Certas discussões reaparecem continuamente no meio cristão. A suposta tensão entre a soberania divina e a responsabilidade humana é uma delas. Ouve-se com frequência que a soberania divina, conforme entendida pela teologia reformada — particularmente na questão da salvação, mas não limitada a ela — retira a responsabilidade humana. “Se Deus é soberano e decretou tudo o que há de acontecer, nos mínimos detalhes, então o homem não é responsável pelos seus atos”, é a conclusão quase sempre proferida.
O embaraçoso é que tal palavreado não é encontrado apenas nos lábios do arminianos, mas inclusive em lábios calvinistas. A diferença é que, enquanto o arminiano apresenta o argumento como uma refutação ao entendimento calvinista da soberania divina, certos calvinistas afirmam que o dilema é um mistério.
“Já que o homem é responsável, então Deus não é soberano da forma como vocês entendem”, argumenta o arminiano. Por sua vez, o nosso calvinista diz que “Deus de fato é soberano, mas o homem é responsável pelos seus atos”. Até aqui tudo bem. Nada mais bíblico.
Mas o nosso calvinista completaria a sua explicação com algo mais ou menos assim: “Contudo, não sabemos como Deus pode ser soberano e ao mesmo tempo o homem ser responsável pelos seus atos. Isso é um mistério. Mas temos que aceitar essas duas verdades, pois estão claramente ensinadas na Escritura”.
Com certeza não negamos que a Bíblia ensina Deus ser soberano de maneira exaustiva e o homem responsável pelos seus atos. Essas são verdades bíblicas, ensinadas de Gênesis a Apocalipse. O que não entendemos é como essas verdades não podem ser harmonizadas. Em que sentido Deus ser soberano nega o homem ser responsável? Para que isso faça sentido, como muitos teólogos já observaram, é preciso assumir (sem justificativa, muito menos bíblica) a premissa que responsabilidade implica liberdade. Ou seja, a pessoa só pode ser responsável pelos seus atos se for livre.
Assim, a queixa do arminiano seria algo assim: “Mas se Deus é soberano de maneira exaustiva, então o homem não é livre. Como então ele pode ser responsável pelos seus atos, se é necessário ser livre para ser responsável?” Mas como já dissemos, a premissa responsabilidade implica liberdade é alheia às Escrituras. Em nenhum lugar a Bíblia afirma tal coisa. Logo, não existe tensão na questão da soberania divina e a responsabilidade humana.
Visto que muitos livros já foram escritos sobre o assunto, provando que não existe contradição, mistério ou paradoxo entre a doutrina bíblica da soberania divina e responsabilidade humana, contento-me em reafirmar o que já disse: a Bíblia não afirma que o homem precisa ser livre para ser responsável pelos seus atos. O homem é responsável porque Deus o considera responsável. Ele é o Criador e Governador de todo o universo. A Ele todos devem prestar contas de suas ações. Ponto.
O que pretendo provar aqui então? Nada! Apenas chamar a atenção do leitor para uma grande ironia, quase sempre presente nessas discussões sobre “mistérios” na Escritura. Vejamos então:
Dada a verdade da soberania divina, o homem não é livre. Ou seja, ele não é livre em relação a Deus. A mão soberana e poderosa de Deus é quem determina todos os seus passos, pensamentos e situações. É considerando essa falta de liberdade que inúmeros teólogos fazem malabarismos para tentar explicar (ou não explicar) o “mistério”. Nenhuma ironia aqui.
Contudo, há outro sentido no qual o homem não é livre. A Bíblia ensina que após a Queda todo homem nasce em pecado. Ele não somente nasce em pecado, mas nasce escravo do pecado. Ele não é pecador porque peca, mas peca porque é pecador. Tamanha é a escravidão do homem que ele não pode fazer outra coisa senão pecar. Resumindo: o homem não é livre para não pecar. Ele não possui a posse non peccare, que somente o homem Adão possuiu.
Essa é uma verdade que todo crente reformado aceita. É possível encontrar inúmeras explicações dessa doutrina (bem mais elaboradas, é claro) em teólogos reformados de todas as épocas e nações.
Dito isso, eis a minha pergunta: onde está o mistério? Ou melhor, por que ninguém nunca viu um mistério aqui? Eu já li (talvez) milhares de livros e comentários, e NUNCA vi sequer uma menção do paradoxo entre o homem ser escravo do pecado e ao mesmo tempo responsável pelos seus atos. Nenhuma!
Ora, mesmo o homem convertido, regenerado pelo Espírito Santo e salvo por Cristo ainda peca e em certo sentido é “escravo” do pecado. Com certeza ele não é escravo como o incrédulo, mas o é no sentido de que nunca vai deixar de pecar enquanto peregrinar nesta terra. Só Cristo viveu uma vida sem pecado! Seria então o homem convertido alguém não responsável pelos seus atos?
Mas voltemos ao incrédulo. Por que a omissão do mistério entre os teólogos que são tão ávidos em achar mistério na questão da soberania divina e a responsabilidade humana? Seria por medo dos resultados práticos? Imagine a seguinte conversa evangelística:
“Caro amigo, a Bíblia diz que você é um pecador. Não somente isso, mas ela diz que você é escravo do pecado. Você não é livre para não pecar. Se não se arrepender e crer no Evangelho, você será condenado ao inferno. Contudo, eu não sei como Deus vai te considerar responsável pelos seus atos se você não é livre. É um mistério. Não posso explicar, mas cabe a você aceitar as duas verdades.”
Todavia, não creio que a omissão seja por esse motivo. Ela não parece ser deliberada. A minha suposição é a seguinte: não estamos tratando de predestinação, soberania ou decreto. Esses são temas que sofrem preconceitos, mesmo por aqueles que deveriam defendê-los. São resquícios de arminianismo que insistem em permanecer. Esse arminianismo residente faz com que tais pessoas façam uso de dois pesos e duas medidas ao lidar com as diversas doutrinas bíblicas.
Se a resolução de um problema envolver algo sobre predestinação, soberania e decreto, recorramos ao mistério sem hesitação. Caso contrário, não percamos tempo tentando encontrar mistério onde não existe. Sim, sequer mencionemos a tensão.
De um lado, soberania divina e responsabilidade humana. Do outro, escravidão do pecado e responsabilidade humana. Por que lidar de maneira tão diferente com questões que envolvem a relação entre liberdade e responsabilidade humana?
Uma ironia!