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Reforma

Tradução: Thiago Francisco

Fonte: Reformation

A Reforma Protestante, um movimento que tocou ou transformou a mentalidade e a cultura em toda a extensão da Europa, deve inevitavelmente ter diferentes histórias em diferentes cidades, países, classes sociais e grupos linguísticos. Seria impossível tentar fazer justiça à complexidade do fenômeno como um todo. Como a Reforma no Reino Unido tem uma importância excepcional para nós da América do Norte, vou dedicar a maior parte do meu tempo a esse segmento específico dela — não a Tudor rompendo com o papado, mas aos puritanos e separatistas, aos primeiros imigrantes de nossas praias. Admitindo que o exemplo de Lutero e seus escritos tiveram uma grande influência no Reino Unido, uma maior influência, para os nossos propósitos, foi a de Jean Calvin, mais conhecido como João Calvino, reformador francês do século dezesseis, cuja carreira foi desenvolvida em Genebra.

Calvino estava numa segunda geração da Reforma Europeia, e sua Institutas da Religião Cristã apareceu pela primeira vez em 1536, quase vinte anos depois de Lutero ter publicado suas teses. Importantes trabalhos de Calvino foram publicados em inglês tão logo foram escritos, e foram amplamente divulgados durante a sua vida. A própria Reforma demorou um pouco mais para chegar na Inglaterra, mas quando chegou, chegou com sangue nos olhos, finalmente conduzindo, no século dezessete, o país a uma guerra civil e a uma migração em massa de puritanos à Nova Inglaterra. A Reforma Protestante tinha tido importantes precursores no Reino Unido, mais notadamente no trabalho do professor de Oxford, John Wycliffe, uma figura central no processo de fazer a primeira tradução completa da Bíblia ao inglês, em 1386.

A história da Reforma é em grande medida a história de livros e publicações, uma resposta ao grande estímulo à vida intelectual que foi dado pelo surgimento da imprensa. Ela foi, em grau considerável, o trabalho de professores, homens de letramento excepcional, que estavam empenhados em tornar a literatura central de nossa civilização acessível ao entendimento dos iletrados, daqueles que não podiam ler ou compreender o latim. Lutero realizou a sua profundamente influente tradução das Escrituras, que se tornou a base para o desenvolvimento do alemão como uma língua literária. Calvino não traduziu a Bíblia ao francês — quem o fez foi seu primo, Pierre Robert. Para os propósitos de seus comentários, Calvino fez traduções do hebraico e do grego ao latim. Porém, escreveu e pregou em francês. O trabalho de Calvino foi tão lido em sua época, que ele é creditado por ter criado o francês, enquanto língua literária e discursiva, também como língua internacional. A influência dele e de Lutero são comparáveis ao impacto da tradução da Bíblia para a língua inglesa, geralmente atribuído à tradução King James ou à Versão Autorizada. Então, uma das consequências mais imediatas e consideráveis da Reforma Protestante foi a emergência das grandes línguas modernas, que saem da sombra do latim para apresentar toda a sua beleza, poder e dignidade, demonstradas plenamente no uso ambicioso que delas foi feito.

O domínio cultural do latim persistiu mesmo já havendo um grande período de poesia inglesa vernacular no século catorze, quando Geoffrey Chaucer, John Gower, William Langland e Julian de Norwich floresceram. É difícil imaginar agora um mundo no qual virtualmente todas as coisas importantes — a lei, o conhecimento humano, a religião e a ciência — estavam restritas à língua conhecida somente por uma minoria educada. O domínio do latim tinha a vantagem de tornar a classe letrada mutuamente inteligível fora das fronteiras de suas nacionalidades. Essa vantagem, no entanto, vinha ao custo da exclusão da grande maioria das pessoas de participaram dos problemas centrais de sua própria civilização. E esse domínio foi imposto pelo desprezo que se tinha pelas línguas comumente faladas, e pelas pessoas comuns, que utilizavam essas línguas. Thomas More foi mordaz no seu entendimento dessa questão. Apesar dos exemplos de John Gower e Julian de Norwich, More zombava da tradução de William Tyndale, que verteu agape em amor ao invés do convencional caridade. Amor, ele dizia, era uma palavra que não deveria ser usada de “jeito nenhum”. Esse é o mesmo William Tyndale que fez traduções do Novo Testamento e de porções do Antigo, que se tornaram a base para todas as subsequentes traduções inglesas da Bíblia.

