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Como a Igreja Católica se tornou Romana por Chris Castaldo

“[Eu] edificarei a minha igreja”, declarou Jesus (Mateus 16.18). E que magnífico e agonizante processo foi esse, que vem se desenvolvendo por dois milênios. É essencial para essa obra a formação de pedras vivas: homens e mulheres libertos das presas do pecado, cujas vidas agora testificam da graça evangélica.

Mas como Cristo constrói a sua igreja? Uma resposta é proposta dentro da cúpula da Basílica de S. Pedro em Roma, em letras de um metro e oitenta, onde a promessa de Cristo está escrita em latim: “E tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja …” Iluminadas pelas janelas circundantes, essas palavras parecem uma coroa em cima da cripta do próprio apóstolo, que está escondido bem abaixo do altar principal, um lembrete da autoridade dada ao herdeiro de Pedro que se assenta sobre o trono papal.

Martinho Lutero não foi o primeiro a questionar a autoridade papal, mas o seu argumento foi especialmente incisivo. Quando as ideias de Lutero começaram a se solidificar em 1520, ele articulou as suas preocupações numa obra seminal: À Nobreza Cristã da Nação Alemã. Esse tratado foi ocasionado pelos ataques provindos do teólogo do papa, Silvestre Prierias, que afirmou o absolutismo papal com tanta veemência que Lutero o chamou de um “manifesto infernal”. Convencido da autoridade suprema da Escritura, e crendo que a nobreza alemã seria simpática a sua posição, Lutero, à luz de precedentes históricos, exortou os nobres a abraçarem a responsabilidade por uma reforma eclesiástica.

O tratado de Lutero desafiou a instituição romana: as convenções sociais, políticas, jurídicas e religiosas que baseavam a cristandade ocidental. A preocupação central era a reivindicação papal (propagada por Prierias) de que somente o papa poderia interpretar confiavelmente a Escritura e se manifestar sem erro. Lutero via tais tradições como acréscimos religiosos que ameaçavam a integridade da igreja, caso não fossem erradicados.

Olhando para trás, às vezes nos perguntamos como a acumulação da tradição romana se desenvolveu do barco de pesca galileu até os dias de Lutero, isto é, do dia do Pentecostes até o século XVI. Embora a história seja longa e complexa, o panorama a seguir vai tentar dar certos esclarecimentos, dando uma atenção especial para o desenvolvimento da autoridade eclesiástica no ofício papal.

O Primeiro Papa

A nossa história começa com um lembrete do Lord Acton, que sugeriu que a melhor maneira de assegurar a solidez de certa posição era fazer o melhor argumento possível em prol dos que se acredita estar errado. Embora a narrativa a seguir não seja um argumento por si só, ela pretende demonstrar que a trajetória equivocada da autoridade papal se desenvolveu de uma forma até natural no escopo e no decorrer da história ocidental, um desenvolvimento que serve de advertência aos seguidores de Cristo de cada época.

Os historiadores católicos tipicamente reconhecem que não há uma linha reta entre o papa atual e o apóstolo Pedro. Nas palavras de Eamon Duffy, “não há nada, portanto, que se aproxime diretamente a uma teoria papal nas páginas do Novo Testamento” e, considerando todas as evidências, “não havia um bispo de Roma único por quase um século após as mortes dos apóstolos”.

Foi por volta de 150 d.C. que o padrão mais solto da autoridade presbiterial começou a dar lugar a um bispado romano único, um ofício que eventualmente se desenvolveu numa posição monárquica sob o Bispo Victor (189-198) e em maior medida sob o Bispo Estevão I (254-257). A invocação de Mateus 16 por Estevão foi o primeiro exemplo de um bispo de Roma tentando se elevar sobre outros bispos com uma autoridade que era qualitativamente superior.

