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Sola Scriptura: o que isso quer, e o que não quer, dizer

No 500º aniversário da Reforma protestante, é proveitoso rever os cinco solae da Reforma, dos quais o sola Scriptura pode ser o mais bem-conhecido. O que isso quer, e o que não quer, dizer?

Não é autoridade exclusiva

Sola Scriptura não quer dizer que a Bíblia é a nossa única autoridade. A Bíblia deixa claro que Deus estabelece autoridades humanas subordinadas: autoridades válidas sob a sua autoridade soberana. Deus, por assim dizer, delega a certas instituições a execução da sua vontade. É por isso que Deus diz em Romanos 13 que se resistirmos à autoridade civil, resistimos à autoridade de Deus.

Vivemos num tempo obcecado com autonomia individual. Autonomia significa “lei para si”. A nossa era é profundamente resistente a qualquer tipo de autoridade externa. Vivemos numa cultura de rebeldes. Isso inclui aversão à autoridade civil (como a polícia), autoridade familiar, autoridade eclesiástica, autoridade do empregador, autoridade dos professores e muito mais. Críticos sociais frequentemente declaram que a nossa sociedade é cética com todas as instituições. Isso na verdade é só outra forma de dizer que as pessoas são ressentidas com a autoridade. É obviamente o que acontece com a nossa sociedade mais ampla: desrespeito à polícia, desobediência aos professores, desdém pelos empregadores. Mas é verdade até mesmo dentre cristãos. Eu conheço alguns cristãos na nossa era da internet que raramente abrem mão da chance de atacar digitalmente pastores e presbíteros. Eles estão constantemente em guerra contra líderes eclesiásticos, a despeito do que a Bíblia ensina (Hb 13.7, 17). Estranhamente, algumas dessas pessoas que não respeitam à lei colocam a autoridade da Bíblia em contraposição à autoridade da igreja. Sim, algumas igrejas abusam da sua autoridade, mas não podemos esquecer que a Bíblia é o que valida a autoridade da igreja. Se você acredita na Bíblia, você precisa acreditar na autoridade da igreja e outras autoridades humanas específicas.

Tradição eclesiástica válida

Em segundo lugar, sola Scriptura não quer dizer que a tradição eclesiástica não tem valor.¹ O próprio Paulo escreveu que os tessalonicenses (2Ts 2.15) deveriam guardar as tradições que eles aprenderam dele e dos outros. Os reformadores não eram inimigos da tradição eclesiástica. Eles afirmavam a ortodoxia ecumênica antiga e os credos. Eles reconheciam as formulações dos pais da igreja acerca da Trindade e das duas naturezas da pessoa una de Jesus Cristo. Eles aceitavam a definição ortodoxa do cânon da Bíblia.² Eles não estavam tentando reinventar a ortodoxia na forja da sua própria especulação. Eles sabiam que eles não eram as primeiras pessoas a ler a Bíblia e eles não achavam que entendiam a Bíblia melhor do que todo mundo que veio antes dele.

Mas, e isso é crucial, eles não estavam dispostos a permitir que a tradição fosse uma autoridade coordenada à Bíblia. Heiko Oberman³ e Alister McGrath⁴ oferecem uma maneira simples de entender as visões da relação entre a Bíblia e a tradição naquele tempo. A Igreja Católica Romana sustentava que a Bíblia e a tradição eram, com efeito, igualmente autoritativas na igreja. Essa é a Tradição 2. Os reformadores radicais queriam se livrar de toda a tradição e recorrer apenas à Bíblia. Essa é a Tradição 0. Os reformadores protestantes queriam reter a tradição, mas só a tradição que pudesse ser justificada recorrendo à Bíblia. Essa é a Tradição 1.

A palavra final

Sola Scriptura é Tradição 1. A melhor definição que eu já vi de Sola Scriptura é a de John M. Frame: “A Escritura, e só a Escritura, tem a palavra final sobre tudo …”.⁵ E com tudo, ele quer dizer tudo, não só na igreja e na teologia, mas também no amor, na amizade, na ciência, na arquitetura, na música, na economia, na agricultura, na tecnologia da informação e em todo o resto. É claro, a Bíblia não toca em todos os tópicos possíveis. Ela não nos dá a raiz quadrada de pi ou a localização da China antiga. Mas ela nos dá as verdades pelas quais abordamos e interpretamos esses tópicos e todos os outros.

A Bíblia tem a palavra final sobre isso e todo o resto que ela declara ou implica. É isso que sola Scriptura quer dizer.

[1] Veja a visão equilibrada da Reforma explicada em Philip Schaff, The Principle of Protestantism (Philadelphia and Boston: United Church Press, 1964), 97–124.

[2] Lutero questionou o livro de Tiago, mas isso foi uma exceção.

[3] Heiko Augustinus Oberman, The Harvest of Medieval Theology (Durham, North Carolina: The Labyrinth Press, 1983), 365–412.

[4] Alister E. McGrath, Reformation Thought (Oxford, England and Cambridge, Massachusetts: Blackwell, 1993, segunda edição), 144–147.

[5] John M. Frame, The Doctrine of the Word of God (P & R Publishing: Phillipsburg, New Jersey, 2010), 571.

 

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Original aqui.

Traduzido por Guilherme Cordeiro.