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Você é escravo do dinheiro e depois morre

Você é escravo do dinheiro e depois morre[1]

 

Eugene McCarreher[2]

 

O filme Rede de intrigas (1976), escrito por Paddy Chayefsky e dirigido por Sidney Lumet, é uma sátira brutal e visionária da televisão, prevendo desde o reality show até à extinção da linha que separa o comentarista do repórter, chegando mesmo à transformação do discurso político em entretenimento. O filme é mais lembrado por seu radialista Howard Beale (interpretado por Peter Finch), que incita sua audiência a ir até suas janelas e gritar: “Para mim já chega, eu não vou mais aceitar isso!”. Articulando raiva e frustração generalizada, Beale se torna “o profeta enfurecido das ondas de rádio” e sua estreia na televisão é um sucesso. Mas em uma de suas cenas, ele descobre um acordo de negócios inescrupuloso que havia sido encoberto pela gerência da rede. Seu diretor executivo, Arthur Jensen (Ned Beatty), decide então instruir Beale no caminho das pedras. Depois de levar o profeta à sala de diretoria, Jensen prega um sermão no momento mais malévolo e sinistro do filme:

“Não há nações, não há povos. . . existe apenas um sistema holístico dos sistemas. . . um domínio multinacional entrelaçado, interativo e multivariado de dólares… É o sistema internacional da moeda que determina a totalidade da vida neste planeta. Essa é a ordem natural das coisas hoje. Essa é a estrutura atômica, subatômica e galáctica das coisas hoje… Existem apenas IBM e IT&T, e AT&T, e Du Pont, Dow, Union Carbide e Exxon. Estas são as nações do mundo hoje… Não vivemos mais em um mundo de nações e ideologias… O mundo é um conglomerado de empresas, inexoravelmente determinado pelos estatutos imutáveis ​​dos negócios. O mundo é um negócio, Sr. Beale.”

 

Esses são os princípios gravitacionais da cosmologia corporativa de Jensen, mas também consistem em uma narrativa escatológica na qual o reino de Deus foi substituído pelo capitalismo como consumação da história.

Declamada no início da era de ouro inaugurada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, a diatribe de Jensen é um compêndio explícito da ontologia pecuniária do neoliberalismo. Certamente, muitos intelectuais negam que “neoliberalismo” seja algo além de uma palavra de ordem, um anátema elástico para aquilo que seus usuários consideram censurável na vida contemporânea: como certa feita escreveu o jornalista Jonathan Chait (um dos críticos mais notórios do termo), refutando-o impacientemente, é “o insulto favorito da esquerda”. Outros afirmam que, se “neoliberalismo” realmente significa algo, trata-se da ressurreição do capitalismo laissez-faire como um ideal econômico e moral, o ressurgimento do compromisso liberal clássico com mercados desregulados e governo limitado. Se é assim, então não há nada de “neo” no “neoliberalismo”, exceto sua novidade para os boomers da Guerra Fria, mimados pelo Estado regulador e de bem-estar social. E é preciso dizer que, muitas vezes, mesmo os intelectuais de esquerda não são tão claros sobre o que distingue o “neoliberalismo” de seu antecessor ideológico.

Mas o neoliberalismo é alguma coisa e é mais do que um paradigma da política e dos mercados. O neoliberalismo dá nome a uma tentativa de refazer a vida humana à imagem e semelhança do mercado. É uma imaginação moral e metafísica na qual as relações de propriedade capitalistas fornecem o modelo para a compreensão do mundo. “Não há alternativa”, como Thatcher declarou uma vez, porque realmente não há alternativa; existe apenas um sistema holístico dos sistemas, e este é o capitalismo de cabo a rabo. Nessa visão, longe de apenas alocar mercadorias, o mercado é a arquitetura ontológica do cosmos – um ser onisciente e infalível, mais irrepreensível do que os simples e instáveis mortais. Em outras palavras, sob os auspícios neoliberais, o mercado se torna o último substituto moderno da divindade tradicional. O mundo é um negócio, Sr. Beale e todos vocês! O dinheiro é o símbolo sacramental, o mana, o élan vital, e o mercado é a estrutura atômica, subatômica e galáctica das coisas. Nesse mundo, onde as religiões abraâmicas um dia imaginaram homens e mulheres criados à imagem e semelhança de Deus, você é agora o que Philip Mirowski chamou de o “eu empreendedor”, uma pessoa – ou talvez um simulacro de tal – feita à imagem e semelhança do mercado. O neoliberalismo define a servidão aos valores pecuniários como a expressão mais pura da liberdade. Como a banda The Verve lamentou há 20 anos, “você é escravo do dinheiro e depois morre” [you’re a slave to money, then you die].

Conforme historiadores como Quinn Slobodian nos ensinaram, a genealogia do neoliberalismo pode ser rastreada até à década de 1920. Durante a Primeira Guerra Mundial, a cooperação entre governo e indústria conferiu uma nova legitimidade à regulamentação, supervisão e até planejamento do Estado – palavras proibidas para os campeões do laissez-faire que dominaram no século XIX. A extensão do sufrágio no pós-guerra deu poder às classes trabalhadoras europeias, pondo em risco tanto a distribuição da riqueza quanto a anuência popular nas vicissitudes do mercado – os hoi polloi (o povo) poderiam se transformar por meio do voto em Estados de bem-estar social ou mesmo no socialismo. (De fato, em novembro de 1917, a União Soviética foi eleita como uma alternativa). E o Tratado de Versalhes, ao afirmar a “autodeterminação dos povos”, pressagiou o colapso da ordem imperial pré-guerra e de igual maneira validou o Estado-nação democrático como ator político central nos assuntos mundiais. Assim, um sistema de democracias soberanas representava um obstáculo à retomada do acúmulo de capital ao longo das linhas traçadas antes de 1914.

