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Triagem Teológica e a Doutrina da Criação (Samuel Emadi)

    Sempre que alguém levanta a questão sobre a idade da terra ou a duração dos dias em Gênesis 1, sobrancelhas sobem e suspeitas aumentam. Dissidentes da nossa posição nos preocupam – especialmente quando essa dissensão é chamada de “trajetória teológica”. Evangélicos têm aprendido a discordar amigavelmente em vários assuntos, mas nós tendemos a levantar as luvas rapidamente quando se trata sobre a criação.

    Lendo a situação amigavelmente, eu posso entender as preocupações, até as suspeições, de criacionista de terra-antiga e terra-nova quando desafiados por seus oponentes. No início do século XX, o debate criação-evolução servia como linha divisória na controvérsia modernista-fundamentalista. Isso é parcialmente o porquê de problemas como a idade da terra ou a duração dos dias em Gênesis 1 virem com muito mais bagagem do que problemas como a extensão da expiação ou continuismo versus cessacionismo.

    Como resultado, vários evangélicos americanos tendem a ficar nervosos quando se trata sobre criação. Geralmente (e correndo o risco de alienar quase todo mundo), criacionistas de terra nova enxergam criacionistas de terra antiga como flertantes com o Darwinismo – um caminho certo para o completo abraço ao liberalismo. Criacionistas de terra antiga, por sua vez, enxergam os argumentos dos criacionistas de terra nova dirigidos mais pelo medo da evolução do que pela exegese gênero sensitiva e assim, intelectualmente raso – um caminho certo para as algemas do fundamentalismo.

    Traçando as linhas

    Parte do problema é o nosso fracasso em nos envolvermos na triagem teologia com a doutrina da criação. A triagem teológica avalia a importância das doutrinas com respeito ao seu efeito na cosmovisão Cristã e seu relacionamento com o evangelho. Doutrinas de primeira ordem são as inegociáveis da fé Cristã. Sem essas doutrinas, nós abriríamos mão do evangelho ou nos colocaríamos em risco de perder o evangelho. Doutrinas de segunda ordem são importantes, problemas determinantes que separam denominações e igrejas. Essas doutrinas não separam crentes de não crentes, mas Batistas e Presbiterianos, Calvinistas e Arminianos, pactualistas e dispensacionalistas. Doutrinas de terceira ordem são questões que têm pouco efeito sobre o evangelho ou sobre a cosmovisão Cristã. Aqui Cristãos podem tolerar divergências até dentro das congregações locais. Esse sistema de três camadas não é o único caminho para pensar sobre triagem teológica, mas o ponto é que todos reconhecemos que nossas convicções teológicas se apoiam sobre uma escala das mais essencial para as menos essenciais. Doutrinas de primeira ordem traçam as linhas do círculo da fidelidade teológica. Doutrinas de segunda e terceira ordem são os espaços seguros dentro do círculo, o espaço que tolera desacordos entre irmãos e irmãs – mesmo que a decorrência prática dessa tolerância se mostre diferente em cada situação.

    Triagem teológica não é uma forma de minimizar doutrinas mas de ser capaz de dizer que todas as doutrinas são importantes, mesmo que algumas doutrinas sejam mais importantes que outras. Perca a Trindade e você perde o evangelho. Perca sua posição milenista favorita e, enquanto você pode precisar de uma remodelagem de alguns compromissos exegéticos, a maior parte do restante do seu sistema teológico se mantém seguramente intacto. Sendo claro, não estou dizendo que a idade da Terra ou a duração dos dias em Gênesis 1 não são importantes ou que nós não devemos ter convicções nesses assuntos (para provar, vou levantar minha mão e revelar que sou bastante comprometido com seis dias literais, terra nova). Estou dizendo que nós precisamos separar problemas de primeira ordem na doutrina da criação dos problemas de segunda e terceira ordem, atenuando nossas suspeições e esperançosamente lembrando aqueles com ministérios de ensino o que priorizar sobre a criação quando discipulamos outros. Em outras palavras, isso não é somente sobre aprender onde podemos discordar; também é sobre fortalecer nossas defesas sobre o que é inegociável.

    Devo mencionar que os evangélicos já estiveram em uma situação parecida antes em relação a escatologia – e felizmente deram grandes passos ao longo das linhas que estou propondo aqui. Para muitos “fundamentalistas” do século XX, negar o pré-milenismo era equivalente a negar a inerrância. Ainda sim nas últimas décadas nós aprendemos a fazer alguma triagem quanto a escatologia. Todos reconhecemos que o retorno corpóreo de Jesus Cristo, a ressurreição dos mortos, o juízo final, e a criação dos novos céus e nova terra são todas questões de primeira ordem. Dentro desses limites, entretanto, nós temos espaço para discordarmos do milênio, do arrebatamento ou nossa abordagem sobre o anticristo.