Não ocorreria a nós agora achar a palavra “amor”, tão conhecida como é, inadequada ao contexto do sagrado. Esse é um exemplo das transformações trazida pela Reforma, que resultaram da eminência do vernacular, e um aspecto da adoção do secular, algo que sempre é identificado com a Reforma. Thomas More foi um homem de grande influência sobre o rei Henry VIII. Suas objeções ao trabalho de Tyndale o levaram a ordenar que Tyndale fosse queimado numa estaca, e assim o foi, apesar de seu martírio ser menos notório que o do próprio Thomas More, conhecido por ter sido, anos mais tarde, decapitado por se recusar a reconhecer o rei Henry como o cabeça da Igreja da Inglaterra.

Todos esses conflitos e denúncias, todas essas polemicas amargas e violências, nos levam a nos distrair do mais impressionante e belo fato: os homens letrados na Boêmia, Alemanha, França e Reino Unido, que articularam a fé da Reforma e criaram os seus documentos centrais, eram devotos do trabalho de remover as barreiras entre letrados e iletrados, ao tornarem a religião cristã plenamente inteligível nas línguas comuns. Eram devotos ao trabalho de acabar com as vantagens, que eles mesmos desfrutavam, ao tornarem o conhecimento amplamente disponível a todos por meio de traduções e publicações.

As línguas modernas certamente se beneficiaram ao serem trazidas à literatura por estes extraordinários eruditos e humanistas. Mas o mais notável é que esses escritores perceberam a beleza nas falas comuns, o discurso distinto de suas regiões variadas, e produziram uma beleza fiel aos usos que eles próprios faziam dessas línguas. Para ser sensível às qualidades estéticas de qualquer coisa advinda de uma cultura estigmatizada como ignorante, ou vulgar, nos dois sentidos da palavra, requereu-se deles um respeito, e uma afeição, capaz de superar tais preconceitos. A habilidade de escutar o poder e a elegância dessas línguas deve ter vindo de forma simultânea ao impulso de honrar a generalidade das pessoas, dando-lhes, em primeiro lugar, a Bíblia.

A tradução, do século catorze, da Vulgata Latina, associada ao professor de Oxford, John Wycliffe, circulou amplamente, e é um documento importante por si só. Tenho lido que essa versão é desprovida dos valores literários das traduções posteriores porque manteve-se perto demais do latim original. Eu não posso confirmar isso a partir da minha própria leitura. De qualquer forma, sua grande influência na literatura foi, talvez, indireta, desde que estabeleceu ou encorajou o movimento chamado de Lollardismo. Os lollardos, também conhecidos como “pregadores pobres”, vagavam pelo interior do país, pregando e ensinando por meio da Bíblia de Wycliffe, que era claramente adequada para a transmissão da simples, mas radical, força dos Evangelhos: “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.”[1]

