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Resenha – Morrer de Tanto Viver: A vida foi feita para ser gasta, de N.D.Wilson

Resenha de N. D. Wilson. Morrer de Tanto Viver: A Vida Foi Feita Para Ser Gasta. Editora Monergismo, 2018 (Derek Rishmawy)

 

A primeira observação sobre Morrer de Tanto Viver, a continuação de N. D. Wilson para o célebre Notas da Xícara Maluca, é que eu não poderia te dar um resumo do livro nem se eu tentasse. Exatamente como o volume anterior, o estilo direto, mas rodopiante, de Wilson zomba malandramente do resenhista em busca de resumos que vai direto ao ponto por sequer pensar em tal façanha.

Para leitores de segunda viagem esperando uma comparação rápida entre Notas e Morrer, eu diria que se aquele mudou a minha maneira de pensar, este pode mudar a maneira de viver. Notas te convida a abraçar Deus como o autor soberano e inimaginável desse universo ridiculamente inesperado. Morrer desafia você a viver como um personagem, ou melhor, um sub-autor de palavras encarnadas e vivas. Daquelas grandes. Interessantes. Novamente, você  se verá num coquetel bem batido de memórias poéticas, filosofia, teologia, sagacidade afiada, murros polêmicos, hilaridade e exortação na forma de um hino à graça de uma vida bem vivida às sombras da eternidade. Para os iniciantes, talvez seja bom apertar os cintos.

“Morrer de tanto viver, a vida foi feita para ser vivida”. Essa é a tese de Wilson e sua filosofia da vida em família (xi); joelhos ralados aparentemente são tanto um sinal de vida quanto um pulso na família Wilson. De várias maneiras, é uma entrada peculiar ao venerável gênero da devotio moderna, juntamente ao De Imitatione Christi de Thomas à Kempis, só que dessa vez somos encorajados a seguir o nosso cabeça pactual, pegar as nossas espadas, combater o dragão e viver bem até que isso nos mate, como foi com Jesus, a imagem da humanidade endireitada (p. 62, 79). Isso pode envolver um pouco de sujeira. Não se preocupe, a ressurreição deve tirar todas as manchas.

Já que o livro desafia qualquer resumo, sendo de certa forma indisciplinado e levado, vou simplesmente destacar dois pontos e fazer uma observação sobre estilo para os pastores.

 

Vida na Estória

 

É uma tendência as pessoas chamarem a vida de “estória” hoje em dia (p. 3, 19). Mas Wilson, um escritor de best-sellers, produtor cinematográfico ocasional e professor de literatura no New Saint Andrews College em Moscow, Idaho, suspeita que, para a maior parte de nós, essa fala é só um blefe idealista (ou irônico, dependendo da geração) que gosta de nos colocar no papel do grande protagonista na nossa biografia perfeitamente editada (p. 71). A maioria não parou para pensar sobre o que significa ser um personagem (pequeno, mas relevante para um Deus infinito) na narrativa em desenvolvimento da redenção em que cada átomo tem uma narrativa que remonta à eternidade (p. 5). Esquecemos que é assim que as estórias de Deus funcionam: com problemas, heróis e soluções reais e dracônicos que são um pouco mais fortes do que uma aplicação de protetor solar pode aguentar (p. 40). Ainda não paramos para ler os eventos das nossas vidas sob o pano de fundo da graça inefavelmente sábio, soberana, imprevisível, mas fiel.

O filósofo francês Blaise Pascal disse certa vez: “se o nariz da Cleópatra tivesse sido menor, toda a face da Terra teria mudado” (Pensees, p. 180). O que significa dizer que quando o formato de um nariz, ou as ações involuntárias de um estranho num ponto chave na estória de nossos ancestrais, ou uma conversa chave, podem mudar o curso da história (p. 141)? Será que realmente paramos para pensar nisso?

De muitas formas, Wilson desafia o nosso blefe e nos convida a ver a vida por meio da teoria de Pascal da história, embutindo análise teológica (ela não é tão seca quanto essa expressão sugere) nas estórias de seus avós, que viveram por muito tempo e receberam muitas estórias de Deus que levaram, de forma bem improvável, para a estória dele. Se parássemos para pensar, perceberíamos que a nossa existência é nada mais do que um presente. Chamar o vai e vem das nossas vidas de acaso ou sorte falha em levar a sério a natureza narrativa da própria vida e o gênio autoral do nosso Deus.