O neoliberalismo, afirma Slobodian em Globalists[3], surgiu tanto para reabilitar o livre mercado quanto para, em suas palavras, “vacinar o capitalismo contra a ameaça da democracia”. O neoliberalismo começou como uma tentativa de reconstruir a governança nas nações capitalistas numa era de políticas da democracia de massas. Na opinião de neoliberais como Ludwig Mises, Friedrich Hayek, Lionel Robbins e Wilhelm Ropke, o Estado deve garantir a propriedade privada, fazer cumprir as leis de contrato e acomodar um mínimo de demandas da classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que acelera o movimento de capitais e mercadorias. O Estado deve não apenas abster-se de regular os negócios; deve desistir de prover bem-estar social, uma vez que os trabalhadores do mundo devem estar unidos em submissão às flutuações da economia mundial. Embora supostamente democrático, o Estado neoliberal não deve ser um instrumento da vontade popular; é mais como uma delegacia encarregada de administrar e, se necessário, reprimir qualquer ralé arrogante: sindicatos, principalmente, mas qualquer forma de mobilização popular para domesticar ou erradicar o capitalismo. Mises chegou ao ponto de definir o próprio mercado como uma forma de democracia; o capitalismo, ele argumentou, é um plebiscito do dinheiro, “no qual cada centavo representa uma cédula de voto”. O capitalismo é a democracia de Mammon.

Os primeiros três quartos do século XX não ofereceram condições propícias para a realização dos objetivos neoliberais. Mas na década de 1940, um crescente bloco de líderes empresariais, intelectuais e políticos que nunca aceitaram o New Deal e a social-democracia (muitos deles concentrados na Sociedade Mont Pèlerin) iniciaram uma cruzada bem-sucedida para reimpor a acumulação irrestrita. Por três décadas, a relativa prosperidade e tranquilidade do que foi denominado pelos historiadores como “a idade de ouro do capitalismo” impediu seus esforços para destruir o consenso (sempre frágil); mas a crise econômica global do início dos anos 70 criou as condições perfeitas para um ataque à social-democracia liberal da Europa Ocidental do New Deal e à restauração do Antigo Regime – ou pelo menos o que parecia ser o Antigo Regime. Taxas de crescimento lentas e lucros decrescentes levaram o capital, em todo o Atlântico Norte, a romper a trégua social entre ele, o Estado e o trabalho organizado. Onde antes o foco principal do Estado estava em manter um alto nível de demanda, o capital passou a insistir em mais atenção à oferta – daí a economia do lado da oferta de Arthur Laffer, que implicava uma redução drástica dos impostos individuais e corporativos, cortes draconianos nos gastos sociais, desregulamentação da atividade empresarial e o enfraquecimento, senão esmagamento, dos sindicatos. O argumento era que o empreendedorismo e a inovação desencadeadas por essas políticas aumentariam a riqueza agregada que “gotejaria” do capital para os trabalhadores (cada vez mais desorganizados). O resultado: estagnação dos salários reais nas últimas três décadas, acompanhada pelo aumento da produtividade dos trabalhadores; dívidas pessoais do tamanho do Himalaia para compensar a estagnação dos salários; uma mudança na trajetória do capital do produtivo para o financeiro; uma redistribuição maciça da riqueza para cima (socialismo para os ricos); e menores taxas médias de crescimento anual.

Logo, iniciado por Thatcher e Reagan na década de 1980, e legitimado pela nova onda de acadêmicos neoliberais como Hayek, a Escola de Economistas de Chicago como Milton Friedman e Gary Becker, e jornalistas “evangelistas da globalização” como o Thomas Friedman, do New York Times, o subsequente ataque de 40 anos contra o trabalho organizado e o Estado de bem-estar social marcaria uma vitória retumbante para os negócios corporativos, levada à tona no final dos anos 90 por Bill Clinton e Tony Blair. Mesmo aqueles partidos tradicionalmente considerados como veículos dos interesses da classe trabalhadora – os democratas nos EUA e o Partido Trabalhista na Grã-Bretanha (“O Novo Trabalhista”, como Blair o ungiu), os vários partidos socialistas ou sociais-democratas em outros lugares da Europa – rapidamente se reformularam em termos de neoliberalismo, redefinindo seus objetivos, não como regular ou abolir o capitalismo, mas como tornar a transição para um mundo totalmente mercantilizado menos dolorosa e perturbadora do que poderia ser. Assim, quando uma vez perguntaram a Thatcher qual foi sua maior conquista, ela disse sem pestanejar: “o novo Partido Trabalhista”. Como David Harvey escreveu, o neoliberalismo tem sido “um projeto político para restabelecer as condições de acúmulo do capital e para restaurar o poder das elites econômicas”.

