“Uma das idolatrias aceitáveis dentre cristãos evangélicos é a idolatria da família”
Eu tweetei isso semana passada. Para ser honesto, eu não pensei muito sobre isso. Eu disse coisas semelhantes em sermões pela última década e eu já tuitei coisas semelhantes antes. Mas dessa vez, como me foi dito por amigos que seguem o Twitter mais de perto do que eu, essa afirmação assumiu vida própria à medida que essa frase foi curtida 1.600 vezes e rodou as redes sociais pelos próximos dias. Sem eu saber, eu estava (dependendo de quem estiver opinando) subitamente falando algo maravilhosamente corajoso ou terrivelmente mal direcionado.
Deixe-me esclarecer as coisas.
Até onde eu sei, eu falei essa frase pela primeira vez (ou algo parecido) em um sermão de 2010 em Marcos 3.31-35 intitulado a Real Família de Jesus. O próprio tweet vem de um sermão mais recente sobre o milagre em Caná da Galileia. O meu ponto em ambos os casos foi que um compromisso com a família não pode vir antes de um compromisso com Deus.
Eu comecei o sermão de Marcos 3 observando duas noções opostas da família na nossa cultura: a família como uma camisa-de-força (como no filme de 1998, Pleasantville – A Vida em Preto e Branco) e a família como o centro (como no filme de 2000, Um homem de Família). Numa visão, a família te impede de ter tudo que você realmente quer. Na outra visão, a família te promete dar tudo que você realmente quer. Jesus não promoveu nenhuma dessas visões. Não há dúvida de que a segunda visão é bem mais comum dentre cristãos e ela de fato tem paralelo com algumas virtudes cristãs. Mas ela também erra em pontos fundamentais quando se trata de família. Eu argumentei em 2010 (e argumentaria o mesmo hoje) que, segundo a Bíblia, a família é boa, necessária e fundacional, mas não tem a primazia.
O sermão de Marcos 3 focou nessas quatro palavras — “não tem a primazia” — porque essa era a ênfase de Jesus nos versículos 31 a 35. Na visão de Jesus da família, os laços familiares não te incluem automaticamente, a família não vem em primeiro lugar e a família de Deus está aberta para todos (isto é, aberta para todos que fazem a vontade de Deus e aceita Jesus nos termos dele).
Certamente há formas de falar sobre “a idolatria da família” que seriam um passo na direção errada. Eu tenho um ótimo casamento com (em breve) oito filhos. Eu definitivamente sou um “homem de família” (e tenho uma van para 15 passageiros para provar). Eu nunca iria sugerir que o real problema do mundo hoje é que os pais amam demais seus filhos ou que as igrejas estão fazendo demais para apoiar a família e que o que realmente infecta a nossa cultura são famílias que funcionam bem demais. Num mundo pecaminosamente determinado a redefinir o casamento e a minar a importância fundamental da família, os cristãos fariam bem para honrar e apoiar todos aqueles que tentam nutrir famílias saudáveis.
E ainda assim virtualmente todo pastor nos EUA te conta histórias de pessoas que vão à igreja que substituíram funcionalmente Deus em favor da família.
- Pais que param de ir para igreja por toda uma temporada por causa da liga de futebol juvenil do Billy ou da carreira ascendente de vôlei da Sally.
- Cristãos dedicados que nunca ousariam convidar um universitário ou um intercambista para a Ação de Graças ou para o Natal porque “feriado é coisa de família”.
- Membros de longa data que não podem se dar ao luxo de servir nos domingos ou receber visitantes porque a família toda sempre se reúne para almoçar na vovó.
- Filhos e netos que pensam que devem ser aceitos como membros ou batizados porque seus pais e avós foram pilares da igreja.
- Igrejas que implícita (ou explicitamente) comunicam que o casamento é um passo necessário para a maturidade espiritual.
- Cristãos de todos os tipos que sabotariam sua teologia de casamento ou suas convicções sobre disciplina eclesiástica depois de seus filhos saírem o armário ou passarem a praticar outros tipos de pecado (sem se arrependerem).
A idolatria da família pode ser um problema real, seja da igreja que ignora solteiros e planeja tudo para casais casados com filhos, ou do indivíduo cujos compromissos práticos demonstram a infeliz realidade de que o sangue normalmente é mais forte do que a teologia.
Deus nos deu muitas dádivas nesta vida. O tempo presente é uma dádiva. O sexo é uma dádiva. O trabalho é uma dádiva. Habilidade atlética e musical são dádivas; da mesma forma que a inteligência e a beleza. Ninguém duvida que todas essas coisas boas podem ser ídolos. Assim como a família. A família conjugal, um homem e uma mulher cuja união pactual produz descendência, é profundamente boa e um elemento necessário e fundamental do desígnio criacional de Deus. Mas ela não tem a primazia. Pelo menos não se estivermos definindo família como os relacionamentos naturais que temos pelo casamento e pelo sangue, ao invés dos relacionamentos naturais que temos pelo sangue de Cristo
Publicado originalmente aqui.
Traduzido por Guilherme Cordeiro.