A conversão de Constantino, e seu subsequente investimento em instituições eclesiásticas, colocou os bispos romanos no centro da vida imperial. Eles logo se tornaram potentados prósperos e engajados politicamente, adquirindo os trejeitos urbanos da aristocracia. A influência política do bispo aumentou quando Constantino transferiu a capital do império para Constantinopla em 330, uma mudança que tornou o bispo de Roma o indivíduo mais importante na cidade. Mas qual desses bispos deve ser considerado o primeiro papa?

A maioria dos historiadores apontam para Leão I, que ocupou o trono episcopal em Roma de 440 a 461. Um líder espiritual e um gestor hábil, Leão celebremente persuadiu Átila, o Huno, a deixar a cidade de Roma em paz, um dos muitos atos que lhe garantiram o título de “Grande”. Ele gostava de ser chamado de “Papa” (pai), de onde a palavra papa é derivada, um título que era comumente usado para bispos, mas que se tornou restrito ao bispo de Roma por volta do século VI. Leão, que se entendia como um canal da autoridade apostólica de Pedro, insistia que os apelos aos tribunais eclesiásticos fossem trazidos a ele. Como “pontifex maximus” (o principal sacerdote de uma cidade), as suas decisões precisavam ser ouvidas como definitivas.

Desenvolvimento do Ofício Papal

Com o colapso do governo romano no Ocidente, e o influxo de tribos germânicas durante o século V, era natural que o papa servisse como o principal governante de Roma. Ele era cada vez mais chamado a promover a justiça, a defesa e as provisões durante a fome, funções que podem ser chamadas de “seculares”. Enquanto isso, governantes cristãos continuaram a conceder terras e construir grandes igrejas. A acumulação desses bens pela igreja foi um resultado natural do vácuo de poder deixado pelo Império Romano, mas exigia que os líderes eclesiásticos administrassem grandes quantidades de terra e riqueza, e praticassem o insalubre poder de barganha que vinha junto.

Foi nessa época que a consciência teológica do papado deu outro passo significativo. Gelásio I (492-496) foi além da reivindicação de Leão à jurisdição sobre os outros bispos ao afirmar que o poder do papa era superior aos reis. Essa distinção entre o poder papal e a autoridade temporal se mostraria relevante nos séculos seguintes quando papas e imperadores se digladiariam sobre a questão de quem era o líder legítimo da cristandade. Segundo Gelásio, já que os papas prestariam a contas a Deus pelos reis, o seu poder sagrado superava a autoridade imperial de qualquer imperador ou governante temporal.

Uma série de pessoas e eventos significativos aconteceriam nos anos seguintes: o legado de Gregório I (540-604), especialmente com a sua teoria missiológica; a doação de Pepino, o Breve, do território ao redor de Roma no que se tornariam os Estados Papais (756); a suposta Doação de Constantino; a coroação icônica de Carlos Magno por Leão III no Natal (800); a intervenção de Henrique III quando houve três candidatos diferentes ao trono papal (1046); as reformas do Papa Leão IX (1049-1054), que proibia os sacerdotes de se casarem e a sua mobilização do Colégio de Cardeais; oposição à “investidura leiga”, a prática de governantes seculares escolherem bispos e os investir com os símbolos de sua autoridade; as Cruzadas (começando em 1095); e a compilação de Graciano de direito canônico (c. 1140). Por mais que essa breve amostra seja bem diversificada, cada evento de alguma forma contribuiu para o poder consolidado do papado medieval e seu relacionamento complexo com os Estados-nação emergentes.

O pontificado de Inocêncio III (1198-1216) é corretamente visto como o ápice do poder e prerrogativas papais. Foi Inocêncio que se via como operando acima do homem e abaixo de Deus, e especificamente “cria que Deus tinha dado ao sucessor de Pedro a tarefa de ‘dominar sobre o mundo todo’, bem como sobre a igreja”. Identificando-se como o “Vigário de Cristo”, ele reivindicou ter poder supremo sobre a terra e considerou a sua autoridade sobre os Estados-nação como derivando da sua própria. Em 1215, ele convocou o Quarto Concílio de Latrão, que estabeleceu o dogma da transubstanciação, dentre outras reformas doutrinárias e pastorais.