O século catorze foi um tempo de grandes dificuldades e profundas guerras civis e religiosas entre os mais pobres da Inglaterra. Nos anos de 1348 a 1350, a Peste Negra assolou e reduziu as populações. Em 1381, Wat Tyler liderou a Revolta Camponesa, uma grande, mas em última instância fracassada, insurreição cujas as demandas incluíam o fim do feudalismo. O Lollardismo surgiu exatamente nessa época. Foi um movimento profundamente popular, crítico ou indiferente a muitos dos ensinamentos da Igreja daquele tempo, e que clamava por uma exclusiva autoridade das Escrituras acima do papado, como o próprio Wycliffe parece ter feito. A resposta parlamentar veio na forma de um ato intitulado De Haeretico Comburendo, que declarou que aqueles que continuasse a exercer “as suas perniciosas doutrinas e ensinamentos… dia após dia… com o objetivo de destruir toda ordem e normas do direito e razão”, se não se arrependessem de seus erros, seriam queimados “diante das pessoas, num lugar alto… para que tal punição provoque medo nas mentes dos demais”. Apesar de ter sido ferozmente suprimido, os lollardos persistiram até a época da Reforma. O próprio Wycliffe, que morreu de morte natural, em comunhão com a Igreja Católica, e já descansava em seu túmulo há anos, foi declarado um herege, desenterrado e queimado.

O poeta e pregador William Langland, contemporâneo de todos esses eventos, escreveu o longo e visionário poema Piers, the Ploughman[2], em inglês medieval, entre 1362 e 1394. Uma das vozes do poema, descrevendo teólogos num jantar, diz: “Enquanto algum pobre infeliz talvez chore no portão, atormentado pela fome e sede e tremendo com o frio; ainda, ninguém o recebe ou alivia o seu sofrimento, apenas o enxotam como um cachorro. Pequeno o amor que podem dar ao Senhor, que a eles tanto conforto concedeu, se é assim que compartilham com o pobre! Se o pobre tivesse não mais misericórdia do que o rico, todos iriam para a cama com as barrigas cheias. Pois as fileiras desses grandes teólogos estão abarrotadas com o nome de Deus, mas Sua misericórdia e trabalho são encontrados com os povos humildes”.[3]

Complexa como a história é, pode-se razoavelmente dizer que a Bíblia entrou para o inglês como um documento subversivo. Ela continuou a ser um documento proibido na Inglaterra por mais de cem anos, ao menos perante a lei. Enquanto isso, lá pela Alemanha, o pastor William Tyndale trabalhava em sua tradução, do original grego e hebraico para a língua falada em seu tempo. Tyndale poderia estar consciente das consequências de seu trabalho apenas para si. Ainda, de acordo com o livro Acts and Monuments of the Martyrs, escrito no século 16 por John Foxe, enquanto discutia com um homem letrado em um jantar, Tyndale disse algo que qualquer lollardo concordaria: “se Deus poupar a minha vida, em alguns anos farei com que o menino que dirige o arado saiba mais da Escritura do que vós”. Acts and Monuments é um compêndio de anedotas sobre heróis da pré-Reforma e da Reforma Inglesa. Sejam as palavras atribuídas a Tyndale apenas boatos, ou sejam fornecidas pelo próprio Foxe, apenas sublinham o nível em que o Ploughman estabeleceu o seu lugar enquanto parâmetro na imaginação protestante.

Piers, the Ploughman foi, é claro, o arquétipo do homem pobre do campo, ao qual os lollardos haviam pregado. Por volta do final do poema de Langland, Piers aparece como um tipo que aponta para o sofrimento de Cristo. Mais de um século depois, João Calvino levaria essa identificação de Cristo para com o pobre a um chocante extremo, dizendo que “nascido num estábulo, toda sua vida foi como um pobre trabalhador do campo”, e que ele foi “nutrido em tamanha pobreza que mal parecia humano”. Essa linguagem nos lembra o quão extraordinariamente amarga era a pobreza na Europa pré-moderna, e quão reduzidos e desfigurados pela fadiga eram os trabalhadores que Tyndale e outros reconheceram como imagem de Cristo. O movimento que se iniciou com a Reforma, e que se seguiu após ela, tinha um grande respeito pelos pobres e oprimidos — respeito, muito mais do que compaixão, já que o impulso por detrás era o de compartilhar o melhor tesouro de sua fé, aprendendo com as massas de pobres rejeitados, que eles sabiam estar preparados, e dignos, para acolher esse tesouro.