    Propostas de primeira ordem

    Enquanto olhamos para a triagem da doutrina da criação é importante notar alguns precedentes históricos para esse projeto. Em Gênesis no Espaço Tempo, por exemplo, Francis Schaeffer fez algo parecido ao mostrar o que Gênesis 1-11 deve estar afirmando para que o restante da Escritura seja coerente e verdadeiro. Estou propondo os seguinte sete pontos como questões de primeira ordem baseado na sua centralidade com a cosmovisão Cristã,  relação inseparável com o evangelho ou de acordo com o fato que outras passagens da Escritura nos instruem a ler a narrativa da criação de certa forma.

  1. Deus criou o mundo ex nihilo.

  2. Deus é distinto de sua criação. (Distinção Criador/criatura)

  3. Deus criou o mundo bom.

  4. Deus criou o mundo para Sua glória.

  5. Deus criou especificamente Adão e Eva os quais portam a imagem de Deus.

  6. Adão e Eva são os primeiros pais da humanidade.

  7. Adão e Eva são figuras históricas que realmente desobedeceram a Deus no tempo e no espaço no jardim do Éden.

    A Escritura testemunha os pontos 1 e 2 em vários lugares (Rom. 4:17; 1 Cor. 1:28; 2 Cor. 4:6; Heb. 11:3) assim como na narrativa da criação. Esses pontos preservam a asseidade de Deus – Ele é auto existente e eterno. O ponto 3 é bem testado em Gênesis 1 não importa qual abordagem os leitores utilizem em seu gênero e interpretação. Além disso, a bondade da criação é parte da trama da cosmovisão bíblica e fundamental para a apologética do Cristianismo contra todas as formas de Gnosticismo – ambos antigo e moderno. A Escritura confirma o ponto 4, Deus criando para Sua própria glória, em quase todas as páginas – mantendo o resto da teologia orbitando em volta do centro gravitacional correto.

    Os pontos 5 a 7 lidam com a questão da historicidade de Adão e Eva. Em resumo, estou postulando que enquanto evangélicos podem discordar amigavelmente sobre a cronologia de Gênesis 1, a historicidade de Gênesis 2-3 nunca deve ser aberta para discussão. O registro de Deus especificamente criando sua própria imagem, dando-lhe domínio, dando-lhe uma esposa e depois exilando esse casal de Sua presença devido a sua rebelião deve ser um relato correto de eventos históricos reais. Sem a criação especial da humanidade como portadores da imagem de Deus (ponto 5) nós perdemos nosso senso de valor e identidade, sem mencionar a fundação da antropologia teológica. Sem a doutrina do parentesco comum da humanidade (ponto 6) nós perdemos a noção de que todo humano, independente de raça, etnia ou classe social, é um portador da imagem de Deus (Acts 17:26) – um irmão e uma irmã na comunidade humana. Sem a queda histórica de Adão (ponto 7) nós perdemos a doutrina do pecado original e também perdemos a mais essencial construção da teologia bíblica – a tipologia Adão-Cristo (Rom. 5:12–21).

Lutando de braços abertos

Dentro desses limites, evangélicos – suportando uma afirmação integral da inerrância –  podem e devem lutar teologicamente uns com os outros enquanto aceitam uns aos outros sem suspeitas. A extensão dos dias em Gênesis 1, a idade da Terra e a morte de animais por predação antes da queda são todas questões secundárias e terciárias que devem ser trabalhadas de maneira consistente com nossas questões de primeira ordem. De novo, o ponto não é se nós devemos debater essas questões, mas como nós vamos debatê-los.

Isto não significa encerrar a conversa sobre criação ou ser a última palavra sobre o assunto. Certamente, vamos derramar alguma tinta na defesa rigorosa dos lados do debate, mas não vamos derramar o sangue de outros enquanto estamos nisto. Minha esperança é que outros refinem e clarifiquem esses pontos de uma forma que contribua mais para nosso entendimento de questões de primeira, segunda e terceira ordem na doutrina da criação.

Tradução: Felipe Barnabé Duarte

Utilizado com permissão do The Gospel Coalition.

Artigo original: https://www.thegospelcoalition.org/article/theological-triage-and-the-doctrine-of-creation/