A definição de Harvey facilita equiparar o neoliberalismo à “desregulamentação dos negócios”, que muitas vezes consideramos sinônimo de um ataque ao “Estado grande”. É importante ter em mente que os neoliberais procuraram não apenas limitar o poder do Estado, mas também redirecioná-lo para a promoção e extensão da atividade de mercado. Daí a privatização de muitos serviços estatais e a reconstrução daqueles que permaneceram públicos de modo a se assemelharem às instituições privadas (“administrar o governo mais como um negócio”); a nova porosidade das fronteiras entre o Estado, empresas, grupos sem fins lucrativos e ONGs, resumida no termo “parcerias público-privadas”; o desgaste das provisões de bem-estar do Estado e o enorme aumento de sua capacidade para coerção, punição e vigilância; e o isolamento do mercado em relação ao minucioso escrutínio e interferência da política democrática. De fato, a redefinição e inclusão da democracia dentro de parâmetros estabelecidos pelo mercado, e não pelos cidadãos, foi uma conquista orgulhosamente elogiada por políticos neoliberais. Isso fica claro na fala da chanceler alemã Angela Merkel em setembro de 2011, em uma sessão do Parlamento alemão:

Certamente vivemos em uma democracia e estamos felizes com isso. Encontraremos formas de moldar a decisão parlamentar de tal forma que ela se conforme ao mercado, de modo que os respectivos resultados surjam no mercado.

Observe bem: a democracia deve ser “conforme ao mercado”. Essa talvez seja a declaração mais explícita da subordinação democrática às forças econômicas jamais pronunciada.

Uma vez que se percebe que os neoliberais reorientam o poder do Estado em vez de diminuí-lo, dois fenômenos se tornam compreensíveis, ainda que pareçam anômalos: a manutenção e até a escalada dos gastos militares após a Guerra Fria e a acentuada militarização das forças policiais locais. Apenas um parênteses: moro em Ardmore, Pensilvânia, na Main Line nos arredores da Filadélfia – não é um lugar conhecido por suas ruas perigosas. Agora, a força policial do meu município ostenta orgulhosamente um veículo de “operações especiais” decorado como se estivesse pronto para ser implantado na Guerra do Iraque. Não há absolutamente nada de contraditório na expansão da liberdade de mercado e na ampliação das capacidades do Estado para a violência. Uma ordem global de mercados deve ser imposta a povos recalcitrantes: como o eminente propagador Thomas Newman do New York Times colocou em uma famosa, ou melhor, infame coluna:

Para que a globalização funcione, os EUA não podem ter medo de agir como a superpotência onipotente que são. A mão invisível do mercado não funcionará sem um punho invisível. O McDonald’s não pode florescer sem a McDonell-Douglas, a fabricante dos caça F-15, e o punho invisível que mantém o mundo seguro para a tecnologia do Vale do Silício é chamado Estados Unidos, Exército americano, Força Aérea americana, Marinha americana e Fuzileiros Navais americanos. 

Não é surpresa que os Estados Unidos, a sociedade neoliberal mais poderosa e mais próspera do mundo, também tenham o maior leviatã do planeta: um sistema penitenciário enorme e crescente, um complexo industrial bélico pantagruélico, um aparato titânico de vigilância nacional e estrangeira. Quanto maior a riqueza, maior o medo e a necessidade de vigiar e punir.

Até agora, falamos muito em aspectos político-econômicos; mas voltemos a David Harvey. Além de chamar o neoliberalismo de projeto político, ele também o descreve como “um projeto utópico para realizar um plano teórico de reorganização do capitalismo internacional”. Por mais incisivo que seja, Harvey não compreende totalmente o quão utópico é o projeto. A reverência pelo mercado entre os neoliberais é algo maior do que um renascimento do laissez-faire ou um desejo de libertação do capital de restrições onerosas. Na cosmologia neoliberal delineada na obra de Mises e Hayek, e dramatizada na ficção e na filosofia de Ayn Rand, o mercado impregna o cosmos; o dinheiro é a referência da retidão; o sucesso financeiro, profissional ou tecnológico é a prova empírica da bem-aventurança; e o empresário agressivo e sem escrúpulos é o ícone da superlatividade existencial. O neoliberalismo é uma imaginação moral e metafísica na qual as relações de propriedade capitalistas fornecem um modelo abrangente para a compreensão do mundo. Como observa a cientista política Wendy Brown em seu livro apropriadamente intitulado de Undoing the Demos[4] [Desfazendo o demos], “com o neoliberalismo o mercado se torna… a verdadeira forma de toda atividade”. Outrora um local para a produção e troca de mercadorias – uma provação predatória mas inevitável de nossa servidão ao domínio da necessidade material – o Mercado assume um caráter platônico sob a égide dos ideólogos neoliberais, tornando-se uma ontologia, uma hermenêutica e uma ética para uma classe guardiã de filósofos-capitalistas.

