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O mundo que o protestantismo criou

O protestantismo criou o mundo moderno – ou assim dizem os polemistas. Ao longo dos últimos séculos, debates entre e acerca de católicos e protestantes mudaram: não mais argumentamos pela veracidade ou superioridade desta ou daquela posição tanto quanto buscamos defender nossas respectivas tradições com base em seus frutos sociais e políticos. As sociedades protestantes são dinâmicas, progressistas, livres e ímpias, erastianas e libertinas? As sociedades católicas são ainda encantadas, tradicionais e moralmente sérias ou são supersticiosas, estupidificantes e retrógradas?

Gerações anteriores de teólogos e historiadores afirmavam que o protestantismo havia criado sociedades fundamentadas na razão, na liberdade e no indivíduo. Philip Schaff, o teólogo reformado e especialista acadêmico em Patrística que viveu no século XIX, defendia que, embora o protestantismo tenha produzido o “falso e odioso” racionalismo, produzira também aqueles elementos do racionalismo que “serviram para derrubar os muitos e falsos preconceitos e… fez várias contribuições de valor permanente para a história e crítica”. Ademais, Schaff argumentava, a “Igreja Romana” não “respeita suficientemente o mundo em seus direitos divinos, e busca sujeitá-lo a si de um modo violento, antinatural e prematuro”; em contrapartida, “o mundo, desde o século XVI, alcançou um nível de cultivo que jamais possuíra antes. Os Estados protestantes são incomparavelmente superiores aos [Estados católicos]; demonstram, ao mesmo tempo, mais ordem, obediência e satisfação”. O feito diferencial do protestantismo, cultural e politicamente falando, foi escapar da prisão da subjugação papal. O protestantismo rejeitou a superstição papal, um pré-requisito para a gênese do mundo moderno. Portanto, Schaff tece associações claras e causais do protestantismo para com a razão, liberdade, prosperidade e avanço.

Uma safra mais recente de genealogistas, incluindo Alasdair MacIntyre, Brad Gregory e Charles Taylor, também olha para o protestantismo como o progenitor dessas características distintivas da “modernidade”, embora associem modernidade a um regime diferente com conotações ambivalentes: a secularidade. Para eles, o protestantismo ainda mantém uma relação causal para com a modernidade, mas esta não é mais considerada com um bem inequívoco. Brady Gregory defende que o “naturalismo cientificista está profundamente ligado à univocidade metafísica”, e esta, por sua vez, difundiu-se em parte porque a Reforma rejeitou a noção de que “o Deus transcendente se manifesta no e por meio do mundo natural”. O protestantismo gera pois uma revolução metafísica.

MacIntyre, por seu turno, diferencia o “esquema moral” do medievo europeu – a lei natural teleológica e aristotélica – com a “nova concepção de razão” do protestantismo, que afirma que a razão caída “não pode fornecer… uma compreensão genuína da finalidade do homem”.

Diante disso, a teologia protestante afirma uma queda noética – e uma queda noética destrói a ética teleológica. O protestantismo gera pois uma revolução ética. A explanação de Charles Taylor acerca da relação entre protestantismo e modernidade é a mais sofisticada das três, e merece ser discutida com mais atenção. Taylor enfatiza o “movimento rumo ao desencantamento”. Em resumo, acreditava-se, em determinado momento, que a realização da vida humana, aliás de toda a vida, existia para além do alcance das possibilidades puramente humanas, ao passo que agora é possível colocá-la “dentro da vida humana”. No mundo encantado da pré-modernidade, o sentido estava fora de nós e operava em nós; o mundo estava repleto de “forças” e objetos que possuíam poderes: demônios, santos, relíquias, a Hóstia, os objetos amaldiçoados ou benzidos. Os poderes e forças possuíam sentido objetivo, e o impunham sobre os seres humanos. O fato de que o poder e o sentido residiam tanto dentro quanto fora das pessoas, além do fato de que tanto o sentido e poder internos como os externos podiam condicionar as pessoas, tornava os seres humanos “porosos”. Não havia uma fronteira rígida entre minha mente e o mundo externo (incluindo meu corpo).

Em contrapartida, com a modernidade, surge o eu “protegido”, que nos permite “desatrelar-nos de tudo que está fora da mente”, consigná-lo a um mundo externo que não tem sentido fixo nem significado existencial. O que isto porém tem a ver com a modernidade secular? Taylor apresenta uma série de argumentos, mas um deles é essencial para este nosso livro. Quando o eu é poroso e sujeito a poderes “que estão lá fora”, a comunidade tem um interesse particular de guardar-se contra esses poderes, de modo que a observância religiosa se torna uma questão de sobrevivência. O eu protegido, contudo, faz com que isso não seja mais essencial – afinal, não há realidades espiritualmente carregadas contra as quais se defender. Quando o mundo é encantado e os seres humanos são vulneráveis, eles desenvolvem uma “boa magia” (historicamente, a magia da igreja, que consiste em sacramentos, atos sacramentais, relíquias e que tais) para contrapor-se à “má” magia; os vários movimentos de reforma, culminando na Reforma Protestante, produziram o eu protegido e derrubaram esse sistema mágico. A comunidade não mais necessitava salvaguardar-se contra o encantamento ruim, o que significa que não mais precisava orientar-se por Deus e pela igreja. O protestantismo gera pois uma revolução cultural e política.