O gosto da Reforma por livros pode ter se generalizado até se tornar uma expectativa de inteligibilidade de toda a Criação. Se Tyndale sentia que estava efetivamente dando toda a Escritura aos iletrados, no ato de traduzi-la com arte e habilidade, ele estava necessariamente dispensando as estratégias interpretativas ­­­ — alegórica, tropológica e anagógica — que eram tradicionalmente aplicadas à leitura dela, e cujos significados estavam disponíveis somente aos que eram especialmente treinados nesses métodos. Este sentido, de que a revelação, natural e escritural estava essencialmente disponível a todos, permeia a mentalidade da Reforma.

Calvino descreve os céus como inteligível, em seu mais profundo significado, aos mais simples, assim como aos educados. Ele diz,

Certamente, para investigar os movimentos dos astros, distribuir suas posições, medir suas distâncias, anotar suas propriedades, necessitamos de uma técnica e de um trabalho bastante preciso. Com tais conhecimentos, como a providência divina se mostra de modo mais claro, assim cabe à alma elevar-se mais altamente para considerar a glória de Deus. Mas nem os plebeus e os mais incultos, que somente contam com a ajuda dos olhos, podem ignorar a excelência da arte divina, que se mostra espontaneamente nessa infinita, distinta e ordenada variedade da obra celeste.[4]

 O puritano do século dezoito, Isaac Watts, conhecido pelos hinos que escreveu, foi também autor de livros sobre lógica e pedagogia, usados em universidades britânicas e americanas por gerações. Ele diz,

Adquira algum conhecimento das nuvens, das estrelas, do sol, da lua e das revoluções de todos os planetas. Escave e extraia algumas meditações valiosas das profundezas da terra e procure-as através dos vastos oceanos de água. Extraia algumas melhorias intelectuais dos minerais e metais; das maravilhas da natureza entre os vegetais e ervas, árvores e flores. Aprenda algumas lições dos pássaros e das feras, e do inseto mais maligno. Leia a sabedoria de Deus e sua admirável invenção; leia seu poder onipotente, sua bondade rica e variada, em todas as obras de suas mãos.[5]

Tanto o romantismo quanto a ciência moderna são fortemente associadas com a Reforma. Passagens como essas mostram como podem ter advindo da mesma raiz. Uma Criação inteligível apresentava-se em todos os momentos a cada observador, de maneira mais profunda conforme as capacidades de percepção eram conjugadas com o entendimento. A mais persistente e frutífera tradição de poetas americanos, de Emily Dickinson a Wallace Stevens, consiste em uma meditação sobre o ordinário gratuito e inesgotável. Ralph Waldo Emerson e William James escreveram sobre o sutil e esplêndido processo de consciência nesse encontro contínuo.

Claramente, não havia nenhuma condescendência, ou qualquer coisa parecida, nos sentimentos de Tyndale a respeito das pessoas para quem a sua Bíblia era intencionada. A melhor prova disso está no fato de que as partes mais impressionantes do Novo Testamento da King James, universalmente considerada como uma das maiores glórias da literatura inglesa, e fonte para o que há de melhor nessa literatura, estão no trabalho de Tyndale. Ao escrever para as pessoas comuns, ao escrever para os lavradores, que não eram apenas ignorantes do latim, mas iletrados de modo geral, ele criou uma obra-prima. Essa enorme generosidade de espírito, esse grande respeito, está em consonância perfeita com a sua aceitação da probabilidade de que sofreria uma morte terrível ao tomar para si esse grande trabalho. Colocando de lado todas as outras dificuldades, o fato de que se fez proficiente o suficiente em grego e hebraico apenas para finalizar esse trabalho, já é por si só admirável. Essas duas línguas antigas foram praticamente desconhecidas na Europa por séculos, e estavam apenas começando a ser estudadas novamente quando Tyndale fez sua tradução.