No livro Never Let a Serious Crisis Go to Waste[5] [Nunca desperdice uma crise grave], Philip Mirowski chega perto de capturar as ambições supramundanas da ideologia neoliberal. No relato de Mirowski, os neoliberais erradicam qualquer distinção persistente e incômoda entre Estado, sociedade e mercado e reconfiguram a personalidade e o cosmos de acordo com a lógica da razão mercenária. O humanismo neoliberal prevê um “eu empreendedor”, explica Mirowski, um portfólio de talentos e qualidades vendáveis: “um produto a ser vendido, um anúncio ambulante… uma mistura de ativos a serem investidos… um inventário de compensação de passivos a serem podados, terceirizados, cobertos, recobertos e minimizados”. De acordo com esse “catecismo da metamorfose permanente”, o ser humano neoliberal deve renunciar à “arrogância egoísta” – isto é, resistência às leis imutáveis ​​dos negócios – e “humildemente se prostrar… ante à Sabedoria do Universo” que se encontra nas vicissitudes do mercado. Na imaginação neoliberal, as leis de movimento do capitalismo participam de um sempiterno mysterium tremendum, e a liberdade é a servidão ao regime de venalidade exigido e santificado pelo Logos.

Embora puramente metafórica em intento, a referência de Mirowski a um “catecismo” aponta para as qualidades religiosas do neoliberalismo. Certamente, Deus teve vários requerentes ao seu trono desde que ele (supostamente) o deixou no século XIX. Entre os substitutos para a Verdade e Bondade universais que ele provia antes do Iluminismo vieram: a Ciência, a Nação, o Socialismo, o Fascismo e, como Terry Eagleton argumentou, a Cultura. Embora muitos pensem em nosso tempo como uma era secular de ironia, desencanto e suspeita das “metanarrativas”, e apesar de seu verniz profano e tecnocrático da econometria e de tecnicismo nas políticas, o neoliberalismo é uma narrativa acerca da natureza da realidade, bem como uma visão beatífica de uma cidade paradisíaca do capital corporativo. Como Eagleton disse, os neoliberais trocam a Cultura pelo Mercado como o substituto moderno da divindade tradicional. Onde as religiões abraâmicas haviam imaginado homens e mulheres criados à imagem e semelhança de Deus, o neoliberalismo vê eus empreendedores feitos à imagem e semelhança do mercado. O mercado impregna a grande cadeia do ser; é a medula da divindade neoliberal. Longe de apenas alocar bens e recursos, o Mercado é a arquitetura ontológica do universo, uma quintessência inerrante e pansófica mais sábia do que qualquer ser humano errante.

Ver o mercado como algo divino ou ontológico não é novidade – certamente não na história americana. Dos puritanos aos mórmons, evangélicos contemporâneos, passando pelos protestantes (e, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, os católicos) há muito se acredita que o sucesso no mercado capitalista é um sinal de bênção providencial. Se a maioria dos americanos confiou e continua a confiar na teologia cristã para seu moralismo pecuniário, uma variedade de economistas, filósofos, jornalistas e outros escritores começou a produzir uma forma mais “secular” de cosmologia de mercado em meados do século XX. Às vezes, plenamente conscientes do que estavam fazendo, os neoliberais elevavam o mercado a uma posição de soberania ontológica absoluta.

Os dois grandes padrinhos intelectuais do neoliberalismo foram Ludwig von Mises (economista que lecionou na Stern School of Business da New York University) e Friedrich Hayek (professor da Universidade de Chicago e autor de O caminho da servidão [1944], um dos textos canônicos do neoliberalismo). Ambos fundiram hostilidade contra as restrições econômicas da religião tradicional com reverência ao mercado. Em seu livro Socialism (1922), Mises argumentou que, uma vez que Jesus e seus discípulos haviam demonstrado “ressentimento pelos ricos”, “um cristianismo vivo não pode existir lado a lado com o capitalismo”. Muito mais tarde, Hayek sustentou no terceiro volume de Direito, Legislação e Liberdade (1979) – uma espécie de Summa Theologica do neoliberalismo – que “a moral pregada pelos profetas e filósofos” havia inibido a expansão do capitalismo. O capitalismo surgiu, continuou ele, apenas a partir do “desrespeito a esses moralistas indignados”.

No entanto, o relato de Hayek e Mises sobre economia política apresentava um status ontológico do dinheiro e do mercado tão fundamental quanto o de Deus do escolasticismo tomista. Zombando do que eles consideram a presunção de social-democratas e socialistas que tentam planejar economias inteiras, neoliberais (e outros) elogiaram Hayek em particular por enfatizar as limitações da compreensão humana. Nesta perspectiva, a humildade é a grande virtude dos mercados capitalistas, permitindo o florescimento de empreendimentos empresariais e a obtenção de uma “ordem espontânea” sem os planejadores orgulhosos e ineptos do governo. No entanto, o próprio Hayek acreditava que a “ordem espontânea” emergia do artifício humano e que esse artifício deveria estar escondido atrás de um véu sedutor de encantamento metafísico.

A conhecida aversão de Hayek à econometria e outras formas de modelagem econômica estava enraizada na política, não na epistemologia: ao tornar o mercado legível, a econometria o tornou aberto à investigação e reconstrução democráticas. A representação empírica da atividade econômica, alertou ele em 1966, ajudou socialistas e outros antagonistas do capitalismo desregulado que queriam transformar o mercado em “uma organização administrada deliberadamente que serve a um sistema de contratos com fins comuns”. O desejo de Hayek de tornar o mercado inefável, até sublime, o levou a criar em seu trabalho uma das grandes obras-primas do sofisma ideológico. Ele busca recurso na terminologia esotérica: Hayek adota a palavra catalaxia, por exemplo, para descrever a ordem criada por indivíduos e grupos que participam do mercado global. Influenciado pela então nova ciência da cibernética, Hayek imaginou a catalaxia como um gigantesco processador de informações, transmitindo seus movimentos délficos através dos sinais epifânicos de preços e leis. Por si só, a catalaxia é, nas próprias palavras de Hayek, “sublime”, e até “transcendente”, além da compreensão da mente humana.