A afirmação de que o protestantismo gera a revolução política já foi desenvolvida várias vezes; talvez o protestantismo, particularmente na Revolução Americana, tenha secularizado e assim, paradoxalmente, sacralizado o Estado; talvez o protestantismo tenha sujeitado a igreja ao Estado, usurpando a independência eclesiástica; talvez o protestantismo tenha fundido igreja e Estado ao idealizar uma comunidade cristã; e assim por diante. As características particulares desses argumentos têm pouca importância. Mas há uma linha que perpassa todas essas narrativas: a associação do protestantismo à revolução, à ruptura de laços religiosos e metafísicos que uniam diferentes nações europeias, que atrelavam indivíduos à religião de sua comunidade, reuniam passado e presente, ligavam céu e terra.

Mas e se essas narrativas, de um modo crítico, interpretam mal não só a Reforma, mas o caráter da própria modernidade? Joseph A. Josephson-Storm contestou a noção mesma de uma “modernidade” ou “desencantamento” coerentes. De acordo com Josephson-Storm, o termo modernidade não descreve um evento ou uma era. A modernidade é um signo dúplice. Primeiramente, como evidenciado pela inabilidade dos historiadores em estabelecer uma datação relativa para o período moderno, não descreve um conjunto de tendências intelectuais ou desenvolvimento materiais, mas simplesmente significa a ruptura com o passado. A modernidade é “não-pré-modernidade”. Em segundo lugar, é um significante espacial: “designar uma cultura de moderna é atrelá-la à novidade e consignar seu oposto à colonização ou à lata de lixo da história”. Em suma, a modernidade não é um descritor, mas um signo a serviço de um projeto – o projeto de realizar a modernidade.

Josephson-Storm argumenta que a modernidade não só é uma categoria suspeita como tampouco “experimentou o desencantamento [ou] uma perda do mito”. Embora o secularismo seja frequentemente apresentado como um tipo de protestantismo, e o protestantismo seja interpretado como antimágico, a magia jamais desapareceu. Para perceber isso, precisamos apenas indagar o que significa “magia”. Como Josephson-Storm argumenta, as categorias “religião” e “ciência” foram estruturadas como oponentes, e essa oposição gerou uma terceira categoria – a superstição (interpretada de forma negativa) ou mágica (interpretada de forma positiva). O protestantismo, enquanto fenômeno modernizador, torna-se o mecanismo do triunfo da ciência sobre a religião e superstição.

O problema básico com essa representação é que a mágica jamais foi derrotada: nem a ciência nem a religião foram capazes de vencê-la, mesmo que acadêmicos tenham teorizado que o protestantismo gerou a ciência que a destruiu. Os próprios teóricos do desencantamento eram, em muitos casos, apaixonados pelo oculto – apadrinhavam médiuns, davam ouvidos a espíritos, praticavam a magia – e segmentos consideráveis hoje em dia continuam apaixonados.

À luz disso, devemos indagar: se é o caso de que as descrições do relacionamento do protestantismo com a modernidade estão fundamentalmente mal orientadas, como deveríamos, portanto, entender o protestantismo? Dito de outro modo: se o significado cultural e social do protestantismo não deve ser descrito simplesmente com base naquilo que nossa sociedade se tornou, em que base, portanto, deveríamos entendê-lo? Podemos ir além das narrativas da disjunção protestante e da disfunção da Igreja/Estado, investigando antes, a seu próprio modo, a visão política, cultural e social do protestantismo?

A pesada tarefa do novo livro do Instituto Davenant, A Protestant Christendom? The World the Reformation Made [Uma cristandade protestante? O mundo que a Reforma criou], é tornar essa visão mais clara, e sempre com o olhar voltado para aplicá-la em nossos próprios dias. O livro está dividido em três partes principais: Igreja e Estado, política e cultura, e economia e justiça. Juntos, os autores compuseram ensaios, em cada seção, que fornecem um panorama da posição protestante clássica e esboçam implicações contemporâneas dessa posição. Começamos na Reforma, mas não terminamos aí.

O que se torna de pronto evidente na primeira seção do livro, a qual trata da Igreja e Estado, é isto: o protestantismo clássico rejeita a nação secular. Conforme Calvino assinalou, nem mesmo os pagãos negavam suas obrigações civis para com os deuses, e quase todas as confissões protestantes afirmam, nas palavras da Confissão de Fé de Westminster, o princípio de que o magistrado “possui autoridade, e é seu dever, para impor-se ordem, que a unidade e paz sejam preservadas na Igreja… que todas as blasfêmias e heresias sejam suprimidas; todas as corrupções e abusos na liturgia e disciplina sejam impedidas ou reformadas”.

