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Precisamos de uma Retomada do Neocalvinismo?

Traduzido por Fabrício Tavares

O que é o neocalvinismo? Ora, não devendo ser confundido com o “novo calvinismo” (a ressurgência das doutrinas reformadas da graça em meio aos grupos evangélicos estadunidenses, no século XXI), o neocalvinismo é um movimento teológico e eclesiástico que surgiu nos Países Baixos durante os séculos XIX e XX e que se tornou uma tradição teológica ainda hoje viva. Seus proponentes foram Abraham Kuyper e Herman Bavinck, os quais buscavam recuperar e aplicar a ortodoxia reformada no mundo moderno e sempre cambiante em que viviam.

            Desde seu surgimento, o neocalvinismo foi-se variegando. Por vezes, em razão de suas muitas ramificações, é colocado na mesma categoria da teologia do “transformacionismo” – isto é, a visão de que os cristãos são chamados por Deus para primeiramente redimir cada área da vida para o senhorio de Cristo, muitas vezes negligenciando a igreja local e a ênfase na pregação. É possível identificar o neocalvinismo a uma “filosofia reformacional” produzida por pensadores como Herman Dooyeweerd e D. H. Th. Vollenhoven. Outros podem ainda simplesmente associar o neocalvinismo a uma perspectiva culturalmente engajada mas teologicamente débil acerca da vida cristã.

            Mas essas ramificações não representam o neocalvinismo em sua forma original. Em nosso livro prestes a ser publicado, bem como em nosso podcast (Grace in Common), buscamos eliminar a ambiguidade do termo e ampliá-lo mediante uma demonstração de suas raízes teológicas. Propomos que é importante que o cristianismo do século XXI aprenda com esse antigo movimento. Nesse sentido, destacamos três traços que auxiliam nessa proposta.

1. O calvinismo é uma visão holística do mundo e da vida.

Embora o evangelicalismo estadunidense contemporâneo reconheça que o calvinismo está ligado aos chamados Cinco Pontos no acrônimo TULIP (em inglês), “reformado” é frequentemente concebido como um termo mais amplo, católico. Refere-se ao princípio da subscrição confessional (por exemplo aos Símbolos de Westminster ou às Três Formas de Unidade), à teologia aliancista e a associações eclesiais. 

Em outras palavras, o “calvinismo” é muitas vezes tido como um termo mais limitado do que “reformado”. Bavinck e Kuyper, contudo, pensavam justamente o contrário. Embora a ortodoxia reformada esteja relacionada à identidade teológica ampla e confessional das igrejas reformadas, o calvinismo diz respeito a toda uma visão de mundo-e-vida:

O termo reformado expressa simplesmente uma distinção religiosa e eclesiástica; é uma concepção puramente teológica. O termo calvinismo possui uma aplicação mais ampla e denota um tipo específico nas esferas política, social e civil. Representa aquela visão característica de vida e do mundo como uma totalidade – visão esta que se originou na poderosa mente do reformador francês.

            À vista disso, as célebres Palestras Stone (reunidas e publicadas como Calvinismo) propuseram o calvinismo como um “sistema de vida” holístico, em competição com outros sistemas de vida, sendo um deles o modernismo. Essa inspiração no trabalho de teologia pública levado a cabo por Calvino em Genebra não implica que Kuyper e Bavinck estavam buscando mimetizar a obra do reformador (o neocalvinismo não é paleocalvinismo). Pelo contrário, extrai de Calvino o instinto de que a teologia reformada deve ter consequências públicas reais – e para Kuyper e Bavinck, significava pelo menos mostrar ao mundo moderno que o cristianismo é o melhor fundamento e a fonte histórica para certos ideais modernos, por exemplo o pluralismo e a liberdade de consciência.

            Os cristãos estadunidenses provavelmente conhecem o termo “cosmovisão”; mas para a primeira geração de neocalvinistas, uma cosmovisão não se reduzia a um conjunto de crenças ou às suposições inarticuladas de um indivíduo. Ao contrário, envolve a totalidade do eu, tanto mente quanto coração. Daí Bavinck e Kuyper tratarem de uma visão de mundo (intelecto) e vida (coração) em vez de uma simples interpretação intelectual do mundo. As cosmovisões tampouco são redutíveis ao desconhecido, ocultas no interior de outras crenças nucleares no subconsciente. Antes, desenvolver uma visão de mundo-e-vida cristã é conscientemente buscar o objetivo de uma percepção objetiva do mundo à luz do Deus triúno. Nossa analogia favorita é a que afirma que a formação de uma cosmovisão é mais semelhante à confecção de um mapa ao longo do tempo do que a colocar de súbito um par de lentes perante os olhos. Desenvolver uma visão de mundo-e-vida é um trabalho coletivo.

            A cosmovisão cristã é demasiadamente rica para ficar contida numa nação, num só povo ou numa expressão individual da fé cristã. Exige a colaboração arrazoada de cristãos em todas as eras e lugares, numa diversidade de áreas. Em outras palavras, a formação da cosmovisão exige atenção à catolicidade (universalidade) da fé cristã.