Hayek distinguia entre cosmos (ordem impessoal e espontânea) e taxis (construção consciente e deliberada). Para ele, a incerteza do cosmos constituía uma “sabedoria supraindividual superior”, maior que a de qualquer ser humano ou coletivo; de fato, é porque “normalmente não sabemos quem sabe melhor” que a maioria das decisões deve ser deixada para “um processo que não controlamos”. O caráter metafísico e vagamente teológico do cosmos não poderia ser mais claro, e Hayek não hesitou em prescrever sua importância para a economia. Ele exorcizou a convicção (essencial, afirmou, a qualquer forma de planejamento econômico) de que “a razão é capaz de manipular diretamente todos os detalhes de uma sociedade complexa”. Mesmo os planejadores mais astutos não poderiam prever todas as contingências, perceber todas as conexões ou identificar todas as possibilidades. Chocado com a insolência dos burocratas, Hayek ficou maravilhado com a ignorância feliz dos concorrentes do mercado: “quão pouco os participantes individuais precisam saber para poder tomar as decisões corretas”. O que ele chamou em O caminho da servidão de “as forças impessoais e aparentemente irracionais do mercado” são, em sua opinião, uma providência cósmica, desapaixonada, mas progressiva. “Foi a submissão dos homens às forças impessoais do mercado que, no passado, possibilitou o crescimento da civilização”. Como o mais dinâmico dos “produtos do crescimento social espontâneo”, o mercado incalculável do capitalismo é a forma mais elevada de cosmos.

A elevação que Hayek faz do Mercado não regulado e sua indeterminação central como um princípio ontológico central é essencial para entender não apenas seus elogios perversos à ignorância como uma virtude, mas também sua antipatia mal disfarçada à democracia. Ele condenou todas as tentativas do governo de disseminar o conhecimento sobre as condições do mercado como “um racionalismo incompleto e, portanto, errôneo”. Hayek se opôs à restrição democrática do mercado, não apenas porque ele rejeitava as qualificações intelectuais dos cidadãos comuns, mas porque, em sua opinião, isso equivalia a um ato fútil de insolência contra a ordem sacrossanta das coisas – interferindo nas forças primordiais da natureza. “Não há muitas razões para acreditar”, afirmou ele na Constituição da Liberdade (1960), “que, se a qualquer momento, o melhor conhecimento que alguns possuem fosse disponibilizado a todos, o resultado seria uma sociedade muito melhor”. Embora essas declarações tenham sido elogiadas por sua compreensão das limitações humanas e pela impossibilidade de prever um planejamento econômico, Hayek pretendia que eles evitassem qualquer restrição democrática ao poder do capital e sua experiência gerencial ou tecnocrática. “O melhor conhecimento que alguns possuem” tornou-se um perigo positivo quando exercido para regular a economia no interesse de uma política democrática. “É pelo menos possível em princípio”, ele pensou em 1967, “que um governo democrático possa ser autoritário” –sendo “autoritarismo” qualquer tentativa não natural de obstruir ou modificar a ordem inesperada do mercado.

Assim, o controle democrático sobre o mercado representou uma tentativa de substituir a cosmos pela taxis – um escandaloso sacrilégio ontológico. No entanto, o próprio cosmos acabou sendo uma invenção, pois Hayek deixou claro que capital e Estado estavam por trás da mágica da contingência do mercado. Como ele admitiu descaradamente, “uma ordem que teria de ser descrita como espontânea repousa em regras que são inteiramente o resultado de um projeto deliberado”. O cosmos nada mais era do que a taxis oculta pelo palavreado filosófico de “espontaneidade”. A humilde deferência ao mercado não era, de fato, reconhecimento da sabedoria do universo; pelo contrário, era “um método de controle social”, Hayek admitiu em O caminho da servidão, que “deveria ser considerado superior por causa de nossa ignorância de seus resultados precisos”. Quem tinha “considerado” a ordem de mercado “superior”? Todo mundo, de acordo com Hayek; “uma vez que concordamos em jogar o jogo e lucramos com seus resultados, é uma obrigação moral que respeitemos os resultados, mesmo que eles se voltem contra nós”. Ora, certamente, não me lembro de ter “concordado em jogar o jogo”, mas note outra coisa aqui: Hayek – como seus discípulos e descendentes neoliberais – apagou a distinção entre liberdade e compulsão nos mecanismos do mercado. Se nos submetemos livremente aos ajustes que o mercado impõe sobre nós, Hayek implicitamente admitiu que o mercado era uma treliça de coerções das quais os impotentes eram incapazes de discordar. Se você foi ensinado, em sua primeira semana em um curso de economia, de que existem economias livres, como o capitalismo, e economias de comando, como as da antiga União Soviética, você foi mal informado: o capitalismo é uma economia de comando da liberdade.