Antes de tudo, WIlson age como um mestre bardo da graça da providência, desmentindo o mito de que a confiança num Deus soberano é uma receita para paralisia fatalista ou imprudência. Ao invés de um argumento cheio de versículos para a soberania de Deus, ele retrata o que a doutrina reformada da providência é com uma carne e osso cotidiana e narrativa: é um risco porque somos segurados nas mãos fortes de nosso Criador; é coragem de ser um grande personagem escrito por um autor fiel; é gratidão por cada fôlego em nossos pulmões; é ter sentido em cada detalhe e cada reviravolta; é uma exortação ao sacrifício que se segue depois do autor-que-se-tornou-personagem que garante que as nossas mortes encontrarão a alegria da ressurreição do outro lado.

Isso nos leva à morte. Quer dizer, está ali no título, né?

 

Morte

 

Outro filósofo, Sócrates, nos disse no Fedro (63e-65a) que a prática da filosofia é uma preparação para a morte. A filosofia de Wilson pode ser considerada uma preparação para a vida à luz da morte e da ressurreição. Se o filósofo deveria se alegrar pela libertação da alma da prisão do corpo, já que os seus prazeres não teriam mais controle sobre ele, Wilson quer que bebamos mais profundamente de cada momento graciosamente concedido na nossa existência neste mundo bom-mas-caído-e-sendo-redimido.

Tendo essa finalidade em vista, ele fica nos lembrando que vamos morrer. Na verdade, estamos cada vez mais perto disso com cada fôlego, cada escolha, cada momento gasto. O tempo move em diante, apressando-se, galopando para o fim das nossas estórias. (Confesso: eu costumava dizer aos estudantes, quando eu era professor substituto de Ensino Médio, para considerarem as suas inevitáveis mortes quando estivessem no seu horário de leitura silenciosa. Não, não fui demitido. Só estava dando uma de Sócrates). Esse lembrete pode ser mórbido, mas Wilson quer que nós vejamos a morte como mais do que uma maldição (o que ela é), mas também como uma dádiva num mundo quebrado pelo pecado. Pois quem quer viver no mundo como ele é, como eles são, para sempre? Com meus ossos já doloridos e, ainda pior, a minha alma em recuperação, mas ainda doente pelo pecado, a libertação da morte é um alívio.

Para cristãos, é claro, a morte não é o fim absoluto da nossa estória. É mais do que uma vírgula, todavia. Parece mais um ponto final. O fim de um capítulo importante.  Isso significa que a vida nos foi dada, não para guardar num cofre, mas para gastar prodigamente ao imitar o nosso Deus pródigo que se entregou por nós. A morte significa que recebemos um certo espaço para criar, para escrever sub-estórias dentro da estória do nosso autor último.  Ele nos deu páginas para escrevermos, e embora elas todas estejam entrelaçadas com maestria, ainda temos só algumas poucas (p. 166). Que estória vamos escrever?

É essa a pergunta de Wilson quando ele nos lembra que há uma permanência na morte, um peso para o movimento do tempo que coloca urgência no nosso fôlego, infundindo os nossos momentos com sentido e gravidade. Escolhas reais são feitas antes da morte, como tinta fresca que não pode ser apagada (p. 85). E o que vai ser? Para o eu ou a despeito do eu? Coragem ou covardia? Graciosamente ou mesquinhamente? Devemos fazer elas valer a pena, não por medo, mas em busca da glória do nosso Salvador: “Glória é sacrifício, glória é exaustão, glória é não ter nada mais para dar”.

 

Uma nota nada estilosa sobre estilo

Wilson profere um chamado robusto para uma vida profunda, rica, arriscada, sacrificial, alegre, esgotante e estática, de forma que nos leve para além de nossa existência perpetuamente curvada-para-o-eu. Para isso, ele emprega um nível de vivacidade linguística que desestabiliza, desarma e nos desperta para a vida. Os evangélicos, especialmente os que são americanos reformados, precisam melhorar sua prosa poética-literária-conversacional. Mesmo essa última expressão é parte do problema. Eu deveria ter inventado um termo melhor do que “poética-loterária-conversacional”, mas isso é o melhor que eu tenho no momento para descrever o estilo poético simultaneamente surreal e direto.

Somos bons para montar argumentos, enumerar observações sobre textos e evangelizar literalmente tudo (figurativamente falando). Porém, escrever e pregar com carne suculenta e saborosa nos ossos de nossos esboços estruturais não é tão comum assim. Embora, em última instância, o Espírito vivifique a Palavra nos nossos corações, ele decidiu agir usando meios. Se queremos que as pessoas abracem as doutrinas da fé com o nível de desprendimento que Wilson (e o Novo Testamento) pedem, é melhor lhe dar algo vivo sobre o que trabalhar.

Se você ainda não pegou para ler, saiba que Morrer de tanto viver é um grande livro. Compre. Leia. Passe adiante. Mais importante ainda, todavia, é tentar vivê-lo.

 

Tradução: Guilherme Cordeiro

Fonte: https://www.thegospelcoalition.org/reviews/death_by_living/