Talvez, porque eu seja às vezes uma escritora e às vezes uma intelectual, tenho um pouco da noção do trabalho e da concentração representada em todos esses livros. Sei que não posso imaginar o cuidado que havia nas Bíblias que os lollardos carregavam, pequenas para serem bem escondidas, cada uma escrita à mão, já que a imprensa ainda não existia, e cada uma ornamentada com traços delicados em suas margens. Tenho uma coleção do trabalho de Calvino, nem perto de estar completa, mas ainda intimidadora, dezenas de volumes de disciplina e elegância, explicações da mão de um homem cuja saúde nunca foi boa, que lidou a vida inteira com os problemas práticos e diplomáticos de Genebra, uma cidade debaixo de um cerco, cujos escritos inspiraram e colocaram sob risco de extinção os indivíduos e populações que os leram por toda a Europa, sendo persuadidos ou não por eles. Dizer que essas coisas são menores seria subestimar grandemente a matéria.

Eu sei bem o que acontece no processo de escrita de um livro — é claro, não de um livro que requer o domínio de línguas antigas ou que apresenta infinitas dificuldades de tradução — nem um que se proponha a fazer uso literário de uma linguagem menosprezada,ou que pretenda capitular ou interpretar um texto sagrado. Eu não tenho ideia do que seria escrever numa prisão ou escondida ou em uma cidade cheia de refugiados. Eu não tenho ideia do que seria viver com a ameaça constante da morte, enquanto tento escrever algo bom o suficiente para justificar o perigo mortal que outros se submeteriam ao simplesmente lerem o que escrevi. Tenho apenas alguma experiência relevante para informar o meu assombro. Considero a realização desses escritores inimaginável. Quando vejo Calvino e seus comentários, ponderando sempre sobre as nuances e ambiguidades do texto hebraico, como se o tempo e a sua própria força física fossem inesgotáveis, sou tocada pelo imenso respeito que ele tem, frase por frase, verso por verso, pelo texto da Escritura, e, portanto, pelo quão respeitoso ele é, enquanto pastor, com todos aqueles a quem ministraria.

E essa é a razão pelo qual me parece importante lembrar a especial origem popular do movimento que se tornou a Reforma Inglesa e a Reforma Protestante de modo geral. De fato, a genealogia intelectual do movimento é uma linha reta — o professor John Wycliffe, de Oxford, foi lido pelo professor Jan Huss, de Praga, que por sua vez foi lido pelo professor Martinho Lutero, de Wittenberg, e todos esses trabalhos exerceram enorme influência em William Tyndale. Este, por sua vez, influenciou o brilhante e jovem humanista João Calvino, que ecoaria o salmista e anteciparia Hamlet em seu elogio à “alma, e sua agilidade e diversidade, com que percorre o céu e a terra, une o passado ao futuro, retém na memória as coisas que outrora ouviu, figura qualquer coisa para si; e a perspicácia com a qual inventa coisas incríveis, que é a mãe de tantas artes maravilhosas”. Ele está descrevendo os mistérios da consciência humana, universais e definitivos, quando diz que essas coisas “são insígnias certas da divindade no homem”.[6]

Alguém poderia argumentar que vivemos entre as relíquias, ou entre as ruínas, da Reforma Protestante. Uma dessas relíquias seria a ligação contínua com a Bíblia, mesmo na abstenção, particularmente na cultura norte-americana de qualquer impulso para honrar o trabalho prometeico da Reforma, lendo-a. Uma ruína talvez seja o respeito mútuo no reconhecimento de cada individuo enquanto mente e consciência, algo que ecoa na Primeira Emenda da Constituição Americana, e é institucionalizado no ensino tradicionalmente difundido nas artes liberais, as disciplinas que celebram o pensamento humano e sua criatividade, como valores por si mesmos e com finalidade própria. As grandes universidades fundadas no Meio-Oeste — Oberlin, Grinnell, Knox, e tantas outras — ofertavam um currículo rigoroso, desde o princípio, presumindo que os homens e mulheres que se encontravam em seu território estariam sedentos por uma educação em seu mais alto grau. Ao invés de aulas, essas universidades exigiam dos estudantes que fizessem as tarefas necessárias ao funcionamento de postos acadêmicos, para que disciplinas como Lógica e História se tornassem disponíveis a um figurativo — ou literal — lavrador, no mesmo nível que a todos os outros.