Mas e se os perdedores do mercado rejeitarem os seus decretos e sua vontade inexplicável? Hayek propôs que a natureza autoritária do livre mercado pudesse ser encoberta de maneira mais eficaz pelo incenso da religião e da tradição, e que, se essas não funcionassem, sempre haveria o emprego da violência do Estado. Hayek alinhava religião e tradição com os imperativos da cosmologia do mercado. “A submissão a regras e convenções não designadas, cuja significância e importância não compreendemos amplamente, essa reverência à tradição é indispensável para o funcionamento de uma sociedade livre”. Hayek reconheceu abertamente que as regras da competitividade perduram tanto porque “os grupos que as observaram foram mais bem-sucedidos e substituíram outros” quanto porque esses vencedores colocaram seu triunfo nas vestes da “tradição e costume” (não há alternativa porque nunca houve qualquer alternativa; e assim é desde que o homem se arrastou para fora da lama). Se a tradição fracassasse em provocar uma subserviência inquestionável à sabedoria do mercado, Deus – depois de ser devidamente despojado de sua desaprovação ao acúmulo – poderia ressuscitar e ser instrumentalizado das profundezas do mausoléu histórico. “As únicas religiões que sobreviveram”, Hayek refletiu pouco antes de sua morte, “são aquelas que apoiam a propriedade e a família”. E se a tradição ou Deus não bastassem, o fascismo era um expediente grosseiro, mas confiável. Na década de 1920, Mises aplaudiu a imposição por parte de Benito Mussolini de uma ditadura favorável aos negócios e que acabou com a oposição socialista. Mais tarde, Hayek, Friedman e outros economistas da Escola de Chicago foram admiradores do general Augusto Pinochet, ditador do Chile de 1973 a 1990, que os recrutou para transformar o país em um laboratório de experimento neoliberal.

O que quero destacar sobre Hayek é que ele conduziu o que William Cavanaugh chamou de “migração do sagrado”, um deslocamento forçado da santidade e reverência do sacro ao supostamente secular. Herdando o dever de vindicação divina de uma minguante hegemonia protestante, Hayek ilustra como a economia capitalista sempre foi uma espécie de teodiceia: o que parece irracional para meros mortais é na verdade a emanação de uma sabedoria superior e irresponsável – um análogo moderno do conceito teológico pré-moderno de providência. Na ontologia pecuniária de Hayek, ignorância é felicidade e servidão é liberdade; quanto mais nos curvarmos ao logos do mercado, em subserviência a seus mandatos, mais seremos recompensados ​​com riquezas no domínio sublunar dos negócios. E esses mandatos são promulgados no idioma canônico do dinheiro, o emblema mercenário do cosmos. O neoliberalismo não é apenas o estágio mais alto do capitalismo; é o estágio mais alto do encantamento capitalista, quando o dinheiro se realiza como a anima mundi de um planeta mercantilizado.

De sua parte, Mises identificou explicitamente a razão com o cálculo capitalista. Na ausência de um mercado competitivo cujos processos são ordenados por dinheiro, “não haveria meios de determinar o que seria racional”. Sem dinheiro, sustentou Mises, é “impossível falar em produção racional” – o “racional” é definido em termos monetários. Observe como todo o argumento gira em torno de uma sutil fusão da razão com a avaliação mercenária; se o dinheiro determina o valor e a racionalidade da criatividade humana, então moralidade e razão são definidas nesses termos. Mises insistiu ainda que todos os obstáculos à eficiência e à expansão tinham que ser eliminados. “Nenhum princípio religioso ou ético”, declarou ele em 1958, “pode ​​justificar uma política que visa a substituição de um sistema social sob o qual a produção por unidade de insumo seja menor, por um sistema em que seja superior”. Mesmo Adam Smith não foi bem avaliado na estimativa de Mises. Mises se queixou, em 1957, que Smith não “se libertou dos padrões e da terminologia da ética tradicional”, que estabeleceu limites para o acúmulo material. Para Mises, o mercado também era um meio de avaliação estética. “Não há medida para medir o valor estético de um poema ou de um prédio” além do dinheiro, ele sustentou. “O que conta no quadro da economia de mercado são as avaliações realmente manifestadas pelas pessoas que compram ou não.” Fora do dinheiro não há beleza.

As convicções de Mises foram dramatizadas por Ayn Rand – mentora de Alan Greenspan, ex-presidente do Federal Reserve, romancista favorita de Paul Ryan, ex-presidente da Câmara, e de Peter Thiel, garoto-propaganda do Vale do Silício, uma das piores escritoras do século XX e guru do culto ao “Objetivismo”. Apesar de seu ateísmo impetuoso e beligerante, Rand frequentemente escrevia sobre o Objetivismo como uma espécie de fé alternativa. “É necessária uma nova fé”, escreveu ela certa vez, “um conjunto definitivo e positivo de novos valores e uma nova interpretação da vida”. O Objetivismo era, como ela disse, “uma base espiritual, ética e filosófica para a crença no sistema da livre inciativa”. Uma dos muitos arautos da morte de Deus, Rand foi de fato pioneira na nomeação do dólar como um substituto digno e perene. Na conclusão risível de A revolta de Atlas, John Galt faz o sinal do dólar, não o sinal da cruz, nos céus vazios.

