia, caso queira mostrar-se fiel ao seu propósito, deve concentrar-se em duas tarefas: a exegese e a dogmática. Diz-nos Webster: “A exegese é de importância supremamente crítica, porque [é] o principal instrumento por meio do qual Cristo publica o evangelho… Exegese é a tentativa de ouvir o que o Espírito diz às igrejas; sem isso, a teologia não pode nem começar a cumprir seu ofício” (p. 15).
Quanto à dogmática, trata-se de algo “complementar, mas estritamente subordinado à tarefa exegética. Não é um aprimoramento da Sagrada Escritura, substituindo a linguagem informal e ocasional da Escritura por formas conceituais que são mais organizadas, mais sofisticadas ou mais firmemente fundamentadas” (p. 16). E embora haja riscos e perigos nessa “sofisticação técnica”, tal tarefa “só é viciosa quando se deixa escapar do fim adequado da teologia, que é a edificação dos santos” (p. 17).
Ora, este é o primeiro livro de John Webster publicado em português – o primeiro de muitos, assim espero. Resistindo à tentação de reproduzir inúmeras frases do livro, restrinjo-me a apenas duas, que julgo suficientes para ter-se uma percepção da sofisticada abordagem teológica do autor:
“Persuadir nossa cultura de que a santidade é de suma importância para seu bem-estar exigirá não apenas a conversão da cultura, mas também a conversão contínua da igreja ao evangelho da santidade. Um aspecto crucial da santidade é o crescimento em concentração: a focalização da mente, da vontade e das afeições no Deus santo e em seus caminhos conosco. Este livro foi uma tentativa de tal concentração. No entanto, promover a concentração não é obra da teologia, mas de Deus, e, assim, é uma questão de oração.” (p. 351)
“Como Pai, Deus é aquele que deseja e propõe desde toda a eternidade a separação da humanidade como um povo santo, destinado à comunhão consigo mesmo. Como Filho, Deus é aquele que conquista essa separação da humanidade ao resgatá-la de sua contaminação e de sua escravidão à impiedade. Como Espírito, Deus é aquele que completa ou aperfeiçoa essa separação ao santificar a humanidade e trazê-la à reta comunhão com o Deus santo. Que seja assim conosco.” (p. 330)
Como talvez já se perceba a partir dessas breves considerações, Webster dedica-se ao tema da santidade tanto com a clareza de um dogmático quanto com o rigor de um acadêmico; no entanto, a obra se destaca sobretudo porque, em nenhum momento, perde de vista a relação viva e dinâmica entre santidade e vida trinitária, entre o povo eleito e santificado e o Deus triúno que não somente nos salva mas também nos santifica pela fé (Atos 26.18).