2. O calvinismo conclama-nos a sermos ortodoxos porém modernos

            Se os reformadores buscavam demonstrar que os protestantes eram mais católicos, isto é, mais enraizados na Bíblia e na igreja antiga do que suas contrapartes católicas romanas, Bavinck e Kuyper argumentavam, por sua vez, que a catolicidade não significa simplesmente enraizamento no passado, mas também abertura ao presente e ao futuro. Se o cristianismo é verdadeiro, então todas as coisas humanas, a despeito das fés professadas, inevitavelmente ecoarão algo da cosmovisão cristã. O mote neocalvinista não é “Sem Platão, sem Cristo”, mas sim “Sem Cristo, sem Platão”.

            Ademais, isso significa que mesmo que o modernismo secular possa opor-se explicitamente à fé cristã, a modernidade em si ainda reterá, irrefletidamente, as verdades cristãs das quais não pode escapar e manifestará as dádivas da graça comum de Deus. A tarefa cristã não é, pois, lutar em prol do retorno de uma era de ouro (pois algo assim não existe), mas sim continuar a demonstrar a perene relevância do cristianismo para a pessoa moderna e aprender com o pensamento moderno, onde quer que venhamos a nos deparar com a verdade. Conforme Bavinck assinala:

A teologia não necessita de uma filosofia específica. Não é per se hostil a qualquer sistema filosófico e, a priori e acriticamente, não dá prioridade à filosofia de Platão ou a de Kant, ou vice-versa. Mas traz sim consigo seus próprios critérios, testa todas as filosofias por meio deles e toma para si o que julga verdadeiro e útil.

            Conforme se argumentou em um de nossos recentes livros, a metodologia do neocalvinista é “ortodoxa porém moderna”. Mas como exatamente demonstramos o caráter ortodoxo porém moderno do calvinismo?

3. O calvinismo afirma que Jesus é Senhor, e não os cristãos.

            Anteriormente, mencionamos que o neocalvinismo é muitas vezes confundindo com o “transformacionismo”, e outros podem mesmo pensar numa associação com a “teonomia” ou com a busca pelo reestabelecimento de uma igreja nacional (afinal de contas, Kuyper foi Primeiro-Ministro nos Países Baixos). Mas Kuyper e Bavinck opunham-se a todos esses três entendimentos equivocados. No entanto, há razões para essa confusão. Atenta-te, por exemplo, para este apelo de Bavinck:

Nesse ponto, o evangelho se realiza plenamente, chega à sua verdadeira catolicidade. Não há nada que não possa ou que não convenha ser evangelizado. Não apenas a igreja, mas também o lar, a escola, a sociedade e o Estado são postos sob o domínio do princípio do cristianismo.

            De igual modo, poder-se-ia apontar para o kuyperismo mais citado contudo mais mal compreendido: Jesus reivindica que “todo centímetro quadrado” (na verdade, o original dizia “a largura de um polegar”) está sob seu senhorio.

            Certamente Bavinck e Kuyper pensavam que, uma vez que o cristianismo renova os indivíduos, as culturas e instituições das quais os indivíduos fazem parte serão também fermentadas. Eles acreditavam que a fé é importante para o trabalho e para o restante da vida. A graça de fato restaura a natureza, afinal de contas. O cristianismo confirma o modo natural (ou melhor, criacional) de formação das relações humanas e da sociedade.

            Como indivíduos restaurados a Cristo, eles reconhecem que Cristo é Rei. Contudo, a igreja deve reconhecer que a presente ordem é o tempo da graça comum e não o reino final (escatológico) de Deus. Portanto, quando cristãos indagam: “em que momento estamos?”, os neocalvinistas respondem que é o tempo da paciência de Deus, um tempo de testemunho do reino. Apenas a vinda de Cristo pode unificar a família, Estado e igreja num único organismo vivo. Por conseguinte, para Bavinck e Kuyper, um governante cristão reconhece a distinção entre a igreja forjada pelo Espírito, o mundo sustentado pela graça comum e o Estado como ministro da justiça de Deus.

            Essa distinção de esferas concede liberdade na era do pecado e permite que o testemunho do reino floresça em cada domínio da vida. Essa visão é produto da cosmovisão cristã. Com efeito, uma das famosas palestras de Kuyper é um argumento para demonstrar que o “calvinismo é a fonte e baluarte” de nossa democracia e liberdades. Isso significa igualmente que o neocalvinismo tem os recursos para fundamentar o bem do pluralismo religioso sem sucumbir ao relativismo modernista.

O caminho a seguir

            A igreja frequentemente se indaga: “como permanecemos fiéis à nossa confissão ao mesmo tempo que lidamos com o mundo? Como poderíamos desenvolver comunidades distintamente cristãs e, no entanto, produzirmos frutos para a sociedade e para o bem comum? Como podemos entender a diversidade da igreja cristã e a unidade que nos coere?”

            Nossa sugestão é que o neocalvinismo, especialmente como articulado pelos líderes de sua primeira geração, possui recursos para que o cristão navegue por essas questões difíceis e perenes, ao mesmo tempo que resiste à tentação ou de evadir-se do mundo (separatismo) ou de conformar-se ao mundo (transigência).

Fonte: Do We Need a Revival of Neo-Calvinism?

Podcast dos autores: Grace in Common