No “Objetivismo”, a bolsa mercantil é o paradigma da vida humana. Como o magnata Francisco d’Anconia diz em A revolta de Atlas, “o dinheiro é o barômetro da virtude”. Como Hayek e o princípio do cosmos, Rand transformou a negociação e o fluxo do mercado em um catecismo universal. O comércio, ela acreditava, é “o único princípio ético racional de todos os relacionamentos humanos, pessoais e sociais, privados e públicos, espirituais e materiais”. O indivíduo randiano “não procura ser amado por suas fraquezas ou defeitos, apenas por suas virtudes”; ciente de sua moralidade, ele “ganha o que merece e não dá ou recebe nada imerecido”. Diferentemente dos santos ou de outras pessoas improdutivas (uma das reprovações de Rand), os indivíduos randianos buscam o único sentido real da vida no valor de troca e nas taxas de lucro; “Nós existimos para ganhar recompensas”, como explica Galt. Conforme demonstra a investigação de Rand sobre o amor, para ela, até os assuntos mais íntimos encontram suas melhores consumações em um nexo monetário. O amor e a amizade, argumenta ela, são “pagamentos espirituais” trocados pelo “prazer pessoal e egoísta que um homem obtém das virtudes do caráter de outro”.

Em consonância com essa validação da insensibilidade, Rand denegriu o cristianismo por sua exaltação à caridade, “o melhor jardim de infância possível para o comunismo”, nas palavras dela, o que pode ser considerado um elogio. Em seus diários, ela denunciou a caridade como uma forma de malevolência, pois os cristãos e outros amantes indiscriminados da humanidade ameaçavam abolir as distinções de mérito necessárias ao funcionamento de qualquer sociedade. Rand afirmou que a caridade deve ser concedida como ouro da bolsa de um homem avarento; deve aumentar o poder do doador e a impotência do receptor. “A caridade para com um inferior não inclui a caridade de não considerá-lo inferior”, explicou ela; o humilde objeto da caridade deve “lembrar e reconhecer sua posição”. Dar algo a alguém em troca de nada – algo chamado “graça”, na teologia clássica – era um ato de malícia infligido ao meritório. “A crueldade suprema da caridade”, refletiu, residia em sua indiferença ao trabalho e à conquista como critérios para o valor humano. “Ignorando seu valor real como homem” – um valor forjado apenas no ágon do mercado –, aquele que dá aos fracos concede-lhes “os benefícios morais e espirituais, como amor, respeito, consideração, que homens melhores têm que conquistar”.

Os críticos de Rand na época rejeitaram sua ficção e filosofia como pífias – “pretensiosa”, como Whittaker Chambers escreveu em sua resenha de A revolta de Atlas na National Review. Uma “panaceia” , ele zombou, que “provavelmente não tem efeito algum”. Ninguém na década de 1950 imaginou com que rapidez e extensão o apelo de Rand cresceria e floresceria, animando em grande parte o desmantelamento do Estado de bem-estar social primeiramente (mas certamente não apenas por eles) pelos republicanos neoliberais como Ryan. Hoje, os discípulos mais radicais da divindade neoliberal residem no Vale do Silício, onde um paraíso de “inovadores” e “disruptores”, simbolizados pelo co-fundador do PayPal, Thiel, se beatificam como a vanguarda da espécie. Alguns até aspiram alcançar a vida eterna no firmamento da singularidade tecnológica, carregando sua consciência para a Nuvem antes que seus corpos materiais expirem.

Essa concepção da pessoa humana como uma entidade infinitamente descartável é subjacente ao que Mirowski chamou de “eu empreendedor”. Você é um maximizador de utilidades com um gradiente de preferências; você é um recurso humano, capital humano, um empresário da identidade, uma marca – “venda-se” –, um pacote de talentos e qualidades vendáveis, um currículo que caminha e respira, um conjunto de ativos a serem investidos ou cobertos ou de responsabilidades para serem cortadas, terceirizadas ou ocultas, uma habilidade definida para ser cultivada ou abandonada de acordo com as vicissitudes do mercado. Para exibir sua “individualidade”, você deve ser um rebelde, um infrator de regras, um “desregulador” da conformidade e da “média”. Você deve estar indiferente às vidas que você possa prejudicar – eles são, afinal, os perdedores, o efeito colateral medíocre de sua busca por produtividade e inovação.

Essa redefinição do eu é possível, não apenas pelas mudanças econômicas e políticas, mas pela tecnologia de comunicação contemporânea. Deveríamos começar a ver o Facebook, Twitter, LinkedIn e outras redes não apenas como “mídias sociais”, mas como “tecnologias do eu”, para usar a frase de Michel Foucault, implementos materiais para a criação de personalidades neoliberais. O Facebook, por exemplo, é uma tecnologia neoliberal exemplar. É um negócio extremamente bem-sucedido que instrui seus usuários na fabricação de identidades empreendedoras. Requer que o usuário crie um “perfil” a partir de um repertório limitado de estereótipos, que por sua vez devem atrair “amigos” e “curtidas” para suas postagens. Emprega algoritmos que forçam os usuários a alterar periodicamente seus perfis e, assim, desestabilizam suas “identidades” – uma formação educacional em personalidade mercantilizada.

