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Natal versus Excarnação

Nesta época do Advento e do Natal, nós celebramos a encarnação do nosso Senhor Jesus Cristo. A encarnação significa literalmente colocar carne. O eterno Filho de Deus assumiu a humanidade como um bebê em Belém a fim de crescer até à idade adulta e morrer pelos pecados do mundo. Esta morte e a subsequente ressurreição, a fonte da nossa salvação, pressupõem a encarnação. Sem a encarnação, não pode haver salvação.

Excarnação

O oposto da encarnação é excarnação, uma palavra cunhada por Charles Taylor¹ para descrever a inclinação moderna de limitar todas as questões significativas da realidade à mente. O corpo e o mundo material são simplesmente veículos para a razão e a imaginação. A excarnação se deve ao gnosticismo antigo, a primeira e mais perigosa heregia cristã que aflige a igreja e a cultura até os nossos dias.²

Enquanto Bíblica localiza os males do mundo no pecado humano, o gnosticismo colocava a culpa deles na própria criação. Uma divindade ignorante e maligna (o Demiurgo) rompeu com o verdadeiro Deus e criou a matéria, incluindo o corpo humano, contrariando os desejos de Deus. O verdadeiro Deus tentou enganar o Demiurgo ao inserir secretamente fagulhas de divindade nos corpos humanos. Para os gnósticos, a Queda não é ir da justiça para o pecado, mas do espírito para a matéria; e a salvação é a fuga do corpo e a reversão para puro espírito. Isso significa que o corpo humano e o mundo material são uma prisão da qual os iluminados devem escapar. Jesus não veio para salvar dos pecados, mas livrar da ignorância e conceder conhecimento (gnosis)., pela qual os iluminados podem aprender sobre o seu destino verdadeiro e excarnado. Para os cristãos, o homem é resgatado pelo Filho de Deus se tornar homem ao assumir (e morrer e ressuscitar) num corpo humano. Para os gnósticos, o homem é resgatado ao escapar deste corpo, depois da fagulha divina ser liberta para retornar aos lugares celestiais. O homem se torna Deus.

Excarnação é o processo da salvação do homem. Esta heresia é a antítese da ortodoxia bíblica.

Excarnação na Cultura

A excarnação é cada vez mais uma diretriz orientadora das elites ocidentais. Não tem nada de cristão nisso. A Bíblia ensina que as normas de Deus estão entrelaçadas com o cosmo. Elas incluem a gravidade e a termodinâmica. Elas incluem as leis econômicas de recursos escassos. Ademais, elas incluem as suas normas para a sexualidade humana. As elites de hoje não desejam simplesmente se rebelar contra essas leis. Elas querem dribá-las e depoia aboli-las. Elas perceberam que a única forma de fazer isso é deixar de lado a própria realidade. A visão deles da Boa Sociedade é uma em que todas as pessoas são iguais nas suas condições e os “marginalizados” são re-situados como o ápice da cultura. Se isso quer dizer redefinir a realidade, que seja. Se o corpo humano como biologicamente macho ou fêmea é um impedimento para a imaginação humana, então a cirurgia de “redesignação” sexual é uma opção. Se alguns humanos são mais espertos, mais bonitos ou mais sagazes do que outros, leis precisam ser impostas para penalizar os seus dons e reduzi-los para o nível de seus inferiores. Eventualmente, isso quer dizer que os seus dons precisam ser eliminados para criar verdadeira igualdade. Se as mulheres são naturalmente superiores para profissões de cuidado e homens são naturalmente superiores com soldados, os homens precisam cuidar de bebês e as mulheres precisam servir em combate. A TV e os filmes retratam flexíveis mulheres de 55 kg como especialistas em artes marciais que podem arrasar com guerreiros musculosos de 90 kg. O quão a ideia é ridícula é irrelevante; é a visão social que distorce a realidade que importa. O corpo proíbe o exercício da imaginação rebelde, de forma que o corpo precisa ser driblado e, se necessário, abandonado. A realidade não se conforma a visão da sociedade da elite, então a realidade é irrelevante. O paradigma da excarnação vê o corpo como um veículo para a pessoa, o “eu autêntico”. A pessoa, o eu e você reais, está dentro do corpo, é o “fantasma na máquina”. O corpo é como um automóvel que nos leva para lá e para cá. Há uma disjunção radical entre a pessoa autêntica e autoconsciente eo seu corpo. O corpo é simplesmente uma ferramente, como uma chave de fenda ou um garfo, ainda que seja uma ferramente altamente complexa.

