Traduzido por Felipe Barnabé
Enquanto fazia meu sinuoso percurso pela exposição imersiva Além de Van Gogh no Birmingham Jefferson County Civic Center alguns dias depois do Natal, uma questão incomodava-me. O que Vincent via quando olhava para o mundo? Que experiências ou ideias espreitavam por trás de seus céus rodopiantes, suas cores berrantes, suas figuras humanas de contornos sombrios, mas muitas vezes inexpressivas? Por vezes, imaginei captar indícios de terror no desespero de seu Café Noturno (1888) e no tremular de pesadelo das árvores. Vincent foi internado mais de uma vez. Seriam suas pinturas projeções de uma turbulência interior?
Não, de acordo com o pintor. Em cartas, Van Gogh afirmou que tentou capturar a beleza incandescente da natureza, a qual irradiava uma glória além de si própria. Porém, até mesmo uma descrição modestamente teológica da obra dele provocará protestos. Após treinamento teológico e um período de exercício ministerial entre os pobres, ele deixou para trás o calvinismo neerlandês de seus pais. Abandonou a igreja depois que seu chamado pastoral não foi renovado, desprezou a arte religiosa de seus contemporâneos e praticamente não pintou cenas bíblicas.
No entanto, Van Gogh não se tornou um artista secular. Em Van Gogh and Gauguin: The Search for Sacred Art, Debora Silverman apresenta o cristianismo estético do romântico holandês Allard Pierson, que encorajou artistas cristãos a cultivar uma “paixão pela realidade”. Como a arte é “puramente materialista”, dizia Pierson, a aspiração de ascender “além da matéria” é uma fraude. A vocação do artista é, ao contrário, “fazer-nos quase ver e sentir o mundo visível” como portador do “eterno”.
A teoria de Van Gogh ecoa Pierson. Embora não entendesse mais a Bíblia literalmente, ele encontrava inspiração nas “ideias sublimes” das Escrituras. Assombrado por Cristo, considerava Jesus como “um artista maior do que todos os outros” porque seu meio não era mármore, argila ou cor, mas “carne viva”. Cada canto da criação pulsa com a divindade. “Acho que às vezes vejo algo mais profundo, mais infinito, mais eterno do que o oceano na expressão dos olhos de um bebezinho quando acorda de manhã”, escreveu, acrescentando: “Toda a natureza parece falar… Não entendo porque todos não o veem e sentem; a natureza ou Deus o mostra para todo aquele que tem olhos, ouvidos e coração para entender”.
Uma vez que as coisas materiais podem mediar a grandeza do sobrenatural, a pintura é livre para flertar com as fronteiras da alegoria. Vincent repreendeu seu colega pintor Emile Bernard por não conseguir discernir o simbolismo cristão em camadas de Boi Dissecado(1655), de Rembrandt. Visualmente, a pintura nada mais é do que uma carcaça esfolada, mas ela evoca representações flamengas da festa do filho pródigo na parábola de Jesus, que por sua vez aponta para o Cristo crucificado que oferece sua carne como alimento para a humanidade pródiga. Van Gogh lembrou a Bernard que o boi era o símbolo tradicional de Lucas, o Evangelista, significando o artista que deve ser “tão paciente quanto um boi”.
Em sua própria pintura, Van Gogh também baseou-se quase imperceptivelmente em motivos bíblicos. No centro de seu Terraço do Café à Noite (1888) há um garçom vestido de branco, de pé entre onze convidados sentados às mesas, enquanto uma décima segunda figura vestida de preto escapa por uma porta. Atrás do garçom há uma janela, dividida em quatro vidraças por uma cruz que o garçom quase parece carregar no ombro. Essa pintura tem sido chamada de A Última Ceia de Van Gogh, mas suspeito que ele estava tramando algo mais sutil: aqueles com olhos para entender discernem insinuações da monumental Última Ceia todas as noites em cafés perfeitamente comuns de Paris.
O Semeador (1888) atinge seus efeitos de maneira igualmente oblíqua. Van Gogh admirava o O Semeador (1865) escuro e sólido de Jean-François Millet por sua “emoção sublime, quase religiosa”, mas aspirava retratar a cena com uma paleta pós-impressionista mais vibrante. Vicent conhecia e citava a parábola do semeador de Jesus, mas seu semeador não é o Filho do Homem, a semente não é a palavra, os pássaros não são demônios. Ainda assim, a pintura incorpora intencionalmente um “desejo pelo infinito, do qual o semeador e o feixe são os símbolos”. O terço superior da pintura é inundado de ouro, a luz do sol preenche o céu acima e o trigo bronzeado preenche abaixo. O semeador caminha sobre a terra arada, uma colcha de retalhos de azuis, vermelhos, marrons e brancos, lançando sementes amarelas, que podem ser pedaços de sol. As pinturas de campos de trigo e girassóis de Vincent mostram sementes douradas amadurecidas em uma colheita dourada, enquanto a terra se torna luminosa com o brilho do céu.
Se O Semeador semeia com a esperança de começos, os ceifeiros de Van Gogh trazem finais. A colheita é parabolicamente o fim dos tempos, mas os ceifeiros dele não são anjos nem os ceifadores sombrios das iluminações medievais. Em Campo de Trigo com um Ceifeiro (1889), o ceifeiro de Van Gogh quase desaparece no redemoinho amarelo do campo; ele está vestido de verde claro (a cor do céu), não preto, e seu rosto está totalmente visível. Nesta representação de “um pequeno ceifeiro e um grande sol”, o ceifeiro é a morte como descanso, que vem “quase sorrindo”. Toda carne é grama, sim, mas esta grama é adornada com uma glória maior que a de Salomão, e a colheita não é um momento de tristeza, mas de realização, quando o grão, completamente maduro, é recolhido aos celeiros.
Van Gogh escreveu certa vez a seu irmão Theo a respeito de seu desejo de “pintar homens e mulheres com aquele algo do eterno que o halo costumava simbolizar e que procuramos transmitir pelo brilho e vibração reais de nossas cores”. Van Gogh não rejeitou o sobrenatural, mas o naturalizou. O terror que existe em suas pinturas é o terror sublime evocado pela beleza misteriosa daquilo que as Escrituras identificam como a glória de Deus.
Peter J. Leithart é presidente da Instituto Teópolis.