Enquanto o poder papal alcançava o seu zênite sob Inocêncio III, ele logo começaria o seu declínio. Uma tensão crescente entre o papado e os Estados-nação eventualmente levou a um conflito entre Bonifácio VIII (1294-1303) e o governante da França, Filipe, o Belo. Em uma disputa de poderes que lembra a estátua do Manneken Pis em Bruxelas, Filipe eventualmente emergiu vitorioso. Tendo sido vencido, Bonifácio então emitiu a bula papal conhecida como Unam Sanctam, onde ele reivindicou que “é completamente necessário à salvação que toda criatura humana se sujeite ao Pontífice Romano”. Bonifácio, contudo, não podia apoiar suas reivindicações com poderio militar. Filipe, portanto, o prendeu, uma antecipação do que o papado se tornaria em alguns poucos anos.

A Igreja no Cativeiro

Quando o novo papa eleito, Clemente V, não pôde voltar a Roma pelo rei da França em 1305, ele eventualmente mudou a sua corte papal para Avignon. Isso começou o chamado Cativeiro Babilônico do Papado, um período entre 1309 e 1376 em que sete papas seguidos viveram em exílio de Roma, a poucos metros de distância da fronteira francesa. Quando o papa Gregório XI finalmente retornou a Roma em 1377 e morreu ali, o colégio de cardeais de maioria francesa se reuniu num conclave em meio a multidões enraivecidas que demandavam um papa italiano. As massas tiveram o que queriam com Urbano VI, mas os cardeais rapidamente tiveram remorso da sua escolha e elegeram um papa francês no lugar disso (alegando ter feito  sua decisão inicial sob coação). Havia agora dois reclamantes ao trono papal.

O Grande Cisma Ocidental durou quarenta anos. As nações se reuniram em apoio a um papa ou outro, mais ou menos com base nas suas relações com a França. O Concílio de Pisa foi convocado em 1408 e tentou resolver a questão elegendo um novo papa, que foi João XIII. Isso, todavia, apenas aumentou o problema, pois agora havia três reclamantes papais. Foi necessário o Concílio de Constança em 1414 para resolver o imbróglio, depondo todos os três papas antes de eleger um novo em 1417, Martinho V. Como uma forma de controlar o poder papal, Constança também decretou manter um concílio geral como o principal órgão governante da igreja. Mas os papas subsequentes reverteram essa resolução e retornaram o ofício papal à posição de supremacia.

A nossa história acaba logo antes do alvorecer da Reforma, com o Quinto Concílio de Latrão (1512-1517), onde o Papa Júlio II se vestiu como um imperador romano, portando uma espada e uma capa amarela e ab-rogou a superioridade dos concílios em favor do poder papal. Mas, ironicamente, foi nesse contexto que Egídio de Viterbo afirmou: “Os homens precisam ser mudados pela religião, não a religião pelos homens”.

O Poder Absoluto Corrompe Absolutamente

Tendo começado com Lord Acton, vamos concluir com as suas palavras mais famosas: “O poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”. O que frequentemente se esquece, contudo, é que Acton estava falando, na verdade, sobre o absolutismo papal, uma preocupação que tem motivado reformadores cristãos ao longo dos séculos.

Mas esse perigo não é exclusivo aos que portam o anel papal ou se inclinam para beijá-lo. Lá no fundo, a trajetória de todo coração pecaminoso é ser igual ao Papa Júlio II, esbanjando as nossas esplêndidas capas amarelas e procurando por um trono para se assentar. Mas há um só Senhor que se assenta sobre o trono: o Cordeiro, a quem damos louvor e honra e glória para todo o sempre.

Fonte original: How the Catholic Church Became Roman

Traduzido por Guilherme Cordeiro.

Foto: Stefan Gessert.