Esta antropologia (visão do homem_ tem implicações gigantescas. Para começar, quer dizer que se o eu não estiver plenamente desenolvido, o corpo não importa. Isso significa que não deve haver barreira par ao aborto e a eutanásia e o suicídio assistido. Afinal, é o eu que é o que importa, não o corpo, Se não há eu autêntico (ou pessoa do lado de dentro), o corpo é descartável. Lembre: o corpo só está ali como um veículo para a pessoa.³ Este é duro preço que pagamos como sociedade por implementar a visão da excarnação.

Excarnação na igreja.

A Bíblia não exalta o espírito sobre a matéria; Jesus é Senhor do mundo invisível e visível (Cl 1.15-17). Contudo, desde as ideias pagãs da iferioridade do mundo material terem infectado o cristianismo, a igreja tem batalhado com a excarnação. Mesmo com a igreja orando “seja feita a tua vontade, assim na terra como nos céus” (Mt 6.10), muitos cristãos veem o mundo fora da igreja — economia, política, entretenimento, educação e arquitetura — como inevitavelmente “carnal” e inadequado para a influência cristã. Então a igreja se retrai para uma espiritualidade excarnada. A oração, o diálogo interior e a contemplação do céu são considerados espirituais, enquanto trabalhar para recriminalizar o aborto, deslegitimar o “casamento” entre pessoas do mesmo sexo, combater a pornografia e reduzir programas de roubaria do governo na forma de tributação confiscatória são relativamente irrelevantes e, na verdade, são uma distração das tarefas reais e excarnadas da igreja. Escapar do mal dentro da ordem criada ao invés de confrontá-la e vencê-la é a agenda excarnacional. O cristianismo é reduzido a um “hobby pessoal devocional”.4

Mas o Advento nos confronta sem rodeios e na cara com a verdade de que o mundo presente, imaterial e material, é amaldiçoado pelo pecado e deve ser redimido pela morte e ressurreição do nosso Senhor. O ser mais maligno do universo é puro espírito, mas Jesus nasceu e viveu e morreu e ressuscitou dentre os mortos e vive para sempre num corpo. Ele se interessa profundamente pelo mundo, incluindo o mundo material. Ele veio para curar os doentes e exorcizar os demônios dos corpos torturados. Confiar no Messias para a salvação é se entregar de mente, alma, corpo, todo o nosso eu, a ele (Rm 12.1-2).

Ele está interessado em purgar o pecado do rap de gângster e clínicas de aborto e agências fraudulentas de classificação de riscos e arquitetura Bauhaus quanto ele está em limpar corações e famílias e igrejas cristãs. O poder purificador do evangelho não leva simplesmente almas para o céu; ele transforma tudo que ele toca.

Conclusão

Neste tempo de Advento, valorize a vida encarnacional e descarte a visão excarnacional. O corpo e o mundo material não foram feitos para escaparmos deles, mas para nos alegramos e vencermos nele. Jesus é o Senhor de tudo, e é um Deus que não tem vergonha de nascer numa manjedoura no meio de animais da roça também não terá vergonhad e cuidar e redimir cada área da criação e da cultura atualmente sob o domínio do pecado. O natal é uma celbração da encarnação que tornou possível a morte corpórea expiatória e ressurreição corporal vitoriosa. A nossa esperança futura não é uma excarnação numa falsa visão medieval de bebês angelicais e auréolas e harpas no céu, mas dos novos céus descendo sobre uma nova terra purgada do pecado, onde Deus habitará eternamente conosco, o seu povo, numa terra profundamente material, mas sem pecado (Ap 21.1-4). 

 

 

¹ Charles Taylor. A Secular Age (Cambridge, Massachusetts and London, England: Belknap, 2007), p. 288.

² Benjamin Walker. Gnosticism, its History and Influence (Wellingborough, Northamptonshire, England: Aquarian Press, 1983, 1989).

³ Robert P. George, “Gnostic Liberalism” First Things, December 2017, p. 33-38.

4 Stephen C. Perks, The Great Decommission (Taunton, England: Kuyper Foundation, 2011), p. 20.

Original aqui.

Traduzido por Guilherme Cordeiro.