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Uma defesa da veneração aos bebês por G. K. Chesterton

Os dois fatos que atraem quase toda pessoa normal às crianças são, primeiro, que elas são bem sérias e que, segundo, elas são, por consequência, bem felizes. Elas são serelepes com a completude que só é possível na ausência de humor. As escolas e sábios mais inefáveis nunca chegaram à gravidade que habita nos olhos de um bebê de três meses de idade. É a gravidade do deslumbramento diante do universo, e deslumbramento com o universo não é misticismo, mas um senso comum transcendente. O fascínio da criança está nisto: que, com cada uma delas, todas as coisas são refeitas e o universo fica novamente sob judice. Quando caminhamos nas ruas e vemos debaixo de nós essas divertidas cabeças bulbosas, três vezes o tamanho ideal para o corpo, que destacam esses cogumelos humanos, devemos sempre lembrar primeiramente que dentro de cada uma dessas cabeças se tem um novo universo, tão novo quanto era no sétimo dia da criação. Em cada uma dessas orbes há um novo sistema estelar, nova grama, novas cidades, um novo mar.

Sempre há na mente saudável uma obscura instigação de que a religião nos ensina mais a cavar do que a escalar; que se ao menos uma vez pudéssemos entender o prosaico pó da terra poderíamos entender todas as coisas. Semelhantemente, temos o sentimento de que se pudéssemos destruir o costume com um só golpe e ver as estrelas como uma criança as vê, não precisaríamos de outro apocalipse. Esta é a grande verdade que sempre se recostou na veneração aos bebês e que a susterá até o fim. A maturidade, com suas energias e aspirações sem fim, pode ser facilmente convencida de que ela encontrará novas coisas para apreciar; mas ela nunca se convencerá, no fundo, de que ela já apreciou propriamente o que ela já tem. Podemos medir os céus e encontrar incontáveis novas estrelas, mas ainda há uma nova estrela que não encontramos: aquela em que nascemos.

Mas a influência das crianças vai além do que o seu primeiro esforço frívolo de refazer os céus e a terra. Elas nos forçam a realmente remodelar a nossa conduta de acordo com esta teoria revolucionária da maravilhosidade de todas as coisas. Nós realmente (mesmo quando somos perfeitamente simples ou ignorantes) tratamos a conversa das crianças como maravilhosa, o andar das crianças como maravilhoso e a inteligência comum das crianças como maravilhosa. O cínico filósofo imagina que ele venceu neste ponto: que ele pode rir quando demonstra que as palavras ou que o comportamento bobinho de uma criança, tão admirados pelos seus entusiastas, é nada mais do que comum. O fato é que é precisamente aí onde a veneração aos bebês é tão profundamente certa. Qualquer palavra e qualquer comportamento bobinho de um punhado de pó é maravilhoso, as palavras e o comportamento bobinho de uma criança são maravilhosos e é nada menos que justo dizer que as palavras e o comportamento bobinho de um filósofo são igualmente maravilhosos.

A verdade é que a nossa atitude com as crianças é que é a certa e é a nossa atitude com os adultos que é errada. A nossa atitude com os que têm a mesma idade do que nós consiste numa solenidade servil, ocultando um grau considerável de indiferença ou desdém. A nossa atitude com as crianças consiste numa benevolência condescendente, ocultando um respeito inefável. Nos curvamos a adultos, tiramos os nossos chapéus para eles, evitamos contradizê-los abertamente, mas não os apreciamos apropriadamente. Nós manipulamos as crianças, nós lhes damos sermões, puxamos os seus cabelos, e as reverenciamos, amamos e tememos. Quando reverenciamos algo nos adultos, são as suas virtudes ou a sua sabedoria, e isso é fácil. Mas nós reverenciamos as falhas e tolices das crianças.

Provavelmente chegaríamos mais perto da verdadeira concepção das coisas se tratássemos todos os adultos, de todos os títulos e tipos, com precisamente aquela obscura afeição e estupefato respeito com que tratamos as limitações infantis. Uma criança tem dificuldade de obter o milagre da fala, consequentemente consideramos as suas mancadas quase tão maravilhosas quanto os seus acertos. Se ao menos adotássemos a mesma atitude com os Premiês e Chanceleres do erário, se amavelmente considerássemos suas tentativas vacilantes e divertidas na fala humana, teríamos um temperamento bem mais sábio e tolerante. Uma criança tem uma inclinação de fazer experimentos na vida, geralmente com boas intenções, mas frequentemente de uma forma intolerável na sociedade doméstica. Se ao menos tratássemos todos os bucaneiros comerciais e tiranos presunçosos nos mesmos termos, se gentilmente déssemos uma bronca nas suas brutalidades como erros até exóticos na conduta da vida, se simplesmente lhes disséssemos que eles “entenderiam quando fossem mais velhos”, nós provavelmente estaríamos adotando a melhor e mais poderosa atitude com as fraquezas da humanidade. Nas nossas relações com as crianças, provamos que o paradoxo é inteiramente verdade, que é possível combinar uma anistia que beira o desdém com uma veneração que beira o terror. Nós perdoamos as crianças com o mesmo tipo de gentileza blasfêmia com que Omar Khayyam perdoou o Onipotente.

A essencial justeza da nossa visão das crianças está no fato de que achamos que elas e seus trejeitos são sobrenaturais enquanto que, por alguma misteriosa razão, não achamos que nós ou nossos trejeitos são sobrenaturais. A própria pequenez das crianças torna possível lhes considerar maravilhas; parecemos estar lidando com uma nova raça, que só pode ser vista por meio de um microscópio. Eu duvido que alguém com a mínima ternura ou imaginação pode ver a mão de uma criança e não se assustar um pouco com ela. É horrível pensar que a energia humana essencial está movendo uma coisa tão pequenina; é como imaginar que a natureza humana poderia viver na asa de uma borboleta ou na folha de uma árvore. Quando olhamos para vidas tão humanas, mas tão pequenas, sentimos como se nós mesmos nos alargássemos para uma grandeza de estatura embaraçosa. Sentimos o mesmo tipo de obrigação para com essas criaturas que uma divindade sentiria caso ela tivesse criado algo que não pudesse entender.

Mas a aparência engraçada das crianças é talvez a mais cativante das ligações que mantêm o cosmos unido. A sua dignidade desequilibrada é mais comovente do que qualquer humildade; a sua solenidade nos dá mais esperança para todas as coisas do que mil carnavais de otimismo; os seus olhos grandes e lustrosos parecem abarcar todas as estrelas em seu assombro; a ausência fascinante do nariz parece nos dar a dica mais perfeita do humor que nos aguarda no reino dos céus.

N. do T. sobre o título: “Baby-worship”, no original, refere-se a muito mais do que simples admiração aos bebês, mas uma devoção para com eles, relacionada a ideia de que cada criança é especial e que cada ato dela é especial.

Capítulo 14 do livro The Defendant de G. K Chesterton (1874-1936). 

Traduzido por Guilherme Cordeiro.