Parece, nos dias de hoje, que o direito ao porte de armas é considerado por alguns como um remédio razoável contra a tendência de outros agirem contra sua liberdade de expressão, imprensa, assembleia e, sobretudo, de religião de alguma maneira que essa gente armada considere fastidiosa. Reverência pela sacralidade integral de cada peregrino nesta vida terrena parece estar erodindo. A generosidade à generalidade das pessoas, o que nos concedeu o melhor das nossas melhores instituições, seria considerada hoje, por muita gente piedosa, como socialismo, ainda que o motivo para a criação da maioria dessas instituições, por exemplo, as grandes universidades, tenha sido explicitamente e absolutamente cristão. Se parece que estou fugindo do meu ponto, é apenas para afirmar que o esquecimento do principal da Reforma, isto é, da paixão pela disseminação da forma mais ampla possível do que melhor compreendia a nossa civilização humanista, ao mesmo tempo em que abraçava e honrava a beleza da cultura comum e ordinária, está nos levando ao esquecimento da razão pela qual desenvolvemos bibliotecas públicas, museus e universidades excelentes.

Tendemos a dividir as coisas em categorias que são muito estreitas. É difícil apontar os motivos por detrás do desenvolvimento de tais instituições, apesar de que não há dúvidas de que elas contribuíram largamente para a prosperidade e, em alguns casos, para o crédito de filantropistas. Não podemos chamar os motivos de altruístas, apesar de muitas pessoas terem doado livremente e devotado apoio a elas. Os motivos eram e são de outra ordem. Somos movidos a responder à realidade do brilhantismo humano, à profundeza humana em toda sua variedade, pois ela é a coisa mais incrível do mundo, possivelmente a coisa mais assombrosa do universo. O impulso para desfrutar e elevar esse fato não pertence, e de forma alguma é originário, ao protestantismo ou ao cristianismo em geral. As raízes remontam ao Renascimento humanista na tradição clássica e, antes deles, à assertiva hebraica antiga: a criatura humana é imagem de Deus.

Das maneiras que a conhecemos, entretanto, ela tem uma associação tácita com a Reforma, pois o surgimento das línguas vernaculares, com toda a sua encarnada e desconhecida beleza, junto à capacidade de encontrar significados profundos, tornou a disseminação abrangente da aprendizagem possível e urgente, assim como tornou possível o trabalho feito com fruição estética e profundo amor. Isaac Watts escreveu que um de seus professores ensinou que “ele deveria ter tanto a candura e a doçura natural, misturadas com todos os aperfeiçoamentos da aprendizagem, de modo a converter conhecimento às mentes de seus discípulos com gentil insinuação e soberano deleite, e assim tentá-los ao mais alto melhoramento de sua razão por meio de uma força impassível e irresistível”. Ele recomendou a leitura de poesia para que pudesse aprender “a conhecer, e a experimentar, e a sentir uma boa stanza, assim como para ouvi-la”.