Os reformadores não rejeitavam a proposta de que a sociedade deveria ser ordenada para Deus, e, como suas contrapartes católicas romanas “supersticiosas” ou mágicas”, acreditavam que esse ordenamento era de extrema importância. De modo crucial, contudo, os protestantes não afirmavam que esse ordenamento implica a subordinação de magistrados terrenos à Igreja militante. Lutero e seus herdeiros ressaltavam o fato de que a Igreja está no mundo. Palavra e sacramento são realidade espirituais; já o exercício de sua jurisdição não o é. Portanto, quando realiza juízos sobre questões temporais, a Igreja age apenas como mais um poder temporal. O que se segue disso? Se a ação da Igreja no mundo é terrena, então a exigência de que magistrados submetam seu juízo à Igreja é uma usurpação premeditada da autoridade que Deus lhes concedeu. Assim, na concepção de Lutero sobre os três estados, cada um deles – o magistrado civil, a Igreja e a família – possui sua própria integridade e independência, pois cada um é criado por Deus para o desenvolvimento humano. O principal objetivo político dos reformadores não era a secularização da nação, mas sim frustrar a tentativa do papado de usurpar a autoridade do magistrado e tornar-se um superpoder imperial e pseudoespiritual. Em resumo, os protestantes buscavam reestabelecer a ordem eclesial constantiniana.

De igual modo, para os reformadores, a autoridade do magistrado não estava limitada ao exercício da justiça num sentido limitado, como se dava nas cortes eclesiásticas católicas romanas nos princípios da modernidade, quando se condenava homens por heresia apenas para entregá-los ao rei a fim de serem queimados. Pelo contrário, a autoridade do magistrado se estende a todas as questões de justiça conforme estabelecidas na lei natural e nos Dez Mandamentos: inclui a espada, mas abrange também a regulação da vida temporal da Igreja, como visto no Antigo Testamento e na ordem imperial constantiniana. Embora os reformadores certamente concebessem o magistrado defendendo a religião verdadeira, devemos ser cuidadosos em assinalar as importantes distinções, nesse domínio, entre a teologia política protestante clássica e o integralismo católico romano. A doutrina protestante, contudo, desenvolveria, em algum momento, seu entendimento da autoridade do magistrado em relação à Igreja – criando espaço para um protestantismo sem igrejas oficiais. Os batistas se aliaram aos deístas a fim de derrubar a religião oficial, e James Wilson, um dos pais fundadores [dos Estados Unidos], desenvolveu uma versão da tradição da lei natural em consonância ao liberalismo democrático.

Nas áreas política e cultural, o protestantismo devia imensamente aos ideias renascentistas de erudição e habilidade nas letras humanas. Os reformadores valorizavam a sabedoria e, particularmente, a prudência, na aplicação das leis. Esta é talvez umas das mais importantes contribuições do protestantismo para nós hoje: numa era em que a direita e a esquerda são motivadas por ideologias e teorias (do progresso, do livre mercado, da autonomia corporal), o protestantismo salienta que a aplicação não ideológica da lei à desordem da vida humana, por parte de um governante sábio, é crucial. Nestes dias, assim como durante a Reforma, deslocamentos sísmicos na estrutura da economia implicavam que novos problemas surgissem rapidamente, e era essencial que se oferecesse novas soluções. A Reforma testemunhou a ascensão da classe dos comerciantes; ao passo que nós vemos o esvaziamento da classe média. A Reforma testemunhou o cercamento de terras comuns; vemos, porém, bens públicos e instituições, como as universidades públicas, ficaram cada vez mais fora de alcance. A Reforma viu a criação de novos tipos de pobreza; vimos a habilidade que a pobreza tem de manter-se obstinadamente presente em meio a uma abundância inconcebível. Mesmo quando as soluções dos reformadores se mostram erradas, são auxílios incalculáveis quando buscamos tratar seriamente nossos próprios problemas.

Para entender o protestantismo tal como foi e pode ser, devemos lançar fora de nossas mentes muitos argumentos populares que atrelam o protestantismo à “modernidade” ou à “secularidade”, sejam eles adulatórios ou condenatórios; os argumentos em voga foram julgados e achados em falta. Isso não significa dizer que o protestantismo não tem relação com a modernidade, mas suas influências são bem mais sutis e, certamente, menos diretas que tietes ou detratores gostariam de crer. Mas isto é sadio: tão logo esqueçamos o que pensávamos saber sobre o protestantismo, podemos aprender a deixá-lo falar conosco novamente. Talvez as vozes de nossos antepassados possam ainda desafiar-nos e surpreender-nos. Talvez a Cristandade protestante ainda não tenha terminado seu trajeto.

 

Tradução: Fabrício Tavares de Moraes

Original: https://adfontesjournal.com/web-exclusives/the-world-the-reformation-made/