Como o aluno e outras formas de dívida pessoal que preparam os estudantes para dizerem duas palavras – “Sim, chefe” –, o ideal do eu empreendedor desempenha uma função fundamentalmente disciplinar: reforçar a natureza precária do trabalho nos dias de hoje com um capitalismo digitalizado, com baixos salários e precariamente empregado e cada vez mais automatizado, no qual você é informalmente dispensável e que valoriza a metamorfose eterna: aprimore suas habilidades, seu perfil, seu currículo. Mas não se preocupe, reclame ou (misericórdia!) convoque um sindicato: perder seu emprego ou ver seu conjunto de habilidades tornar-se obsoleto é uma oportunidade de “crescimento”, criatividade, empoderamento. Quando sua própria exploração pode ser reformulada como um projeto, e não como um problema – uma fonte de realização e não um exemplo de injustiça –, a solidariedade com os outros pode ser menosprezada como conformismo, um instinto de obediência, o último refúgio de perdedores e medíocres. E o que acontece com os perdedores e medíocres, especialmente com a nova classe de desafortunados que povoam os centros de doação de alimentos e os abrigos para sem-teto? Vacinados contra a empatia pela cultura do mercado reinante e por nossas mídias sociais digitalizadas, somos obrigados a adotar a perspectiva arrogante, despreocupada e desdenhosa do chefe, para deleitar-se com seu desprezo ostensivo pelos incompetentes e malsucedidos. Como Mirowski observou incisivamente, a cultura neoliberal exibe um sado-moralismo punitivo para com os pobres e os fracos. Programas de televisão como O aprendiz, Shark Tank, Undercover Boss, compõem um verdadeiro teatro de crueldade. Testemunhe também o ambiente cada vez mais militarista e gladiador de nossos programas de condicionamento físico; ou a barbárie casual dos reality shows, nos quais tudo (desde cozinhar até administrar um restaurante) se tornam um concurso mortífero de desejos nos quais crueldade e humilhação aguardam os fracos. Essa é a psicopatologia da imaginação moral neoliberal.

A nova geração precisa desesperadamente de uma imaginação moral e política revitalizada. Como Fredric Jameson uma vez observou com tristeza, agora parece mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo. O desespero onipresente, mas não permitido, de muitos que anseiam por algo diferente é camuflado retoricamente por pedidos de “subversão”, “transgressão” ou “resistência” – nenhum dos quais representa um projeto claro e convincente de transformação social e política. Em algum momento, você precisa ser a favor de algo, não simplesmente (e com razão) contra algo horrível; mas é a própria capacidade de imaginar alternativas que o neoliberalismo parece ter efetivamente paralisado. O que era e ainda é chamado de “esquerda” foi marcada, em parte, pela fé na capacidade dos seres humanos de construir coletivamente um mundo em que todos nós pudéssemos viver e florescer – mas é exatamente essa capacidade que a capitulação do neoliberalismo ao mercado que tem questionado de maneira tão exitosa.

Portanto, talvez a coisa mais necessária no momento seja a imaginação, não a resistência, ou, talvez melhor, a imaginação de um futuro com base no qual a resistência faça sentido. Como no eros, na política: você é o que deseja. No momento, nossos desejos não são fortes o suficiente, nem grandes o suficiente, nem ousados ​​e generosos o suficiente. E eles não são fortes, grandes e ousados ​​o suficiente, porque parece que esquecemos quem somos; mas deixe que C. S. Lewis tenha a gentileza de lembrar-nos, naquele magnífico último parágrafo de seu ensaio, “O Peso da Glória”:

É uma coisa séria viver em uma sociedade de possíveis deuses e deusas, lembrar que a pessoa mais chata e desinteressante com quem você conversa pode um dia ser uma criatura que, se você a visse agora, seria fortemente tentado a adorar, ou então, um horror e uma corrupção como você agora conhece, se é que existe, apenas em um pesadelo… É à luz dessas possibilidades avassaladoras, é com admiração e circunspecção próprias a elas que devemos conduzir todas as nossas relações uns com os outros, todas as amizades, todos os amores, todos os jogos, todas as políticas. Não existem pessoas comuns. Você nunca falou com um mero mortal… São imortais com quem brincamos, trabalhamos, nos casamos, desprezamos e exploramos… Seu próximo é o objeto mais sagrado apresentado aos seus sentidos.

O espírito desse parágrafo é a base da crítica mais radical que você pode fazer ao neoliberalismo, e deve levar-nos todos a marchar contra todas as injustiças e indignidades do mundo. Ele destrói todos os ídolos do “progresso”, todo tipo de “produtividade” e toda banalidade de “valor” e “inovação”. E é o espírito do qual qualquer alternativa ao neoliberalismo deve extrair sua imaginação.

 

TRADUÇÃO: Dr. William Teixeira

 

[1] Texto originalmente publicado na Revist Church Life, da University of Notre Dame em: https://churchlifejournal.nd.edu/articles/youre-a-slave-to-money-then-you-die/?fbclid=IwAR20WbsdpBtyFPv_DErJu5BCWYh3j6YDd6c3rNlGdYOX5xfQ9-wa0jvyX64

[2] Eugene McCarraher é PhD pela Rutgers University e professor da Villanova University.

[3] SLOBODIAN, Quinn. Globalists: The End of Empire and the birth of Neoliberalism. Harvard: Harvard University Press, 2018.

[4] BROWN, Wendy. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. Nova Iorque: Zone Books, 2016.

[5] MIROWSKI, Philip. Never Let a Serious Crisis Go to Waste: How Neoliberalism Survived the Financial Meltdown. Nova Iorque: Verso, 2014.