Atualmente, somos inclinados a falar mais de informação do que de conhecimento, e mais de como as informações são transmitidas do que como o conhecimento pode transformar — ou ser transformado pela atmosfera das mentalidades doadoras. Podemos falar da elegância de uma equação, mas nos esquecemos de encontrar valor na beleza de um pensamento. Ao mesmo tempo, podemos viver, se assim quisermos, numa espécie de segundo universo. Com a chegada da literatura, pintura e publicações em massa, chegaram livros em cascata de diversos tipos: religiosos, clássicos, filosóficos, polemistas e protocientíficos. E então vieram também um número considerável de novos trabalhos de imaginação literária. Nos nossos dias, o fenômeno vem se acelerando. O universo de publicações em que vivemos, na página e na tela, é um de infinita capacidade de memória, e uma reserva incessante de novos pensamentos. Que o melhor potencial nem sempre seja alcançado, que os melhores momentos sejam frequentemente ignorados ou invalidados, apenas comprova a profunda humanidade destes tempos.

Pessimismo cultural está sempre na moda, e, uma vez que somos humanos, há sempre território para ele. Tem suas consequências negativas, ao depreciar os níveis de aspiração ou o senso de possibilidades de uma cultura. E de tempos em tempos, tem consequências extremamente nocivas, ao encorajar uma espécie de pânico sombrio, um delírio coletivo em que parece razoável recorrer a remédios terríveis, inspirados por ilusões de ameaça mortal. Se há algo na vida de qualquer cultura, ou de qualquer período, que dê razões para alarme, é justamente a ascensão do pessimismo cultural, do qual uma das maiores paixões é ser amargamente hostil à maioria das pessoas, e justamente às pessoas para quais essa mesma cultura do pessimismo acredita estar voltada, ou resgatando. Quando o pânico de um lado está criando alarme do outro, é fácil se esquecer de que há sempre chão para otimismo, assim como para pessimismo — exatamente o mesmo chão, aliás — que é, em suma, o fato de sermos humanos. Ainda temos potencial para o bem, como sempre tivemos, e essa prerrogativa exige respeito, respeito próprio e respeito pelo outro. Ainda somos criaturas de interesse singular e valor, almas altivas como sempre fomos e continuaremos a ser, a despeito de nossos erros e depredações, durante o período em que habitarmos nesta terra. Valorizar um ao outro é a nossa maior virtude, e alimentar o medo e o desprezo é o nosso maior erro.

Sigmund Freud chamou os norte-americanos, certa vez, de lollardos, não pretendendo nenhum elogio. No entanto, espero que ele esteja certo. Eu espero, independente do que somos, ou da herança cultural ou espiritual que veio do Lollardismo, que façamos, e compartilhemos, uma dispendiosa abertura para mostrar o nosso respeito a todas as mentes e espíritos, especialmente àqueles em que o lugar na vida pode ter os impossibilitado de respeito. Pode ser que a variedade cultural exista para nos mostrar que são dignas de valor as histórias que formaram essas pessoas. As riquezas espirituais e intelectuais de outras nações floresceram neste país, enriquecendo-o num nível em que os que trouxeram suas histórias e tradições foram bons gerenciadores de sua riqueza especial e bons intérpretes dela para a sociedade em geral. A Reforma é outra bela e muito boa herança que temos, outra fonte de riqueza espiritual e cultural, e merecedora de bons advogados e intérpretes.


[1] Matheus 5, 4 — 6. Tradução João Ferreira de Almeida Fiel.

[2] The Ploughman: o lavrador. Em alguns momentos, Robinson volta a usar o termo ploughman, fazendo alusão ao poema de Langland, mas, nestes casos, optamos por traduzi-los de forma literal.

[3] Tradução nossa do trecho citado por Robinson.

[4] Instituas da Religião Cristã de João Calvino — tomo I, capítulo 5, seção 2. São Paulo: Editora da UNESP (2008), tradução de Carlos Eduardo de Oliveira (página 52).

[5] Isaac Watts em The Improvement of the Mind. Tradução nossa do enxerto de Robinson.

[6] Instituas da Religião Cristã de João Calvino — tomo I, capítulo 5, seção 5. São Paulo: Editora da UNESP (2008), tradução de Carlos Eduardo de Oliveira (página 55).